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A disseminação do ódio contra os pobres nas redes sociais

Recentemente, através das redes sociais, alguns amigos compartilharam comigo uma imagem com mensagem extremamente preconceituosa e, para ser bem honesto, bastante estúpida. Confesso que tenho dificuldade de entender como pessoas que passaram por vários anos de educação formal tiveram a coragem de se expor publicamente ao ridículo compartilhando uma imagem como esta que publico abaixo.

Mensagem contra benefícios e programas sociais do governo que está sendo amplamente divulgada pelas redes sociais.

Em um esforço para tentar compreender como, em sã consciência, estes amigos puderam levar adiante essa vergonhosa crítica aos programas sociais mencionados na imagem, cheguei a algumas reflexões que entendo valer à pena compartilhar com os leitores do meu blog. Espero que possam perdoar-me pela extensão do post, que acabou ficando um pouco maior do que eu esperava.

CAMISINHA E PÍLULA DO DIA SEGUINTE

A distribuição de camisinhas e pílulas do dia seguinte é uma questão de saúde pública. Mesmo se pensarmos economicamente, se o governo não distribuir camisinhas e pílulas do dia seguinte, é certo que o gasto público anual com saúde vai aumentar. Como alguém pode criticar que o governo distribua camisinha e pílulas do dia seguinte?

A explicação que acredito ser a mais plausível para que esta crítica encontre apoio de boa parte da população, está ligada ao poder de influência de grupos religiosos, em especial católicos e protestantes, no pensamento crítico de seus fiéis e familiares.  Influência que também pode atingir os não fiéis, já que as ideias de tais grupos são amplamente repercutidas em função do grande poder político e econômico que detém. Estou falando aqui das “bancadas evangélicas” na Câmara dos Deputados e no Senado, dificultando a aprovação de leis que fariam do Brasil um Estado laico de fato; estou falando dos inúmeros veículos de comunicação (Rede Record, Rede Globo, Rede Vida, Bandeirantes, etc. etc.), estou falando de redes de universidades (PUC, Mackenzie, Metodistas, Anhanguera, UniSA, etc) e escolas (católicas, adventistas ou evangélicas) que garantem desde o ensino fundamental a educação de valores religiosos nas crianças que, na vida adulta, serão difíceis de abandonar. São dessas influências que estou falando.

Nem mesmo propostas como a do planejamento familiar, adotada há décadas pela classe média conservadora, preocupada apenas com suas economias e posição social, conseguiram quebrar alguns valores religiosos bastante retrógrados incutidos na cabeça do cidadão brasileiro. Sendo mais explícito, para quem faz parte da classe média o planejamento familiar não é mais uma questão a ser discutida, mas para os pobres que não tem recursos para comprar métodos contraceptivos, o uso da camisinha e da pílula do dia seguinte não deve ser estimulado por programas governamentais. Já me acusam por aqui de promover o debate da luta de classes em pleno século XXI, mas digam-me como não encarar a situação que acabei de colocar como um instrumento de exploração de uma classe por outra?

BOLSA FAMÍLIA

Aqui a conversa já é outra. O ódio dos criadores da mensagem é voltado contra os pobres, tanto como as outras, mas nesse caso a um pobre em específico, que teve a audácia de se tornar presidente da República Federativa do Brasil (e não Estados Unidos do Brasil, viu Serra?). Estamos falando de Luís Inácio Lula da Silva que ampliou o acesso do Bolsa Família, transformando-o no maior programa de distribuição de renda da história, tirando milhões de brasileiros da miséria absoluta.

Segundo o site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável pelo programa:

“O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. O Programa integra o Fome Zero que tem como objetivo assegurar o direito humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a conquista da cidadania pela população mais vulnerável à fome.

O Bolsa Família atende mais de 13 milhões de famílias em todo território nacional. A depender da renda familiar por pessoa (limitada a R$ 140), do número e da idade dos filhos, o valor do benefício recebido pela família pode variar entre R$ 32 a R$ 306″.

Portanto, conforme descrito pelas regras do Bolsa Família, um grupo famíliar pode receber NO MÁXIMO R$ 306,00. Como sabemos, valor insuficiente até mesmo para garantir o proposto pelo próprio programa que, não custa relembrar, é a segurança alimentar e nutricional para a conquista da cidadania pela população mais vulnerável à fome. Tal informação revela o quão mentirosa e maldosa é a frase: “Teve filho? O governo dá o bolsa família”.

Quanto ao valor máximo de R$ 306,00 do bolsa família, apenas para podermos ter uma ideia do poder de compra deste benefício, há três dias foi anunciado que o valor da cesta básica em São Paulo passou a R$ 334,11 e, portanto, maior do que o valor máximo que uma família pode receber pelo tão falado programa de transferência de renda. A pesquisa da Cesta Básica Nacional, também conhecida como Ração Essencial Mínima, é realizada pelo Dieese, de onde retirei a tabela abaixo com as provisões mínimas para o cálculo do valor da Cesta Básica.  

O curioso é que, de maneira geral, todas as pessoas se dizem favoráveis ao direito humano à alimentação adequada e, portanto, à vida. Contudo, como diz o George Carlin aí abaixo, o direito à vida parece mesmo ser defendido apenas enquanto você ainda está na “barriga” da mamãe, pois depois que você nasce, as mesmas pessoas que fazem esse discurso hipócrita pró-vida se recusam a distribuir renda para quem não tem o suficiente para garantir sua própria subsistência. Estes são os primeiros a te acusarem de vagabundo e, aos que criaram o programa, de populistas.

Direito à vida aos não nascidos

AUXÍLIO RECLUSÃO

Aqui a questão é de pura má fé dos criadores da mensagem e de ignorância de quem a compartilha. O auxílio reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes do segurado de baixa renda que tenha sido preso e não receba nem auxílio-doença, nem outra aposentadoria, nem alguma remuneração da empresa na qual trabalhava. Para quem quiser discutir o assunto, por favor, não deixem de ler as informações prestadas no site do Ministério da Previdência Social (isso é o mínimo).

A Previdência Social é um SEGURO pago por cada TRABALHADOR DE CARTEIRA ASSINADA para o caso de ocorrer algum dos FATOS PREVISTOS NA LEI (alcançar idade avançada, restar incapaz para o trabalho, falecer ou mesmo, ser condenado e preso). Ou seja, trabalhadores que contribuem com a Previdência Social, tem o direito de receber o benefício quando um dos fatores previstos na lei ocorrer. Assim, o dependente do preso que recebe o “auxílio-reclusão” está  recebendo, na verdade, valor referente ao que já foi contribuído pelo beneficiário enquanto trabalhador. Não se trata de generosidade do governo, mas sim o pagamento de um contrato previamente estabelecido entre as partes e devidamente previsto na legislação.

Além da má fé ao ocultar a questão do seguro a que nos referimos acima, a mensagem contém uma mentira nojenta que é a de que o valor que o segurado recebe varia de acordo com o número de filhos que ele possui. O valor a ser pago obedece às regras da previdência social e, assim como no caso das aposentadorias por tempo de serviço, viuvez ou invalidez, NÃO VARIA DE ACORDO COM A QUANTIDADE DE FILHOS DO SEGURADO!!!!

Por fim, ainda que fosse um programa de distribuição de renda concedido pelo governo, e não um seguro, entendo que seria legítimo a concessão de um salário a cônjuge/filhos menores de presidiários que, sem a presença do pai/mãe, tem o sustento e garantia de sua vida bastante comprometidos. Basta olhar o que apontam as estatísticas de crianças que crescem em lares desestruturados pela prisão do pai/mãe e pela falta de recursos. De uma perspectiva puramente econômica pergunto: será que o dinheiro gasto pelo governo com os problemas decorrentes da desestruturação de famílias pela prisão de um de seus provedores não é maior do que o que seria gasto em um auxílio-reclusão? Se colocarmos esta mesma questão sob uma perspectiva um pouco mais humanista, será que se o governo fosse eficaz em garantir condições de qualidade de educação, saúde e subsistência digna das famílias dos encarcerados isso não traria resultados positivos para a sociedade como um todo? A resposta parece bastante óbvia!!!

LÓGICA PRECONCEITUOSA POR TRÁS DA MENSAGEM

Percebam que há uma sequência lógica bastante preconceituosa por trás dessa mensagem. Não sei se quem a compartilha chegou a perceber, mas a intenção dos criadores era associar a ideia de que, para pessoas pobres atendidas por programas sociais do governo:

Sexo = Filho = Vadiagem = Prisão

Querem incutir na cabeça da população a ideia de que todos os que se beneficiam de programas sociais são vagabundos, oportunistas e vivem da exploração daqueles que seguem as leis e trabalham honestamente pagando seus impostos. Pior! Para as crianças que nascem nas famílias dos beneficiários de programas sociais, quase não há escapatória: serão presos e, ainda assim, vão explorar a sociedade recebendo o benefício do auxílio reclusão. Quanta mentira e quanta perversidade!!!!

O que parece incomodar as pessoas que compartilham nas redes sociais este tipo de mensagem  [e é justamente o que explora quem criou a mesma] é a possibilidade de que pobres possam viver de benefícios sociais enquanto eles tem que trabalhar e pagar os impostos que sustentariam estes indivíduos. Oras, tal pensamento revela um desconhecimento enorme de como os impostos são arrecadados no Brasil. O ICMS, para ficarmos em apenas um exemplo, é um imposto do qual não há como escapar por taxar justamente o consumo e seus efeitos são muito mais perversos para os pobres que, com poucos recursos, acabam tendo uma porcentagem muito maior de seu dinheiro consumida por este imposto.

Além disso, acreditar que alguém opte voluntariamente por viver na linha da miséria apenas para explorar os benefícios sociais concedidos pelo governo é algo tão fora da realidade que chega a ser doentio. Pessoas que acreditam nisso verdadeiramente, sequer podem imaginar como é viver com baixíssimos recursos, sem nenhum conforto e com muitos filhos para alimentar. NÃO! A MAIORIA DAS PESSOAS que vivem com benefícios sociais, como o Bolsa Família, não são bandidos. São aposentados, inválidos ou pessoas cuja atividade profissional não chegam a um salário mínimo. Trabalhadores rurais, empregadas domésticas e uma série de outras profissões desvalorizadas e tão necessárias no nosso dia-a-dia (os professores no RS estão quase lá). Ao contrário do que pensam os que divulgam essas mensagens, boa parte dos beneficiários passam a maior parte do dia trabalhando e, ainda assim, para o seu desespero, não conseguem recursos para garantir a subsistência de suas famílias. Sem o auxílio dos benefícios sociais, a vida de muitos integrantes dessas famílias estaria totalmente comprometida.

SOBRE TRABALHO E VADIAGEM: TRÊS RECOMENDAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Como o post já está enorme, não vou escrever muito mais por aqui. Queria apenas lembrar que há alguns trabalhos importantes para quem possa se interessar pelo tema, como os livros Bandidos, de Eric J. Hobsbawm, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber  e O Direito à Preguiça, de Paul Lafargue.

Deste último livro que mencionei, gostaria de destacar como foi marcante para mim quando li as primeiras páginas da Introdução, escrita por Marilena Chaui. Aqui, transcrevo apenas as três primeiras páginas (9-11) para despertar o interesse da leitura:

“A preguiça, todos sabem, é um dos sete pecados capitais.

Ao perder o Paraíso Terrestre, Eva e Adão ouvem do Senhor as terríveis palavras que selarão seus destinos. À primeira mulher, Deus disse: ‘Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te leverá ao homem e ele te dominará’ (Gn, 3:16). Ao primeiro homem, disse Jeová: ‘Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida […]. Com o suor de teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó retornarás’ (Gn,3:17-19).

Ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do trabalho como pena imposta pela justiça divina e por isso os filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar. Porque a pena foi imposta diretamente pela vontade de Deus, não cumpri-la é crime de lesa-divindade e por essa razão a preguiça é pecado capital, um gozo cujo direito os humanos perderam para sempre.

O laço que ata preguiça e pecado é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo. É assim que aparecem para os brasileiros brancos as figuras do índio preguiçoso e do negro indolente, construídas no final do século XIX, quando o capitalismo exigiu a abolição da escravatura e substituiu a mão-de-obra escrava pela do imigrante europeu, chamado trabalhador livre (curiosa expressão numa sociedade cristã que não desconhece a Bíblia nem ignora que o trabalho foi imposto aos humanos como servidão!). É ainda a mesma imagem que apare na construção, feita por Monteiro Lobato no início deste século, do Jeca Tatu, o caipira ocioso devorado pelos vermes enquanto a plantação é devorada pelas saúvas. Nesse imaginário, ‘a preguiça é a mãe de todos os vícios’ e nele vêm inscrever-se, hoje, o nordestino preguiçoso, a criança de rua vadia (vadiagem sendo, aliás, o termo empregado para referir-se às prostitutas), o mendigo – ‘jovem, forte, saudável, que devia estar trabalhando em vez de vadiar’. É ela, enfim, que força o trabalhador desempregado a sentir-se humilhado, culpado e um pária social.

Não é curioso, porém, que o desprezo pela preguiça e a EXTREMA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO possam existir numa sociedade que não desconhece a maldição que recai sobre o trabalho, visto que TRABALHAR É CASTIGO DIVINO E NÃO VIRTUDE DO LIVRE-ARBÍTRIO HUMANO? Aliás, a ideia do trabalho como desonra e degradação não é exclusiva da tradição judaico-cristã. Essa ideia aparece em quase todos os mitos que narram a origem das sociedades humanas como efeito de um crime cuja punição será a necessidade de trabalhar para viver. Ela também aparece nas sociedades escravistas antigas, como a grega e a romana. […], vendo o trabalho como pena que cabe aos escravos e desonra que cai sobre homens livres pobres: [os humiliores (humildes)]”.

A partir da página 12, Marilena Chaui dedica-se a responder as questões propostas por suas reflexões, isto é, como e quando o horror pelo trabalho transformou-se no seu contrário? Quando e por que se passou ao elogio do trabalho como virtude e se viu no elogio do ócio o convite ao vício, impondo-se negá-lo pelo neg-ócio?

Para responder as questões acima, Marilena Chaui parte de uma breve análise da obra mais conhecida do sociólogo Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que trata da relação entre o capitalismo e a posição do trabalho como virtude, para concluir com a contribuição que Paul Lafargue deu, com seu Direito à Preguiça, para complementar a lacuna da obra de Weber, que “por ignorar deliberadamente a formação histórica do capitalismo e a luta de classes, não indaga se a ética burguesa é racional para os produtores de capital, isto é, a classe trabalhadora, tampouco indaga como essa ética conseguiu tornar-se ética proletária. É disso que trata O Direito à Preguiça”, conclui Chaui.

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