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[MILTON SANTOS] O tempo nas cidades

Este texto foi extraído a partir da transcrição da conferência do professor Milton Santos na mesa-redonda “O tempo na Filosofia e na História”, promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989.

A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001.


Milton Santos em frente ao prédio de Geografia/História na FFLCH-USP.

O texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar (espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós-graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da idéia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realização da História, de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.

A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se passa e eventualmente do vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.

O tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo convergem e divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.

Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação.

Nesse momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como seqüência – o transcurso – o tempo como raio de operações – o espaço – e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações, que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.

Na cidade atual, essa idéia de periodização é ainda presente; é presente nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que são também representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.

Ora, essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.

Esse momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Um sistema de cartas coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisão, permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.

Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e reapareceram agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.

Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço.

Essa temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível através desse trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do tempo, o que permite, por consegüinte, nesse espaço tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.

É esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam aos agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, criam-se condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.

Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.


Milton Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em 24 de junho de 2001.

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Projeto chinês para a construção de um novo canal ligando Atlântico e Pacífico na Nicarágua ganha repercussão negativa nas revistas Nature e Smithsonian

Há umas semanas atrás, enquanto me reunia com a orientadora para definir os próximos passos de minha vida acadêmica, vi sobre a mesa da sala dela a edição da Revista Samuel, de dezembro de 2013, que trazia uma matéria sobre uma empresa chinesa que quer construir uma nova ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico através da Nicarágua. Na hora, por conta das atividades que estava desenvolvendo com a professora, não consegui ler a reportagem e deixei para ver na Internet, mas qual não foi minha surpresa quando descobri que o conteúdo da matéria não estava disponível para consulta online.

Buscando sobre o assunto no Google, encontrei duas reportagens publicadas em revistas estadunidenses que podem nos dar uma ideia sobre o assunto. Uma foi na revista Wired e outra foi na Smithsonian Magazine. A primeira diz respeito à já longa história do sonho de se construir um canal na Nicarágua e de como a trajetória desse sonho pode ser reconstituída a partir dos mapas de projetos de canais que pretendiam ligar o Oceano Pacífico e o Atlântico através daquele país; e a segunda trata mais dos impactos que a construção de um canal na Nicarágua podem legar àquele país centroamericano.

Abaixo, o Hum Historiador optou por repercutir uma tradução livre preparada a partir da íntegra da matéria tal como publicada na Smithsonian Magazine e, ao fim da mesma, adicionar uma galeria contendo as imagens dos mapas antigos coligidos em diferentes acervos cartográficos pela matéria da revista Wired.

Vale lembrar que a Smithsonian Magazine é uma revista estadunidense e a autora da matéria está tratando de um tema que afeta diretamente os interesses comerciais dos Estados Unidos em nível global, isto é, a criação de um canal interligando o Pacífico e o Atlântico sob o controle de uma companhia chinesa. Além dos impactos tratados pela reportagem de Nuwer, quais seriam os impactos para o comércio mundial de um novo Canal na América Central sob controle dos chineses? E para os Estados Unidos da América, qual seria o impacto?

NICARÁGUA PLANEJA DIVIDIR O PAÍS EM DOIS COM A CONSTRUÇÃO DE UM IMENSO CANAL

por Rachel Nuwer | tradução livre de matéria publicada originalmente na Smithsonian Magazine em 20.fev.2014.

O canal iria causar uma “devastação trágica” tanto para o patrimônio natural do país quanto para as comunidades indígenas, afirmam os cientistas.

Em breve a América Central poderá ter não apenas um, mas dois canais conectando o Oceano Pacífico ao Mar do Caribe. Em junho do ano passado a NICARÁGUA aprovou uma lei que garantiu a uma companhia chinesa, chamada The Hong Kong Nicaragua Canal Development Investment Company (HKND), a dividir o país com um canal de $40 bilhões de dólares.

De acordo com a HKND e o governo da Nicarágua, o Canal Inter-Oceânico da Nicaragua iria aumentar o PIB do país em 11% anualmente e gerar até um milhão de novos empregos nos que se seguiriam para a construção do canal. Esse seria um benefício significativo para o país, que é o segundo mais pobre nas Américas. O canal também agilizaria o comércio global, acrescentam os proponentes.

A construção estava prevista para começar em Dezembro de 2013 e seguiria pela próxima década. Centros industriais, aeroportos, novas ferrovias, oleodutos e os direitos de qualquer recurso natural que envolvem o novo canal também estão incluídos no acrdo. Após construir o canal, a HKND manteria os direitos de operá-lo pelos próximos 50-100 anos.

Muitas são as preocupações sociais e ambientais sobre um projeto de tal envergadura. Muitos detalhes sobre o projeto ainda estão faltando, nomeadamente, onde o canal será construído. Atualmente, uma rota de 177 milhas que cortaria através do Lago Nicarágua – de onde vem a maior parte da água potável do país – é a opção favorita. Os impactos que recairiam sobre a biodiversidade e as comunidades locais ainda não foram discutidos publicamente.

Um artigo opinativo publicado recentemente na Nature, “Canal da Nicaragua poderia levar a ruína ambiental”, explicita as preocupações de Jorge A. Huete-Perez, presidente da Academia de Ciências da Nicarágua, e de Axel Meyer, zoólogo na Universidade de Konstanz na Alemanha. Para começar, eles apontam que nenhuma avaliação independente dos potenciais impactos da construção do canal foi realizada até o momento. O governo da Nicarágua, por sua vez, afirma que planeja confiar na avaliação de impacto ambiental realizada pela HKND, e os autores apontam que “a companhia não tem obrigação de revelar os resultados ao público nicaraguense”.

O canal como planejado, escreveu Huete-Perez e Meyer, iria destruir por volta de 400 mil hectares de florestas tropicais e áreas úmidas. A Reserva da Biosfera Bosawa, localizada logo ao norte da rota proposta para o canal, abriga numerosas espécies ameaçadas pelo projeto tais como as antas de Baird, macacos-aranha, onças e algumas espécies de águias. Já a Reserva Biológica Indio Maiz, localizada para o sul da rota, abriga um conjunto similar de espécies ameaçadas.

O canal sequer se preocupou em circundar a Reserva Natural Cerro Silva – lar dos mais antigos carvalhos da América Central, inúmeras espécies de macacos e populações dos verde-claros quetzals – apontaram os autores. Os planos para a hidrovia cortam exatamente a seção norte daquele parque.

O canal e os portos que o acompanham também arrasariam praias berçários de tartarugas ameaçadas tanto na costa do Pacífico quanto na costa do Atlântico, bem como impactar ou destruir recifes de corais e manguezais, que – além de sua importância para a biodiversidade – ajudam a proteger a Nicarágua de tempestades tropicais. Quanto aos animais terrestres, eles que já não podem voar, também não poderão mais migrar de norte a sul, tirando populações inteiras de espécies de um lugar ou de outro, como se fosse um muro de Berlin líquido.

Além dos impactos à vida selvagem, comunidades indígenas – incluindo os Rama, Garifuna, Mayangna, Miskitu e Ulwa – dependem das áreas onde se localizará o proposto canal. Nenhuma prova ainda surgiu de que seus os direitos dessas populações foram levados em consideração ou alocações foram feitas para compensar as interrupções em suas vidas, observaram os autores. “Centenas de aldeias terão que ser evacuadas e seus habitantes indígenas realocados”. Essa perturbação pode até ser suficiente para causar rebeliões civis.

Canal da Nicaragua_Smithsonian

Rotas propostas para o novo Canal da Nicarágua (vermelho) e o Canal do Panamá (azul). Foto: Soerfm Wikicommons.

A água também é um problema. A maior parte da água potável do país vem do Lago Nicarágua, cujo fundo de 15 metros será dragado quase o dobro dessa profundidade para abrir caminho aos imensos navios containeres. Toda aquela lama tem que ir para algum lugar, e os autores estão procupados de que ela será apenas jogada em outras áreas do lago ou até mesmo na terra. “De qualquer modo, a lama acabará como uma sedimentação perigosa”, escrevem.

Barragens, também seriam construídas no lago para a criação do sistema de bloqueio do canal. Tal como acontece com o canal do Panamá, água salgada em conjunto com a poluição dos navios iriam provavelmente infiltrar as áreas ao redor desses bloqueios, transformando “um ecossistema de água doce de fluxo livre em um reservatório artificial de água-parada combinada com água salgada”, predizem os autores. Isso significa adeus à água doce potável – infraestrutura teria de ser criada para dessalinizá-la e purificá-la – representaria também um adeus aos animais nativos do lago como os tubarões touro, peixe-serra, ciclídeos e tarpon.

Acrescente a isso a possível chegada de espécies invasoras que irão de carona nos barcos -um problema ambiental comum – e você terá uma receita para a “devastação trágica” da flora e fauna do lago, e tudo o que depende dele, escrevem os autores.

Por fim, a companhia por trás do próprio canal pode não ser tudo aquilo que parece, outros apontam. O presidente, Wang Jing, até agora não conseguiu acompanhar o desenvolvimento de uma companhia telefônica que comprou concessões para entrar na Nicarágua no ano passado, e da mesma forma não há sinais de progresso em 12 dos 20 países onde Wang se comprometeu com outros projetos de larga escala, como reporta o South China Morning Post.

No caso do canal, Wang tem por vezes feito planos “implausíveis”, escrevem os autores da Nature, tais como dizer que o canal terá 520 metros de largura. O projeto inteiro tem sido envolvido em um manto de segredo, acrescenta o Bangkok Post, desde seus impactos ambientais até sua logística, e o governo parece ansioso para apressá-lo.

“Não há qualquer justificativa para um novo canal através da Nicarágua”, disse ao Bangkok Post Ralph Leszczynski, chefe de pesquisa na Banchero Costa, uma agencia marítima internacional. “Nós já temos um canal que cruza o Panamá que funciona bastante bem”.

O Canal do Panamá, disse Leszczynski ao Post, lida apenas com uma pequena fração da navegação mundial, por isso construir uma hidrovia equivalente seria redundante. Cerca de 550 milhas ao sul do Lago Nicarágua, a hidrovia do Canal do Panamá tem um terço a menos do comprimento daquele que está sendo proposto na Nicarágua, e atualmente está sendo alargado e aprofundado para expandir sua capacidade para acomodar navios de grande porte.

Assim, na pior das hipóteses, Nicarágua terá um canal imenso que poderá trazer devastação ambiental ao país e poderá até mesmo “reascender a violência civil que por muito tempo marcou a região”, escrevem os autores da Nature. Na melhor das hipóteses, por outro lado, os planos simplesmente vão fracassar como os muitos outros empreendimentos de Wang. De qualquer modo, os pesquisadores não querem correr o risco de que um projeto como esse seja sequer considerado.

Eles clamam a comunidade internacional a se unirem a eles em um protesto contra o canal, e também em um “brainstorming” de soluções que poderiam trazer mais investimentos à Nicarágua, incluindo turismo, aquicultura e irrigação estendida. Em dezembro último, os autores relataram que o governo dispensou as reclamações judiciais apresentadas no ano passado por ambos os grupos internacionais e comunidades indígenas da Nicarágua, indicando a necessidade de uma “ação internacional rápida e decisiva”. Adicionalmente, Huete-Perez decidiu tomar o assunto em suas próprias mãos e conduzir sua própria investigação de avaliação ambiental com o auxílio da Rede Interamericana de Academias de Ciências, e apela para que mais grupos de conservação se juntem a ele.

“Pode haver uma rota econômica, geográfica e politicamente viável para o canal, ferrovias e oleodutos propostos que implicaria em uma redução significativa de risco? O concenso geral na Nicarágua é que não”, concluem os autores. “Habitantes – de todas as espécies – com laços ancestrais à tera serão arrancados da terra de qualquer maneira.


Abaixo, publicamos uma galeria de imagens selecionadas pelo site da revista Wired, contendo mapas do século XIX e XX que ilustravam as possíveis localizações de um Canal na Nicarágua

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O Gabinete Topográfico de São Paulo (1835-1849)

Revista da SBHCGostaria de compartilhar com os leitores do blog um artigo de minha autoria que acaba de ser publicado na edição mais receite da Revista Brasileira de História da Ciência (2013 – Volume 6 – No. 2).

Trata-se de um subcapítulo de minha dissertação de mestrado que traz a reconstituição da trajetória do Gabinete Topográfico de São Paulo, uma repartição de obras públicas da então província de São Paulo, criada por lei provincial de 1835, que continha anexo a ela uma escola destinada a formar engenheiros práticos para dirigirem as diversas obras públicas provinciais, em especial, a construção e manutenção das estradas visando comunicar o interior da província ao porto de Santos para escoamento da produção destinada a exportação.

Com a escola funcionando a partir de 1836, o Gabinete Topográfico acabou desempenhando um papel relevante na transição da engenharia militar para a engenharia civil em São Paulo, uma vez que boa parte dos alunos formados por esta instituição eram civis e, na segunda metade do século XIX, foram contratados pela administração provincial para coordenarem a construção e/ou manutenção de pontes e estradas como engenheiros civis. Além disso, cabe lembrar que a primeira escola superior de engenharia de São Paulo com currículo separado para a formação de engenheiros civis, foi a Escola Politécnica, inaugurada apenas no final do século, em 1894. De modo que, nas primeiras décadas dos Oitocentos, a formação de engenheiros, tanto em Portugal quanto no Brasil (a partir de 1822), ainda se dava dentro das instituições militares, como a academia fundada por D. João VI, em 1810, a Academia Militar do Rio de Janeiro.

O texto relaciona-se com o tema de pesquisa de minha dissertação na medida em que o Gabinete Topográfico, assim como a estatística (1838) e o mapa provincial (1841) que estudo, também teve sua criação determinada por uma lei promulgada em 1835, durante a primeira legislatura (1835-1837) que assumiu a Assembleia Legislativa da Província de São Paulo, que acabara de ser instituída pelo Ato Adicional de 1834. Além disso, um dos principais responsáveis pela organização do Gabinete Topográfico foi justamente o engenheiro militar luso-brasileiro Daniel Pedro Müller (1785-1841), principal personagem estudado em minha dissertação.

Meu objetivo com este artigo é, portanto, demonstrar que a criação do Gabinete Topográfico, assim como a estatística e o mapa, foi parte de uma política levada adiante pela elite paulista, em um contexto de relativa autonomia política e tributária conquistada através das reformas liberais que culminaram com o Ato Adicional, para ser um instrumento de governo da administração provincial visando a formação de quadros aptos ao trabalho nas obras públicas, especialmente na construção e conservação de estradas provinciais.

Antes de concluir esse post, gostaria de deixar meu agradecimento à minha orientadora, a historiadora Prof. Dra. Iris Kantor, que desde o começo acreditou em minha ideia e ajudou no desenvolvimento de minha dissertação.

Abaixo, deixo o resumo do artigo publicado na Revista e, para quem tiver interesse, também o link para o download do artigo completo em PDF.

RESUMO

Este artigo reconstitui a história do Gabinete Topográfico de São Paulo no âmbito da criação das Assembleias Legislativas Provinciais, em 1835. A partir da análise da legislação provincial, de ofícios de agentes das diferentes administrações e também dos discursos dos presidentes da província, pretende-se demonstrar como o Gabinete Topográfico, primeira escola a conceder cartas de engenheiros construtores de estrada na província, foi projetado pela elite política paulista para ser um instrumento de governo da administração provincial na medida em que seu principal objetivo era formar quadros aptos ao trabalho nas obras públicas, especialmente na construção e conservação de estradas provinciais.

PALAVRAS-CHAVE

Gabinete topográfico | Escolas de engenharia | Estradas | São Paulo | Brasil imperial

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O Gabinete Topográfico de São Paulo: a formação de engenheiros construtores de estradas como instrumento de governo da província de São Paulo (1835-1849)

PARA SABER MAIS

Para saber maiores detalhes à respeito da pesquisa de mestrado que venho conduzindo, consulte a página MESTRADO deste blog.

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