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O legado colonial de Portugal no Brasil: entre a culpa e a redenção?

Por Diogo Ramada Curto
publicado originalmente no jornal Público (Porto) | 27/12/2015

As declarações de Lula da Silva sobre o atraso no ensino brasileiro e a ligação deste com o legado colonial português fizeram tocar tambores nacionalistas deste lado do Atlântico, mas Lula não andou longe da razão histórica.

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Numa conferência organizada pelo jornal El País, a 11 de Dezembro, em Madrid, Lula da Silva afirmou: “Eu sei que isto não agrada aos portugueses, mas Cristóvão Colombo chegou a Santo Domingo [actual República Dominicana] em 1492 e, em 1507, já ali tinha sido criada a Universidade. No Peru, em 1550, na Bolívia em 1624. No Brasil, a primeira universidade surgiu apenas em 1922”.

Em Portugal, a afirmação do ex-presidente do Brasil transformou-se num pequeno facto político. Tocaram-se os tambores e ergueram-se as bandeiras do nacionalismo. No mesmo dia da conferência, o Observador intitulou a notícia, feita com base num comunicado da Agência Lusa: “Brasileiro burro? A culpa é do Álvares Cabral, diz Lula”. Enquanto o Diário de Notíciasformulou a questão em termos ainda mais retóricos: “De quem é a culpa pelos atrasos na educação? É dos portugueses, diz Lula”.

A 17 de Dezembro, o deputado europeu e colunista do Jornal de NotíciasNuno Melo reagiu, fazendo prova dos seus conhecimentos, adquiridos na Wikipédia. Com uma nota de condescendente desprezo por Lula da Silva, considerou que este discorrera “sobre temas que implicam estudo, com a facilidade com que trautearia um forró”.  É que, se cada um é para o que nasce, como diz o povo, Lula deveria limitar-se ao forró, para que outros pudessem brilhar com a sua sabedoria “wikipédiana”… E foi, com o método do “copy and paste”, que Nuno Melo corrigiu: “As bases do Ensino Superior brasileiro foram lançadas bem antes de 1922. Em 1792, foi criada a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, embrionária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E em 1808 foi criada a Faculdade de Medicina da Baía.”

À acusação de Lula de que os portugueses teriam contribuído para o atraso cultural do Brasil, Nuno Melo contrapôs, ainda, que toda a obra de colonização do Brasil fora feita pelos portugueses, que ali souberam criar a unidade e suscitar o desenvolvimento. Nas suas palavras: “Acontece que se o Brasil é o maior país da América Latina e o quinto do planeta, deve-o a Portugal que lhe deu nascença, administrou e fez Reino, circunstância sem paralelo na colonização espanhola.” E, acrescentou, com base em velhos e infundados ressentimentos anti-britânicos, fingindo conhecer o sentido da historiografia e da obra de Charles Boxer: “A historiografia assinala o notável desenvolvimento do Brasil até 1822, ano da independência. A realidade não muda porque Lula da Silva gostasse de ver o país pejado de ascendência anglo-saxónica. Sendo que a simples leitura do Império marítimo português, de Charles Boxer, britânico sem resquícios de lusitanidade, o ajudará a perceber muita coisa.

Todas estas reacções nacionalistas não são de estranhar. Elas inserem-se num processo constante de manipulação do passado, criador de mitos para consumo político e de uma memória colectiva com conotações ideológicas claras, que nada tem que ver com a investigação histórica. Por isso, é enorme o risco de se tomar como certa uma memória histórica eivada de mitos e de leituras ideológicas, desprezando a riqueza de perspectivas históricas que a investigação histórica nos oferece.

De igual modo,  há alguns meses, o Reitor da Universidade de Coimbra, numa entrevista ao PÚBLICO (20/07/2015), argumentou que a unidade do Brasil era obra da sua própria instituição. Em tempos coloniais, anteriores a 1822, cerca de 5000 estudantes oriundos daquela colónia americana formaram-se na Universidade situada nas margens do Mondego. Por isso, foram os Estudos Gerais que criaram a unidade entre os que fizeram a independência desse grande país. À argumentação do Magnífico Reitor não faltou o elemento comparativo, pois de forma diferente procedera a vizinha Espanha, quando, ao autorizar a criação de universidades desde os seus tempos coloniais, criara as condições para uma maior fragmentação dos países. No Peru, Bolívia, Venezuela e noutras futuras nações da América Espanhola formaram-se cerca de 170 mil estudantes, correspondendo às antigas universidades do tempo dos vice-reis.  Em conclusão, sempre segundo o Reitor, a Universidade de Coimbra unificou o que a política espanhola dos vice-reis dividiu.

Que o Reitor queira atrair os estudantes brasileiros a virem estudar para o Mondego, parece-me um objectivo legítimo. Mas que o pretenda fazer com base numa deturpação do que se passou, jogando com o peso da história da sua própria instituição, que teria servido de berço à unidade brasileira, já me soa a uma atoarda, e das grandes!

Nos argumentos comemorativistas do Reitor, encontra-se um espécie de redenção ou de salvação da Universidade de Coimbra, tanto quanto as interpretações da conferência de Lula apontariam para o sentido da culpa a atribuir ao legado colonial que os portugueses deixaram no Brasil. Discordo de ambos os juízos. O historiador, tal como o jornalista, não se pode afunilar entre os valores da culpa e da redenção, cedendo a uma moral simplificadora, espartilhada pelos valores de um senso comum capaz de banalizar a interpretação e a compreensão dos factos. À investigação histórica e jornalística competirá, sempre, estabelecer os factos com base em provas e demonstrações, o que implica um conjunto de operações que, insisto, não podem dissociadas da sua interpretação e compreensão.

Começando pela própria notícia tal como surgiu no El País e foi, muito correctamente, transmitida pela Agência Lusa, será possível reconstruir melhor o sentido da afirmação de Lula, percebendo melhor o seu contexto e a intenção do seu autor. O objectivo da argumentação de Lula não parece ter sido tanto o de criticar os portugueses, mas o de se demarcar das “elites brasileiras”, insinuando que estas se limitavam à reprodução social das lógicas da desigualdade herdadas dos tempos coloniais. Na força da sua generalização, não me parece que tal interpretação possa ser considerada errada. Pelo contrário, inscreve-se nas políticas de Lula destinadas a combater as desigualdades ou, pelo menos, a acabar com a pobreza. Pois, conforme noticiou a Lusa, em contraste com o sucedido nos últimos 100 anos, foi durante o seu governo (2003-2011) que triplicou o orçamento da Educação, tendo-se assistido à criação de 18 novas universidades federais, 173 novos campus no interior do Brasil e três vezes mais escolas técnicas do que nos últimos 100 anos.

Em relação ao que se passou em tempos anteriores a 1822, quanto à não existência de ensino universitário no Brasil colonial, importaria voltar às análises de Sérgio Buarque de Holanda. De facto, em Raízes do Brasil (1936), o maior historiador brasileiro do século XX considerou que a cultura brasileira anterior ao século XVIII tinha sido determinada por políticas que proibiram a instalação de tipografias e a criação de universidades, ao contrário do sucedido na América Espanhola, nomeadamente no México e Peru. Assim, o mercado do livro e a frequência dos mais altos níveis de ensino fizeram com que a colónia ficasse submetida à metrópole. Acrescente-se que a ausência de um tribunal da Inquisição próprio, instalado no Brasil, reproduziu a mesma falta de autonomia da colónia, ou seja, a dependência em relação ao reino.

O argumento revisionista do Reitor, tal como o de outros movidos por orgulhos nacionalistas, recorreu, pois, a velhas ideias acerca do Brasil colonial, mas investiu-as de uma conotação diferente. Onde Buarque de Holanda vira a hegemonia da metrópole na criação de uma colónia sem autonomia, o Reitor passou a considerar uma herança colonial positiva, digna de ser celebrada, porque dotada de uma força emancipadora e capaz de criar a unidade que o Brasil necessitou para se constituir numa nação independente.

Ora, é este tipo de revisionismo historiográfico que me assusta, por três diferentes razões. Primeiro, porque faz parte de um modo de manipulação pública do passado feito ao sabor das comemorações e de lógicas nacionalistas, por parte de quem tem responsabilidades políticas na formação de uma opinião pública e capacidade de decisão. Ora, os historiadores brasileiros, de Caio Prado a Maria Odila Leite da Silva Dias e a Luiz Felipe de Alencastro, têm procurado demonstrar que importa desvincular o estudo do processo de formação da nacionalidade brasileira, nas primeiras décadas do século XIX, da imagem tradicional da colónia em luta contra a metrópole. A instalação da corte no Rio de Janeiro em 1808 e os interesses das elites escravocratas é que foram preponderantes no processo de independência do Brasil. A este respeito, Lula não andou assim tão longe da razão histórica ao apontar o dedo às elites brtasileiras.

A segunda razão prende-se com a comparação entre heranças coloniais. O argumento segundo o qual uma política de proibição de universidades nas colónias criava formas de identidade mais unificadas foi particularmente utilizado nos círculos oficiais do Estado Novo. Os estudantes provenientes das colónias, não dispondo de universidades nos seus territórios de origem (também chamados províncias) eram obrigados a vir estudar para a metrópole com o objectivo oficial de aqui adquirirem uma visão unitária do Império (ou de um Mundo Português que se pretendia multicultural). Pouco importa que esta política de estrangulamento do ensino universitário, a bem da unidade, tivesse desencadeado reivindicações por parte das colónias, no sentido da criação de universidades naqueles territórios, e suscitado por parte dos estudantes coloniais movimentos de revolta, alguns deles organizados em torno da Casa dos Estudantes do Império e suas respectivas delegações. O certo é que o que estava em causa nessa mesma política colonial eram os mecanismos de controlo das populações, incluindo dos seus estratos mais jovens e letrados, sobretudo quando se tratava de grupos com um potencial de resistência ao Estado colonial.

Por último, no século XXI, a defesa de comunidades imaginadas à escala nacional, investidas de sentimentos patrióticos de emancipação, e de instituições com uma memória de séculos,  não poderá continuar a ser feita com base em mitos e em operações de manipulação do passado. Mais: estou em crer que existe uma intenção cada vez maior, por parte das instituições, destinada a desenvolver políticas de investigação, a pretexto da comemoração  de instituições e do denominado passado nacional. Em Portugal, por exemplo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, através do Instituto Diplomático, deu o exemplo claro de uma nova atitude ao lançar programas de pesquisa relacionados com a história da escravatura. Será, agora, também necessário que se aprofundem os conhecimentos em Portugal sobre a história do Brasil, procedendo-se à sua divulgação. Só assim se poderão encontrar bases mais seguras para o estabelecimento de relações entre portugueses e brasileiros, acabando com as ideias míticas que vivem da manipulação dos factos do passado.


DiogoRamadaCurtoDiogo Ramada Curto é historiador e pesquisador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.

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Golpistas em ação: as manifestações de 15 de março

Quem fizer uma breve consulta no Google Images por fotos tiradas durante as manifestações realizadas em várias cidades neste último domingo (15), facilmente encontrará imagens de muitas pessoas que saíram às ruas para pedir a derrubada de um governo legitimamente eleito através de uma intervenção militar.

Uma das imagens que circulou amplamente pela rede mundial de computadores, pedia às Forças Armadas que libertassem o Brasil ou o mundo iria sangrar (???). Tal faixa, como se pode ver abaixo, trazia uma suástica de um lado e, do outro, a foice e o martelo dentro do tradicional símbolo de proibição. Uma segunda frase, escrita em inglês, alertava ao perigo que a “União das Repúblicas Socialistas da América Latina” (URSAL) representam para a paz mundial (???).

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Imagem capturada a partir da cobertura do canal Globo News de participantes da manifestação no Rio de Janeiro neste último domingo, 15 de março.

Ora, ainda que ao portar tal faixa os manifestantes estivessem buscando associar o nazismo ao socialismo, como já me apontaram pelas redes sociais, parece que a junção de tais elementos não foi a melhor estratégia para comunicar esta ideia. Na verdade, se essa era mesmo a intenção, o tiro parece ter saído pela culatra, uma vez que a imagem está sendo bastante explorada no sentido de relacionar tais manifestantes a grupos simpatizantes às ideias nazistas. Ainda mais quando se vê, na mesma faixa, uma suástica, seguida da defesa de intervenções militares para destruir governos latino-americanos eleitos democraticamente e um símbolo indicando a proibição de governos socialistas.

Outras imagens que chamaram bastante minha atenção, pela recorrência dos cartazes e gritos de ordem que ecoaram por diversas capitais do país, foram as que apareceram em cartazes lembrando que a bandeira do Brasil não é vermelha, mas verde e amarela, na tentativa de associar o atual governo a ditaduras comunistas. Para os indivíduos que portavam estes cartazes (e muitos dos presentes nas manifestações), tal associação seria razão suficiente para uma intervenção militar no país, uma vez que é preferível um governo militar do que a presente “ditadura comunista” em que vivemos.

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Cartaz exibido durante manifestações realizadas em São Paulo, 15 de março.

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Rapaz envolto na bandeira brasileira segura cartaz durante manifestações realizadas em São Paulo, 15 de março.

Fora o “erro” grosseiro ao interpretar os últimos governos petistas como “ditaduras comunistas”, vê-se que estamos diante de indivíduos que se dizem apolíticos, que teriam sido impulsionados às ruas por um sentimento nacionalista em defesa de uma pátria que estaria sob o risco de se desmantelar pela ação de um governo dito comunista. No entanto, quem vem acompanhando a conjuntura política do país desde as campanhas eleitorais de 2014, percebe que as manifestações não foram promovidas por grupos apolíticos, que tais grupos estão em defesa da pátria ou, tampouco, que o país corre risco de se desmantelar em razão de uma ditadura comunista. Tal construção é tão falsa quanto uma nota de R$ 3,00. Tais ideias (grupos apolíticos, nacionalismo, combate ao comunismo) são utilizadas como instrumentos para que o intuito golpista penetre amplamente na sociedade, conquistando corações e mentes. Como já disseram alhures, o nacionalismo é, de fato, o esconderijo preferido de golpistas e fascistas.

Por fim, uma faixa vergonhosa, novamente escrita em inglês e português, pede socorro às forças armadas sob a justificativa de que uma “verdadeira reforma política” apenas poderia ser feita pelas mãos dos militares.

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Faixa exibida nas manifestações de março de 2015 em defesa de reformas políticas, contudo, através dos militares.

Ora, vê-se novamente o paradoxo de pessoas que saem às ruas em um ato democrático, nutrindo total desprezo pela democracia. Pelo que demonstram, ao invés de lutarem por maior participação política, de juntarem forças aos movimentos sociais e clamarem por lideranças coletivas, desejam ver implantado regimes baseados em lideranças individuais e fortes, que imponham a ordem com armas na mão. Como se isso não fosse suficiente, a faixa ainda apela ao uso de imagens desrespeitosas, tal como a mão com quatro dedos dentro do círculo de proibição para fazer referência ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Fica claro, uma vez mais, que parte do problema é o ódio que uma porção da sociedade nutre em relação a este homem. Mais do que isso, o terror que sentem ante a possibilidade de Lula vir a assumir novo mandato presidencial em 3 anos e meio, colocando em xeque o pretenso apolitismo do movimento. Se não for possível derrubar agora, o objetivo é o enfraquecimento do partido de Lula, o quanto for possível, de modo que até mesmo uma candidatura seja inviável no pleito de 2018.

Imagens como são constrangedoras. Confesso que não imaginava ver uma parte significativa da população brasileira saindo às ruas, apenas 30 anos após a derrocada do regime militar, clamando por uma intervenção militar. Ao contrário do que uma das faixas propunha no último domingo, penso que a Reforma Política deve ser feita pelo povo de modo a reforçar as instituições e não enfraquecê-las ou destruí-las. Precisamos urgentemente dessas reformas, mas não para limitar ainda mais o poder popular. Parece estranho ter que vir aqui defender o óbvio.

Tudo isso me entristece muito, pois vejo que no fundo do problema, como sempre, está a ignorância da população, sendo utilizada como instrumento pelas poucas pessoas que sempre estiveram no poder. Portanto, a conclusão a que chego é que nossa luta, em boa medida, ainda é contra a ignorância. Foi por isso, aliás, que passei a dedicar minha vida à docência. No entanto, a maneira como a educação vem sendo encaminhada no Brasil (e no resto do mundo), não oferece muitas perspectivas para uma mudança significativa em direção a uma sociedade mais crítica e com maior participação na vida política. Muito pelo contrário, cada vez mais os jovens são estimulados a deixarem a vida política nas mãos de quem ela sempre esteve.

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