Uma entrevista de Sérgio Buarque de Holanda

Lendo o blog Saiba História, do colega e professor Adinalzir, encontrei uma verdadeira pérola: uma entrevista concedida por Sérgio Buarque de Holanda ao jornalista João Marcos Coelho, então trabalhando para a Revista Veja. Para o professor Victor Hugo Abril, do curso de pós-graduação da FEUC, esta é uma entrevista importante para quem deseja discutir as questões do Primeiro Reinado no Brasil e foi justamente por isso que o professor Adinalzir acabou publicando-a em seu blog.

Publicada originalmente em Janeiro de 1976, a entrevista acabou sendo republicada em Setembro de 2oo3 numa coletânea de entrevistas para compor a edição de aniversário dos 35 anos da publicação. Nela, João Marcos Coelho procura explicar as observações e as conclusões de Sérgio Buarque de Holanda, um historiador nascido em São Paulo em 11 de julho de 1902 e falecido em 1982. Autor de uma obra colossal, que procura dar conta da tradição colonial brasileira a partir do surgimento da ideia de nação, durante o Império, e da modernização do país, a partir da República. Sérgio Buarque de Holanda é considerado até hoje um dos mais eminentes intelectuais brasileiros do século XX e  juntamente com Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, foi um dos “grandes explicadores do Brasil”, isto é, conseguiu criar uma obra tão importante, que tornou o país mais inteligível aos próprios brasileiros.

Abaixo segue a íntegra da entrevista concedida por Sérgio Buarque de Holanda à Revista Veja de Janeiro de 1976.


Entrevista: Sérgio Buarque de Holanda 

A democracia é difícil

As observações e as conclusões de um
especialista com base no exame da história

João Marcos Coelho

A caminho dos 74 anos, que completará em julho, Sérgio Buarque de Holanda é, ao mesmo tempo, um impecável historiador e um fascinante contador de histórias. Grande viajante, entremeia reflexões sobre o exercício da História com finas observações do tipo: “Me diverti muito quando estive na Grécia. Lá, os carregadores de bagagens são chamados metaphoras, e os que esperam na fila do ônibus estão em ekstasis. É agradável, mas também chocante, você se deparar de repente com as palavras sendo utilizadas em seu sentido rigoroso, não é?”

Seu primeiro livro, “Raízes do Brasil” (1936), forma, junto com “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr., o grande tripé básico da cultura brasileira no século XX. Começou a lecionar na Universidade do Distrito Federal, transferindo-se em 1938 para o Instituto Nacional do Livro. Dez anos depois passou a ocupar a cadeira de História Econômica do Brasil na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A partir de 1956, assumiu o posto de catedrático de História da Civilização na Universidade de São Paulo. Pronunciou conferências e deu cursos nos Estados Unidos, França, Itália, Suíça e Chile. Entre as universidades americanas, lecionou em Colúmbia, Harvard, Califórnia, Indiana, Yale e na New York State University.

Desde 1960 dirige a “História Geral da Civilização Brasileira”, já em seu sétimo volume publicado: “Do Império à República”. Embora negue predileção pelo período do Segundo Reinado, Sérgio diz que “basicamente a coleção é um trabalho de equipe, mas este volume é apenas meu. Eu ia fazer apenas uma resenha do aspecto político do Império, mas ela acabou virando um livro, publicado como último tomo do século XIX. Um pouco cansado com o trabalho de coordenar uma coleção desse porte, pedi um sucessor para a parte da República. E Bóris Fausto foi o escolhido”. Contudo, ainda este ano Sérgio pretende publicar uma nova versão de “Do Império à República”, consideravelmente ampliada.

Confortavelmente sentado em uma poltrona, numa das salas – todas literalmente atulhadas de livros – de sua casa normanda no bairro do Pacaembu, em São Paulo, Sérgio (ou o “pai do Chico Buarque”, como adora ser chamado) falou sobre a História. E também contou muitas outras.

VEJA – O que o senhor modificaria, hoje, em seu livro “Raízes do Brasil”, escrito na década de 30?

SÉRGIO BUARQUE – Muita coisa. Eu escrevi dois de seus capítulos na Alemanha, quando lá morei, entre 1928 e 1931. A idéia básica era a de que nunca houve democracia no Brasil, e de que necessitávamos de uma revolução vertical, que realmente implicasse a participação das camadas populares. Nunca uma revolução de superfície, como foram todas na História do Brasil, mas uma que mexesse mesmo com toda a estrutura social e política vigente.

VEJA – E a ideologia brasileira do homem cordial, que vem da passagem do século e o senhor de certa forma adota, ainda valeria?

SÉRGIO BUARQUE – Critica-se muito, mas poucos entenderam o verdadeiro sentido da expressão homem cordial. Quando falo cordial, não é no sentido de “cordiais saudações”, como Cassiano Ricardo o fez. A cordialidade com que caracterizei o brasileiro pode ocorrer mesmo em situações de confronto, fatos comuns em nossa história. Nesse sentido, ela tem sido incruenta. Tem havido muita discussão, recentemente, a respeito da História do Brasil, se ela é cruenta ou incruenta. Considero esse debate bizantino. É inegável, porém, que a independência, a proclamação da República e mesmo as revoluções de 1930 e 1964 se fizeram sem derramamento de sangue. Portanto, a cordialidade continua valendo para a nossa História.

VEJA – O que o levou a tentar explicar globalmente o caráter nacional brasileiro?

SÉRGIO BUARQUE – Hoje, eu não me aventuraria mais a tentar uma empreitada dessa espécie. Simplesmente porque os tempos são outros. Eu estava muito influenciado pelo sociólogo alemão Max Weber. Aliás, foi naquela mesma década de 30 que surgiram outras obras brasileiras cuja característica também era a de tentar a grande síntese: “Casa Grande & Senzala”, “Formação do Brasil Contemporâneo”. Há pouco tempo uma editora francesa, a Gallimard, me propôs a tradução de “Raízes do Brasil”. Pediram-me também um ensaio, que seria publicado na edição francesa, atualizando minhas idéias. Tentei, mas acabei desistindo. O livro está superado e plenamente datado. Minhas preocupações eram outras. Não tem sentido reescrever eternamente uma mesma obra.

VEJA – Quando o senhor afirma que no Brasil nunca houve democracia, isso talvez signifique que, num certo sentido, as massas populares jamais participaram do jogo político nacional?

SÉRGIO BUARQUE – Claro. No Brasil, sempre foi uma camada miúda e muito exígua que decidiu. O povo sempre está inteiramente fora disso. As lutas, ou mudanças, são executadas por essa elite e em benefício dela, é óbvio. A grande massa navega adormecida, num estado letárgico, mas em certos momentos, de repente, pode irromper brutalmente.

VEJA – Em quais momentos esse despertar teria ocorrido?

SÉRGIO BUARQUE – Até agora, todas as revoluções dentro da História do Brasil foram de elites, civis ou militares, mas sempre elites. E, quando a questão se restringe a querelas elitistas, o processo caminha como numa briga de família: aparece um primo, um tio, ou um amigo da família com bom relacionamento com ambas as partes capaz de contornar diplomaticamente o confronto direto. E é exatamente no conchavo que pode surgir a figura do homem cordial. Por isso a democracia, que nasceu aqui num mal-entendido, percorreu em nossa História um caminho inusitado. Ou seja, foi murchando aos poucos.

VEJA – Como se deu esse esvaziamento?

SÉRGIO BUARQUE – Pela Constituição de 1824, somente os escravos (porque dependiam do senhor), os religiosos em regime claustral, as mulheres e os menores não votavam. Ela permitia o voto dos analfabetos, dos libertos. O censo pecuniário (mínimo de renda mensal para poder votar) era de 100 mil-réis – esta quantia, só os indigentes não conseguiam obter. Era uma Constituição relativamente democrática. Em 1846, houve uma reforma, mas só para aumentar a renda mínima, devido à desvalorização da moeda, de 100 para 200 mil-réis. Havia duas espécies de participantes do processo eleitoral: os votantes, que tinham o direito de escolher os eleitores; e estes, que, por sua vez, elegiam os deputados e senadores. Os primeiros constituíam toda a massa ativa da população, mal ou bem participando realmente do jogo político. Na década de 70, em pleno Segundo Reinado, os partidos Liberal e Conservador se uniram para lutar por eleições totalmente diretas. Com a passagem dos votantes, grande maioria da população, para a condição de eleitores, entretanto, a democracia sofreu um golpe, pois a renda mínima foi muito aumentada (400 mil-réis, sujeitos a comprovação), que por sua vez era discutível. Isso alijou os antigos votantes e restringiu o número de eleitores de 1,5 milhão para pouco menos de 300 000. Tanto é que um estudo, coordenado por Santana Nery, publicado em Paris, em 1889, afirmava: “O Brasil é o país que tem menor número de votantes: apenas 1,5% da população tem esse direito”. Computando-se as habituais abstenções, não se chegava a 1 %. Somente em 1930, quando a massa popular votava, subiu-se para 5%. Então, veio o freio da revolução, que sustou o processo eleitoral por algum tempo.

VEJA – Seria correto afirmar que no Brasil sempre se confundiram as palavras democracia e liberalismo?

SÉRGIO BUARQUE – Evidente. O liberalismo pode perfeitamente sobreviver sem a prática da democracia, e isso é o que sempre aconteceu no Brasil. O substantivo liberal surgiu nas Cortes de Madrid, entendido como oposto ao servil, ou iliberal. Dicionarizado em 1803, no Brasil ainda significava pessoa generosa, dadivosa. Em toda a História do Brasil, porém, a palavra é freqüentemente usada como sinônimo de concessão por parte das elites dominantes. O próprio dom Pedro I, quando dissolveu a Assembléia Constituinte de 1823, afirmou que a Constituição que outorgaria era duplicadamente mais liberal do que a elaborada pelos constituintes. “Quero uma Constituição para o povo, não pelo povo”, chegou a dizer, deixando claro que apenas com sua permissão se podia praticar a liberdade. Isso pairou idealmente em todo o Segundo Reinado, embora jamais tenha existido na prática.

VEJA – Quer dizer que a democracia sobreviveu no Brasil apenas quando era bom o humor das elites dominantes?

SÉRGIO BUARQUE – Sim. E alguns políticos mais lúcidos perceberam isso já no século passado. Nabuco de Araújo, em 1869, dizia que nós tínhamos liberdade, ou liberalismo, mas só nas capitais. No interior, quem resolvia era o capanga, o prefeito ou o chefe de polícia. Em um discurso particularmente inflamado, chegou a afirmar que “a liberdade existe para nós, homens de gravata lavada, e não para o povo”. Na época, usava-se uma gravata de seda ou linho, com colarinho alto, com um nó triplo bastante saliente, colorindo o peito e forçando a pessoa a uma posição sempre altiva. E a cor, obrigatoriamente branca. Com o calor do Rio de Janeiro e sua situação urbanística (para chegar ao Senado, na antiga rua do Areal, era preciso passar pelo Campo de Santana, onde haviam capim, brejos e burro soltos), o consumo de gravatas diárias chegava a cinco ou seis. E naturalmente era preciso ter dinheiro para manter esse enorme estoque. Outro político contemporâneo de Nabuco de Araújo, Teófilo Otôni, cognominado o “Tribuno Liberal”, numa circular para seus eleitores mineiros, usou expressão semelhante: “O que eu quero é a democracia de classe média, a democracia de gravata lavada”.

VEJA – Ao que parece, eles só pensavam numa democracia higienicamente asseptizada.

SÉRGIO BUARQUE – Na verdade, a palavra democracia era mal vista pelos liberais brasileiros no começo do Império. Talvez devido a uma identificação com os ideais de Robespierre, o que, os levava a associar democracia com anarquia. Quando ganhou status, em meados do Império, a palavra já tinha perdido seu sentido original. E passou a significar liberalismo. Aliás, outro bom exemplo é o de frei Caneca, que em um de seus escritos afirmou: “É impossível viver com esta gentalha composta de mulatos e mestiços”, deixando entrever um nítido desprezo pelas classes populares.

VEJA – E a partir da República? Continuou o processo de esvaziamento da democracia?

SÉRGIO BUARQUE – Sim. O período republicano se iniciou entre nós com uma vitória de Rui Barbosa: o chamado censo literário, com que, finalmente, se barrou o acesso dos analfabetos ao voto. Um dos argumentos constantes do grupo vitorioso era o de que uma parte da população ainda não estava preparada para participar do jogo democrático. Era preciso esperar o progresso, que naturalmente elevaria a massa à condição de ‘alfabetizada e, portanto, apta a votar. Esta, no fundo, é uma idéia reacionária: não é preciso lutar, o progresso há de vir, independentemente de nossa vontade. Mais de oitenta anos se passaram e nem com o Mobral o problema foi resolvido. Aliás, José Bonifácio, “o Moço”, que adotou posição contrária à de Rui Barbosa (um seu ex-aluno a quem muito respeitava) usava argumentos bastante convincentes: “Por que os analfabetos não podem votar? Amanhã vão dizer que os surdos também não podem, depois os mudos, e depois ainda só votarão as pessoas formadas em universidades: depois os epilépticos, conhecidos ou desconhecidos”. Em seguida, dirigiu-se ao governo: “Eu sou a Democracia… fostes para as alturas e eu fiquei. Não vos acuso.., neste país há lugar para todos. Pois bem, deixai também lugar para mim”.

VEJA – Como encarar a história brasileira, de 1930 em diante?

SÉRGIO BUARQUE – Certamente como uma nova versão, modernizada, da democracia de gravata lavada. Falar em democracia, hoje, todo o mundo fala. Inclusive os países comunistas. Até durante o nazismo mais de 90% da população alemã votava. Claro que pressionada e num jogo de cartas marcadas. Mas votava. A fachada da democracia sempre está presente, inclusive nos regimes autoritários e totalitários.

VEJA – Parecem coexistir hoje dois grandes grupos de historiadores preocupados com o Brasil. De um lado, os brasileiros, que, numa posição extremamente critica, procuram, grosso modo, reconstituir o que chamam de história da dependência. E, de outro, os chamados brazilianists, estrangeiros que têm dado preferência a certos temas da nossa História, como por exemplo, a escravidão, o Estado Novo e os governos da Revolução de 1964. Eles se completam, de alguma maneira?

SÉRGIO BUARQUE – Primeiro, é preciso esclarecer que o interesse pelo Brasil não é novo. Na década de 40, quando o presidente Roosevelt pôs em prática o que chamou de política de boa vizinhança, houve muitas teses sobre o Brasil. Até eu fui convidado a visitar os Estados Unidos para participar de um congresso sobre estudos brasileiros, durante três meses. Em 1965, em nova ida aos EUA para dar cursos, vivi como um nababo: me hospedei no Waldorf Astoria, um carro do ano com motorista à disposição, tudo por conta do governo americano. Agora, porém, essa nova vaga parece ter raízes mais profundas e duradouras. Os historiadores Richard Morse, Thomas Skidmore (autor de “De Getúlio a Castello”), Stanley Stein e Richard Graham me parecem os melhores. A explicação para a escolha de determinados temas é relativamente fácil: a escravidão, por exemplo, é um dos temas americanos permanentes. Quando ouviram comentários de que tinha havido no Brasil o bom senhor, e escravos unidos – graças a um livro de Frank Tannembaum, “Slave and Citizen”, e a edição inglesa de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre -, rapidamente o assunto virou moda. Já quanto aos temas contemporâneos, de Getúlio para cá, tive uma boa resposta quando, na Universidade de Berkeley, Califórnia, fiz esta pergunta a um brazilianist. Sua resposta: “Cuba”. A posição do Brasil como país estratégico, política e militarmente, tem se reforçado cada vez mais nos últimos tempos e por isso é preciso, do ponto de vista americano, conhecê-lo muito bem.

VEJA – Em que consistiu a contribuição dos brazilianists para a historiografia brasileira?

SÉRGIO BUARQUE – Existe um preconceito com relação aos historiadores americanos de que são ingênuos e pouco teóricos. Isso não é muito correto mas tem um fundo de verdade. Um amigo me contou que um dia encontrou um rapaz numa biblioteca americana preparando uma tese sobre o Renascimento. Perguntou-lhe se ele já tinha lido o celebérrimo livro de Jacob Burckhardt a respeito e obteve esta resposta: “Ainda não cheguei lá. Estou nos autores cujos nomes começam por A”. Isso ilustra a capacidade de coleta de material deles, espantosa em seu rigor e meticulosidade.

VEJA – Uma das críticas que se fazem, não somente ao historiador mas ao intelectual brasileiro em geral, é a de que ele tem a obsessão de ultrapassar rapidamente a realidade empírica e partir para a ensaística, ou interpretação teórica, sem bases sólidas.

SÉRGIO BUARQUE – Concordo integralmente, e é por isso que eu jamais escreveria de novo “Raízes do Brasil”. Principalmente porque o livro ficou no nível do ensaio. Não sou contra a ensaística ou a interpretação, mesmo hoje. Mas a pesquisa deve ser rigorosa e exaustiva. Se não, o resultado são apenas elucubrações, às vezes brilhantes, mas desvinculadas da realidade.

VEJA – De qualquer modo, não há jeito de escapar da ideologia?

SÉRGIO BUARQUE – Não. E é engraçado observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou, devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte – a Regência – os grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837, opondo-se aos moderados. O próprio Gilberto Freyre, quando surgiu, era tido como altamente revolucionário apenas porque usava palavrão, falava da vida sexual e era contra os jesuítas e a maçonaria. Grande parte do clero se voltou, decididamente, contra ele e contribuiu para forjar dele uma falsa imagem revolucionária.

VEJA – Os historiadores brasileiros têm tentado detectar as ideologias que determinam os fatos de nossa história e fazer uma revisão de tudo o que já foi dito?

SÉRGIO BUARQUE – A revisão da História não tem que ser absolutamente um momento privilegiado. Ela tem que ser feita a todo instante. A história não é prisão ao passado. Ela é mudança, é movimento, é transformação. E por isso estamos irremediavelmente presos a ideologias que na maioria das vezes são exóticas, pois não nasceram aqui. A atual geração de historiadores considera que a ideologia representa um pensamento falso. Mas eu pergunto: será possível assumir uma idéia que seja válida? Cada um de nós tem, no fundo, uma certa ideologia, um certo conceito de tempo. Para transcender isso, somente um gênio. E não devemos ficar eternamente de braços cruzados à espera desse ser excepcional, devorador de ideologias, que assumiria o ponto de vista da eternidade.

VEJA – Então, fazer história é reescrevê-la perpetuamente?

SÉRGIO BUARQUE – Eu diria, junto com Benedetto Croce, que toda história é história contemporânea. Ou seja, nós sempre privilegiamos um aspecto em função de nossa realidade. Por exemplo, quando Bismarck governava todo-poderoso a Alemanha, a Escola Prussiana de História, ao estudar a Grécia antiga, privilegiou muito as qualidades de Alexandre Magno, o homem forte que dominou toda aquela região por um bom tempo. Tudo isso em função de Bismarck. Nós contamos a história a partir da vivência cotidiana de nossos problemas, de nossa realidade. Os historiadores sempre foram e serão presa fácil de seu tempo.

13 Comentários

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13 Respostas para “Uma entrevista de Sérgio Buarque de Holanda

  1. E pensar que a VEJA já recebeu em suas páginas um intelectual como ele.

    Hoje em dia? Apenas cabras, espinafre e porcos.

    • Brilhante, especialmente considerando que em 1976 em pleno vigor da ditadura militar ainda não havia o moderno movimento político dos anos 1980, nem o sindicalismo nem o movimento pelas ´diretas já´, SERGIO nos esclarece que ´Raízes´ é mais um ensaio que história o que torna relevante seu diagnóstico mais relevante: o que nos diferenciava da sociedade norte-americana, como povo, é que não estávamos submetidos à prisão do pertencimento racial. O ´ser nacional´ era livre e mutável. Não imaginava que em 2012 o governo do partido que ajudou a fundar estaria impondo aos brasileiros o que jamais tivemos: a idéia de pertencimento racial e políticas públicas com identidade racial.

  2. Olá José Roberto F. Militão,

    Obrigado pelo comentário. É bom contar com você por aqui, muito embora eu não concorde com sua última frase, especialmente por que acredito que um governo não consegue impor a um povo “ideias de pertencimento racial” através de leis que promovam ações afirmativas. Os objetivos dessas leis, como veremos a seguir, são outros e visam acabar com algo que elas detectaram haver em nossa sociedade: a discriminação racial.

    Embora saibamos que não existam raças e que o povo brasileiro, como um todo, não esteja preso a ideia do pertencimento racial, a discriminação pela cor da pele existe e, ao meu ver, está institucionalizada no país, em todas as classes sociais, quer seja na esfera pública, quer seja na esfera privada. Do fato de o brasileiro, enquanto povo, “não estar submetido à prisão do pertencimento racial”, de ser “livre e mutável”, como interpretou Sérgio Buarque de Holanda, não implica necessariamente que parte desse povo, em especial aquela parte que determina as leis e governa a nação, não olhe para si de maneira distinta, criando leis para garantir sua permanência e a do seu grupo no poder político e econômico da nação. Como bem sabemos, uma coisa é o povo brasileiro considerado em seu todo, outra coisa são os grupos governantes que determinam as leis desse país e outra coisa ainda são os indivíduos. Ou seja, o povo brasileiro, tomado em seu conjunto, não está submetido à prisão do pertencimento racial, mas grupos e indivíduos estão e agem na sociedade de acordo com sua ideia de pertencimento racial. Mais do que isso, tais grupos e indivíduos reproduzem e veiculam cotidianamente essas ideias, fazendo com que até mesmo os excluídos por este grupo acreditem na ideia que eles veiculam. Justamente por isso, em uma sociedade mestiça, como a brasileira, podemos ver a discriminação racial acontecendo inclusive entre as vítimas da discriminação. Exemplo típico do que estou falando é a atuação de policiais nas periferias das grandes cidades.

    Trocando em miúdos, em um país com grande número de afro-descendentes, é incompreensível que a representatividade deste grupo nas instituições de ensino superior públicas quase não se faz perceber. De modos diferentes, no decorrer do desenvolvimento histórico deste país, este grupo de pessoas acabou sendo impedido de ingressar nos bancos das universidades públicas, através de mecanismos bem arquitetados que atuaram em benefício de um outro grupo de indivíduos que são justamente os que controlam as “regras do jogo” de quem deve ou não deve entrar nas universidades públicas.

    Oras, sabendo dessa perversa discriminação institucionalizada nos mecanismos de acesso às universidades públicas, entendo que é dever do Estado, sim, promover políticas de ações afirmativas com o objetivo de incluir este grupo que foi alijado do ensino superior por mais de um século. Tais políticas públicas estão voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos perversos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Como bem disse o ministro Joaquim Barbosa em seu voto quando a constitucionalidade das cotas raciais estava em questão no STF: “A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade”,

    Atenciosamente,

    Rogério Beier

    • ROGÉRIO,
      Ora, se você reconhece que o ´povo brasileiro não tem pertencimento racial´ conforme o ´ser nacional´ de SERGIO, portanto, não se justifica a adoção de políticas estatais em que o governo transfere para a sociedade o custo, perverso custo, e o ônus das políticas raciais. Veja Rogério, sem investir nenhum real do orçamento, como fez o populista governador Garotinho-RJ, ele retirou milhares de vagas de estudantes pobres, por serem brancos das escols públicas, e as entregou a milhares de jovens estudantes em razão de um pertencimento racial da ´raça negra´ falacioso, que você concorda não termos esse pertencimento.

      Assim, basta ver quem perde as vagas são os piores colocados no vestibular/enem. Os mais privilegiados, oriundos de famílias ricas, são os primeiros colocados não atingidos pelas ´cotas´ de segregação de direitos raciais. Evidente, não? O custo social difuso é que esse tipo de política pública transfere para os mais pobres uma disputa racial sem fulcro na nossa realidade histórica que SERGIO, FREYRE, CAIO, DARCY, além de outros historiadores nos atestam: não temos disputas raciais, embora tenhamos o racismo e discriminações cuja fonte é a crença em ´raças humanas´ e sua hierarquia imposta pela ideologia do racismo. Portanto o que temos que combater é a crença em ´raças´ jamais o estado fazer e nos impor a sua legitimidade.

      O simples fato da orígem dessas políticas de segregação de direitos raciais terem orígens em dois conservadores da direita brasileira contemporânea, SARNEY autor do primeiro projeto de lei e avalizador do trâmite legislativo no Congresso e GAROTINHO, evidenciam que não se tratam de políticas públicas progressistas, tratando-se, apenas, de impor aos brasileiros a prática de pertencimentos raciais que nos serão desastrosos: sementes de ódios raciais entre os mais pobres.

      Por fim, por ora, progressistas são políticas públicas de qualidade, e o Bolsa Família do LULA, comprovam isso: 80% dos beneficiários são pretos e pardos e ninguém afirma que são políticas públicas raciais, nem os beneficiários ficarão com o estigma de um benefício em razão da ´raça´ como nos impõe as leis de cotas raciais.

      • Caro José Roberto,

        Insisto que não se deve confundir “povo brasileiro”, com grupos ou indivíduos. Parece-me que insiste em cair nessa confusão. Acho que fui claro em meu texto acima quando diferenciei que uma coisa é o “povo brasileiro” não ter pertencimento racial, outra coisa são os grupos e indivíduos que fazem parte desse povo que não se identificam enquanto “mestiços”. Esses são os grupos e indivíduos que tem estado no poder de nosso país desde a Independência. Criaram leis e mecanismos para perpetuá-los no poder e excluir os indesejáveis.

        Oras, se você leu bem a entrevista concedida por SBH à Veja, viu que em todos os momentos que ele fala sobre democracia, registra que este povo brasileiro jamais atingiu o poder, que este só esteve nas mãos de determinados grupos. Não dá pra fazer uma ligação direta, como a que você faz, de que se eu concordo com a definição de Sérgio Buarque de Holanda de povo brasileiro, eu tenho que ser contra as cotas. Não mesmo! Exatamente por que a ação dos indivíduos que tomaram conta do poder, criou mecanismos que impedem o acesso de afro-descendentes ao ensino superior. Joaquim Barbosa chamou atenção para isso em seu voto e ainda disse que quando esse bloqueio é intransponível, as ações afirmativas são incontornáveis. Outro voto cuja leitura é interessante, é a do ministro Levandowsky, que chama atenção para o fato das universidades públicas serem os celeiros de nossa elite. Faz sentido bloquear o acesso dos indesejáveis a este celeiro e reservá-lo apenas para si.

        Enfim, a realidade histórica descrita por Sérgio, Caio, Freyre e Darcy em seus livros, ao contrário do que você falou, movem o Estado a tomar ações para acabar com a desigualdade de oportunidades criada por um mecanismo cruel de exclusão dos afro-descendentes do ensino superior. Como destaquei acima, o fato desse povo brasileiro jamais ter tomado o poder de fato no país, justifica que se crie ações afirmativas para quebrar o círculo vicioso que não permite que este povo tenha uma formação de qualidade e, assim, permanece fora do círculo do poder.

        Atenciosamente,

        Rogério Beier

  3. Retrato do que estou falando: coluna de Danuza Leão publicada hoje, dia 25 de novembro de 2012, na Folha de S. Paulo.

    “Ir a Nova York ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas, por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça?”

    Veja a íntegra da coluna (se tiver estômago) em:
    http://www1.folha.uol.com.br/colunas/danuzaleao/1190959-ser-especial.shtml

    São desses indivíduos, e o grupo ao qual eles fazem parte, aos quais estou me referindo aí em cima. Em grande medida, eles ainda são os que determinam as leis e controlam as regras do jogo político e econômico deste país.

    • ROGERIO,
      Vejo na coluna da Danusa, que somente li em razão de teu comentário tentando justificar uma postura política equivocada com a onda de racialismo que o PT tem comandado – uma política reacionária da direita mais reacionária – e percebi, simplesmente, uma crônica social de nosso tempo, em que ela, embora cronista pouco talentosa mas frequentadora das altas rodas da elite, tem condições de retratar. E não percebo que ela tenha qualquer pretensão literária, mas apenas esse relevante contar da história contemporânea, o que, teus colegas historiadores apreciarão muito no futuro. Com a devida proporçao, graças a Machado de Assis fez isso e Nelson Rodrigues conhecemos bem o cotidiano e o caráter da nossa sociedade de passado que não vivemos. Também e considero útil que cronistas registrem o dia a dia e os humores de de seu tempo e até mesmo seus preconceitos e os preconceitos sociais. Embra faça política desde os 13 anos, no antigo ginásio dos anos 1960, compreendo que o mundo não se limite às nossas lides políticas.

      Repugnante ou não, o que ela retrata uma realidade de seu tempo e não tenha dúvidas: muitos pensam exatamente como ela retrata. Vejo também que a conclusão da coluna remete a uma reflexão que nos interessa: “… Para os muito exigentes, passa a existir uma única solução: trancar-se em casa com um livro, uma enorme caixa de chocolates –sem medo de engordar–, o ar-condicionado ligado, a televisão desligada, e sozinha. E quer saber? Se o livro for mesmo bom, não tem nada melhor na vida. Quase nada, digamos. “

  4. Jose Sanchez

    A fraude caluniosa do CENSO do IBGE que desrespeitou o grito unissono do povo brasileiro quando afirmou que pertenciam a milhares e milhares de cores vai ser exposta.

    Daqui a pouco vao legalizar absurdos do tipo: 80% dos carecas tem mais dificuldade de arrumar namoradas, portanto vamos fazer uma lei que proiba as pessoas com cabelo de relacionar com mais de 50% das mulheres.

    Ou entao: Nao existem arquitetos com olho de cor caramelo, e para corrigir isso, vamos separar 10000 bolsas no exterior para essas pessoas, pois eese e o quadro de justica social que o Brasil precisa.

    A insanidade, definitivamente, tomou conta desse pais.

    Porque nao exigem teste de DNA para esclarecermos os fatos? Isso seria bem idiota mas muito mais cientifico do que esta sendo feito hoje. Basta um teste por pessoa, durante a vida toda, para desmascarar esta profunda fraude de que esta institucionalizando o odio racial em um pais que de vira-latas. E o que muitos nao enxergam e que ser vira-latas e a melhor coisa do mundo.

  5. Prezado Rogério
    Passando para agradecer a divulgação da entrevista do Sérgio Buarque de Holanda por aqui. A blogosfera histórica é isso ai. Parceiros sempre unidos.
    Um grande abraço!

  6. Elisabeth Spinelli de Oliveira

    Rogério, excelente matéria, excelentes discussões e excelente posicionamento (o seu) em relação a questão da política de ações afirmativas. Obrigada e bom Ano de 2014!
    l

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