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As Leis e o Preconceito: mais algumas considerações a respeito das cotas raciais

Neste domingo, o Estado de S. Paulo publicou matéria sobre pesquisa do Ibope que aponta apoio de quase dois em cada três brasileiros às cotas em universidades públicas tanto para negros quanto para pobres como para alunos da escola pública. Posto em números, a pesquisa revelou que nada menos do que 62% da população apoia a implementação dos três tipos de cotas.

Segundo a reportagem, o número dos que mais se opõem às cotas para pobres, negros e alunos da rede pública é maior entre brancos, entre brasileiros das classes de consumo A e B, entre pessoas que cursaram faculdade e entre os moradores das capitais e das Regiões Norte e Centro-Oeste.

Já o apoio à política de cotas nas universidades públicas é proporcionalmente mais alto entre quem estudou da 5.ª à 8.ª série, entre os emergentes da classe C, entre nordestinos e moradores de cidades do interior do País.

DIFICULDADE DE AUTO-CLASSIFICAÇÃO EM TERMOS RACIAIS

Na contramão do que revela a pesquisa Ibope, o cientista social Demétrio Magnoli acredita que a inexistência de leis raciais no Brasil teria levado o brasileiro a ter uma certa dificuldade em se auto-classificar em termos raciais e, por isso, acabou levando à criação de uma categoria de classificação denominada “pardos” que agrupa todos os indivíduos que se identificavam como “moreninho”, “queimadinho”, “açúcar queimado” ou “marronzinho” nos censos nacionais.

Como já destacamos em outros posts, Demétrio Magnoli faz questão de falar das leis raciais e destacar da histórica inexistência dessas leis no Brasil, pois defende que a implementação de cotas raciais em nosso país é um retrocesso nesse sentido. Para Magnoli, a sanção de uma lei instituindo as cotas pode levar a uma divisão racial do país, o que, em sua perspectiva, inexiste em nosso país.

Durante entrevista ao Programa do Jô, Magnoli tentava explicar como teria surgido a categoria pardo no Brasil, afirmando que esta seria fruto da inexistência de leis raciais no país, quando Jô o interrompe para relembrar que, embora a regra da gota de sangue única jamais tenha existido no Brasil, o racismo sempre existiu e de forma bastante pronunciada. Magnoli concordou com Jô, mas imediatamente reafirmou que a inexistência de leis raciais acabou fazendo com que as pessoas passassem a se definir de modos não raciais durante os recenseamentos, isto é, definiam-se como moreninhos, queimadinhos, marronzinhos, etc. Novamente Jô Soares interrompe seu convidado para dizer que, embora as auto-definições sejam não raciais, elas revelam certa dose de preconceito, o que Magnoli imediatamente relativizou ao afirmar que, nesses casos sempre se tratará de preconceitos e de que, as vezes pode ser preconceito, as vezes não, já que os brasileiros possuem essa “certa dificuldade em se auto-classificar em termos raciais”.

Abaixo segue o trecho da entrevista de Demétrio Magnoli ao Programa do Jô ao qual me refiro.

É certo que as respostas dadas por indivíduos que se auto-classificam nos recenseamentos como sendo moreninhos, queimadinhos ou marronzinhos podem até, em alguma medida, estarem relacionadas com uma certa dificuldade na hora de promoverem essa auto-classificação, mas cabe aqui levantar algumas perguntas que julgo serem pertinentes a essa discussão:

  1. O que causaria essa dificuldade na cabeça do indivíduo na hora em que ele vai se auto-classificar em um dos grupos étnicos previstos no formulário do recenseador?
  2. Somente a ausência de leis raciais no Brasil dá conta de explicar por que indivíduos mestiços se auto-classificam como “moreninhos, queimadinhos ou marronzinhos”?
  3. Será que o racismo e o preconceito, arraigados na sociedade brasileira, não desempenham nenhum papel na hora do indivíduo proceder com esta auto-classificação? 
  4. Em um país marcado por mais de três séculos de escravismo [e por políticas de branqueamento], não é possível de se imaginar a existência de um forte desejo dos mestiços de não se associarem com a cor estigmatizada pela escravidão, que ainda hoje faz milhões de vítimas do preconceito e do racismo no Brasil?

Oras, entendo que muito mais forte do que as leis raciais, o preconceito e o racismo da sociedade desempenham um papel muito mais importante (ainda hoje) na hora em que um indivíduo se auto-classifica como moreninho em um censo. Se é a cor da pele a principal característica a determinar se uma pessoa será vítima do preconceito e do racismo em uma sociedade, me parece bastante evidente que as pessoas evitem se identificar como pertencentes ao grupo cuja cor da pele é estigmatizada por essa sociedade. Ou não?

Tal fenômeno não é novo e não aconteceu apenas com negros. No final do século XVIII, por exemplo, um militar paulista de nome José Arouche de Toledo Rendon, escreve uma memória sobre as aldeias de índios na Província de São Paulo, segundo observações que ele mesmo realizou ainda no ano de 1798, quando ainda era Diretor Geral de todas as aldeias da Província. Nessa memória, ao falar das estatísticas da Província de São Paulo Rendon nos revela o seguinte:

“Vendo-se os mapas estatísticos da província de São Paulo, encontra-se um grande número de brancos. Mas não é assim; a maior parte é gente mestiça, oriunda do grande número de gentio, que povoou aquela província, e que não teve a infelicidade de ficar em aldeias. Eles já têm sentimentos, e quando na fatura das listas são perguntados pelo cabo e oficiais de ordenanças, declaram que são brancos.” (1)

Aqui o fenômeno observado por Rendon é bastante semelhante ao que vínhamos discutindo anteriormente. Os mestiços de índios, buscando uma forma de evitar toda sorte de preconceitos sofrida pelos índios, quando perguntados pelos oficiais do recenseamento da época sobre sua “raça”, declaravam ser brancos. Será que aqui também Magnoli enxergaria uma “certa dificuldade de auto-classificação” dos indígenas pela inexistência de leis raciais no país?

A LEI E O PRECONCEITO SEGUNDO SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Relendo alguns textos clássicos da História do Brasil, encontrei um precioso trecho em texto escrito por Sérgio Buarque de Holanda (A Herança Colonial – Sua Desagregação), que foi publicado no primeiro volume do Brasil Monárquico da História Geral da Civilização Brasileira.

No trecho que destacaremos a seguir, ao citar um francês que escrevia sobre o Brasil em 1864, Sérgio Buarque de Holanda chama atenção para o fato de que este estrangeiro conseguiu observar nossos costumes e instituições sem a generosa simpatia que às vezes pode dissolver a acuidade da observação”. Mais ainda, para Buarque de Holanda Charles Expilly “assume a respeito uma posição bastante diversa da que hoje [1965] adotam os crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial””.

Acredito que, tal como Buarque de Holanda aponta, a generosa simpatia ao observar costumes e instituições brasileiras acabou mesmo dissolvendo a acuidade de observação de alguns intelectuais e, embora o texto tenha sido escrito por Sérgio Buarque na década de 1960, sua crítica ainda é bastante atual aos “crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial”, categoria em que parece se enquadrar o Sr. Demétrio Magnoli.

IGUALDADE DE DIREITOS E “ARISTOCRACIA DA PELE”

Também esta idéia da libertação dos nasciturnos, que será vitoriosa em 1871, ou outras que visassem à melhoria na sorte dos cativos, não andaram longe de ser abraçadas por alguns espíritos mais lúcidos dos primeiros decênios que se seguem à Independência, mesmo quando professavam, como José Bonifácio, opiniões moderadas. Só depois, com a grande expansão da lavoura do café no centro-sul do país, mormente na província fluminense, é que tendem a ser postergadas quaisquer medidas em prol da emancipação dos escravos, ao mesmo tempo em que, por isso mesmo, passam a ganhar nova base econômica os esforços no sentido de uma acentuada centralização administrativa. De outro lado, êsse desenvolvimento da escravatura irá ser obstáculo à expansão, entre brasileiros, de uma autêntica burguesia. O que teremos aqui, além de senhores e de escravos, e sem contar os mercadores e mecânicos, muitos dêstes estrangeiros, ou os negros e mestiços livres, é uma população branca, em grande parte supostamente branca, formada, quase tôda, de possíveis candidatos à classe dominante.

Desde os graus inferiores dessa classe, que em dado momento podem aachar acolhida no oficialato da guarda nacional, empolga-se vivamente o empenho de destacar-se por todos os modos, esquivando-se, para começar, aos trabalhos que sujam as mãos, da massa de negros, escravos, à qual são relegados êsses trabalhos. Acima da raia divisória que forçosamente separa livres de escravos, pode-se talvez dizer que prevalece uma continuidade social isenta de intransponíveis barreiras. A menos que se admita a presença, talvez, de barreiras entre indivíduos legalmente livres e que só se distinguiriam pela côr da pele ou por outros traços físicos mais ou menos pronunciados: tenaz sobrevivência da separação entre os prêtos escravos e os brancos europeus ou crioulos. Uma color line? Certo francês que escreveu nos anos em que no norte do hemisfério se travava a Guerra de Secessão [1861-1865] e que via os nossos costumes e instituições sem a generosa simpatia que às vezes pode dissolver a acuidade da observação, assume a respeito uma posição bastante diversa da que hoje adotam os crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial”.

No Brasil, escreve, com efeito, Charles Expilly, a linha de demarcação é tão rigorosa quanto em Richmond ou em Nova Orléans. A lei “reconhece que os homens de côr são aptos ao exercício de empregos públicos. Nos postos mais elevados acham-se mulatos. E no entanto a lei e o preconceito são podêres distintos, que é mister não confundir”. “Pouco importa”, escreve ainda, “que a Constituição proclame a igualdade dos cidadãos; mais forte do que a Constituição, o preconceito erige uma barreira invencível – ao menos até aos dias de hoje [1864] – entre pessoas separadas pelos matizes da pele. Oferecem-se galões, condecorações ou títulos aos homens de côr, mas ninguém concerta aliança com êles”.

Logo adiante acrescenta o mesmo autor: “O operário mais pobre não trocaria a côr de seu rosto, se fôr branca, pela de algum mestiço, ainda que a troca lhe devesse render milhões. De fato êle é Ilustríssimo Senhor, tanto quanto o advogado, o deputado, o negociante, e embora despojado dos bens da fortuna, considera-os de igual para igual. O mulato mais opulento, e os há senhores de riquezas principescas, é seu inferior; êle bem o sabe, e não duvidará em chamar-lhe a atenção para êste ponto se o julgar necessário. Por miserável que seja, arrima-se da convicção de que pertence à aristocracia do país, a única aristocracia que conhece, a única de que verdadeiramente se gaba: a aristocracia da “pele” (2).

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(1) José Arouche de Toledo Rendon. Obras. São Paulo, 1978, p. 40.

(2) Charles Expilly, Les Femmes et les Moeurs du Brésil, Paris, 1864, págs. 253 e segs.

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