Thomas Sowell, economista estadunidense e membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford, escreveu um texto sobre racismo e cotas raciais, que foi traduzido por Leandro Roque e publicado no portal do Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB).
Intitulado “Afinal, quem são os racistas?“, Sowell não faz nada além do que utilizar o velho recurso de culpar a vítima para, de modo bastante cruel, apontar o que ele julga ser prática de racismo por parte da liderança dos movimentos negros em sua luta pela aprovação de políticas públicas com adoção de ações afirmativas. Isto é, inverte a acusação de racismo que os movimentos negros fazem à sociedade estadunidense, acusando essa mesma liderança de praticar o racismo na busca de vantagens financeiras para si e/ou para o grupo que representam.
Com uma argumentação tacanha, o autor compara a situação dos afro-descendentes estadunidenses com a de imigrantes asiáticos que, após abandonarem seus países de origem e se estabelecerem em uma cultura bastante distinta da deles, conseguem prosperar e enriquecer sem auxílio de “favores”:
“(…) em vários países ao redor do mundo, inclusive naqueles países chamados de terceiro mundo, vários imigrantes extremamente pobres, principalmente oriundos da Ásia, não apenas conseguem prosperar mesmo sendo de uma cultura totalmente distinta, como também conseguem enriquecer sem jamais recorrer a favores especiais e a políticas de ação afirmativa”.
Em seu discurso ideologizante, Sowell faz questão de ignorar as diferenças inerentes dos processos históricos que levaram os africanos à América e condicionaram a situação dos afro-descendentes nos Estados Unidos nos séculos XX e XXI; e dos fenômenos que levaram ondas de asiáticos a imigrarem para os mais diferentes países. Para o liberal da Escola de Chicago, tais experiências seriam equivalentes e, justamente por isso, faz sua comparação absurda, para não dizer mal intencionada.
Sowell não para por aí. Como se não bastasse a comparação despropositada, continua a detalhar o exemplo do imigrante asiático, descrevendo a razão do sucesso desses grupos prosperarem e enriquecerem nos países para onde imigram. A receita de Sowell é a seguinte:
“Eles [imigrantes asiáticos] frequentemente começam trabalhando em empregos de baixa remuneração. Mas trabalham muito. A norma é trabalharem em mais de um emprego. Trabalham tanto que conseguem poupar e, após alguns anos, utilizam esta poupança para empreender. Muitos abrem um pequeno comércio, no qual continuam trabalhando longas horas e ainda continuam poupando, de modo que se tornam capazes de mandar seus filhos para a escola e para a faculdade. Seus filhos, por sua vez, sabem que seus pais não apenas esperam, como também exigem, que eles sejam igualmente disciplinados, bons alunos e trabalhadores”.
Ao descrever a “receita do sucesso” do imigrante asiático em terras americanas, Sowell revela dois aspectos que não estão colocados explicitamente em seu discurso:
- O afro-descendente não prospera e enriquece nos Estados Unidos porque é preguiçoso e não quer trabalhar do mesmo modo como fazem os asiáticos que imigraram para aquele país;
- Um indivíduo só conseguirá “prosperar ou enriquecer” nessa sociedade ideal que ele defende, se ele mesmo permitir que o mercado faça uma exploração selvagem de sua força de trabalho e, como se isso não bastasse, em seguida, depositasse no sistema financeiro todo o fruto de seu trabalho para, uma vez mais, ser brutalmente explorado.
Esta é, portanto, a visão de Sowell sobre como os afro-descendentes deveriam proceder para prosperarem e enriquecerem nos Estados Unidos. Jamais deve ser através do Estado, isto é, da organização em associações e movimentos que reivindiquem de seus representantes no legislativo a votação de políticas públicas que adotem ações afirmativas para a superação da condição de marginalidade dos afro-descendentes naquele país, decorrente do processo histórico de escravização, discriminação, racismo e segregação vivido por esses grupos e seus descendentes desde o século XVII.
Tal posicionamento fica ainda mais evidente no texto de Sowell quando ele tenta explicar a razão dos asiáticos serem tão bem sucedidos:
“(…) seu sucesso pode ser atribuído a algo que eles não têm: “líderes” e autoproclamados porta-vozes lhes dizendo diariamente que são incapazes de prosperar por conta própria, que o sistema está contra eles, que eles não têm chance de ascender socialmente caso não sigam os slogans repetidos mecanicamente por estes líderes e sociólogos, e que por isso devem se juntar sob o rótulo de “vítimas do sistema” e exigir políticas especiais e tratamento diferenciado (…) infelizmente, é exatamente esta linha de raciocínio, só que em relação aos negros, que vem sendo diariamente propagada por acadêmicos e sociólogos irresponsáveis (…) que dizem precipitadamente que determinadas pessoas não podem ascender e prosperar a menos que haja um empurrão do governo”.
É aqui que Sowell revela o que aflige sua alma liberal, aquilo que ele denominou “o empurrão do governo”. Não vou sequer deter-me no fato dele considerar políticas públicas de ações afirmativas como “empurrão do governo”. O que realmente o incomoda é o fato de tais políticas serem financiadas com recursos do contribuinte e, por isso, servirem de justificativa para o governo aplicar recursos dos impostos em políticas sociais. Vê o tal iniciativa como um custo para o Estado, não um investimento. Na cabeça de gente como Sowell, se o governo tem mesmo que cobrar impostos, que esses recursos sejam revertidos em infraestrutura ou incentivos para o empreendedorismo, não em políticas sociais. Assim, entende-se a razão de Sowell descrever aqueles que lutam pelos direitos dos afro-descendentes da seguinte maneira:
“(…) as pessoas que dizem falar em prol do “movimento negro” sofreram uma mutação de caráter: se antes possuíam uma alma nobre, hoje não passam de charlatães descarados. Após a implantação definitiva de políticas de ação afirmativa nos EUA, esses charlatães perceberam que era muito fácil ganhar dinheiro, poder e fama ao redor do mundo ao simplesmente se dedicarem à promoção de ações e políticas raciais que são totalmente contraproducentes aos interesses das pessoas que eles próprios dizem liderar e defender”.
É a partir desse momento que Sowell partirá para a cruel estratégia de inversão de valores através da tática de culpar a própria vítima pela situação em que se encontra. É justamente aqui que ele passará a defender, como sugere o título, que racista é quem luta pelos direitos dos afro-descendentes em uma sociedade na qual os direitos civis já foram conquistados:
“Essa postura de dizer aos seus “seguidores” que eles são mais atrasados, tanto econômica quanto educacionalmente, por causa de outros grupos “opressores” — e que, portanto, eles devem odiar estas outras pessoas — tem paralelos na história recente. Essa foi a mesma motivação utilizada pelos movimentos anti-semita no Leste Europeu no período entre-guerras, pelos movimentos anti-Ibo na Nigéria na década de 1960, e pelos movimentos anti-Tamil, que fizeram com que o Sri Lanka, outrora uma nação pacífica e famosa por sua harmonia intergrupal, se rebaixasse, por influência de intelectuais, à violência étnica e depois se degenerasse em uma guerra civil que durou décadas e produziu indescritíveis atrocidades”.
Em mais uma generalização absurda e criminosa, repleta de má fé, Sowell compara a liderança de movimentos negros que defendem a criação de políticas públicas para a adoção de ações afirmativas visando a mudança da condição de marginalidade do negro na sociedade estadunidense, à movimentos anti-semitas do Leste Europeu, movimentos anti-Ibo na Nigéria e movimentos anti-Tamil no Sri Lanka. Para Sowell é tudo a mesma coisa e, portanto, os verdadeiros racistas são essas pessoas, que ele então acusa formalmente em seu texto:
“Tais líderes possuem incentivos em demasia para promover atitudes e políticas polarizadoras que são contraproducentes para as minorias que eles juram defender e desastrosas para o país. Eles se utilizam das minorias para proveito próprio, atribuindo a elas incapacidades crônicas que supostamente só podem ser resolvidas por políticas que eles irão criar. Eles são os verdadeiros racistas”.
Se fizermos uma contraposição do que disse Thomas Sowell com os resultados da política estadunidense tocada nos últimos 50 anos após a legislação anti-segregacionista implementada após as lutas pelos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960, veremos que, com muito esforço, os afro-descendentes vão conseguindo ascender socialmente cada vez mais, no entanto, ainda estão longe de terem uma situação de igualdade, além de persistir uma “segregação”, diferente da que existia na década de 60, mas muito perceptível nas principais cidades estadunidenses.
UM NOVO TIPO DE SEGREGAÇÃO ENTRE BRANCOS E NEGROS NOS ESTADOS UNIDOS
Em matéria publicada na Folha de S. Paulo neste último dia 02 de julho, na qual Isabel Fleck comenta os 50 anos do fim do Apartheid estadunidense, um infográfico traz indicadores socioeconômicos sobre brancos e negros nos Estados Unidos na década de 1960 e atualmente. Veja abaixo um desses infográficos:
Fonte: Folha de S. Paulo | Caderno Mundo | 02.jul.2014
Olhando para esses indicadores, vê-se claramente que mesmo depois de 50 anos, e com toda a luta travada por lideranças de diversos movimentos por direitos civis (Martin Luther King e Malcom X) e pela a adoção de ações afirmativas buscando alterar a condição do afro-descendente na sociedade estadunidense nesses últimos 50 anos (1964-2014), ainda assim, os progressos estão longe de serem os desejados, mostrando que os Estados Unidos ainda continuam segregados.
Pode-se destacar, ainda, que a diferença entre a parcela de negros e brancos desempregados, por exemplo, é maior hoje do que há 50 anos. Pior que isso, a renda média de uma família afro-descendente é dois terços menor do que a de uma família branca não hispânica. Também pode-se observar que o valor do acúmulo de bens desses brancos não hispânicos que há 30 anos era quatro vezes maior do que a dos afro-descendentes, em 2010 já era seis vezes maior. Por fim, pode-se destacar ainda que a diferença entre brancos e negros acima de 25 anos que concluíram o ensino superior nos EUA aumentou sete pontos percentuais, enquanto a população carcerária segue sendo majoritariamente negra.
Curiosamente, um colega de Sowell na Universidade de Stanford, Gavin Wright, afirmou para a reportagem da Folha:
“(…) a raça ainda é fator determinante nos EUA hoje, e isso é refletido nos indicadores econômicos. A combinação entre pobreza e isolamento racial é o que torna as expectativas de mobilidade econômica e social tão desanimadoras”.
Ainda nessa mesma reportagem, destaca-se a grande segregação existente entre brancos e negros nas grandes cidades americanas, nas quais cada grupo estão divididos em seus respectivos bairros. Segundo estudos da Brown University, destaca a reportagem, Nova York, Chicago e Miami estão entre as dez cidades mais “segregadas” entre brancos, negros e latinos dos EUA. Já outro estudo da Universidade da Califórinia demonstram que o estado de Nova York, por exemplo, apresenta as salas de aula mais “segregadas” de todo o país, sendo que apenas 8% das escolas podem ser consideradas, de fato, multirraciais.
FRUSTRAÇÃO COM O GOVERNO BARACK OBAMA
Uma análise de Carlos Eduardo Lins da Silva, também publicada na Folha, sobre os desejos de mudanças da população estadunidense em relação ao governo de Barack Obama. Nesse sentido, Lins da Silva afirma que os Republicanos, com maioria na Câmara, tem sistematicamente obstruído as iniciativas do Presidente. Segundo o texto de Lins da Silva:
“A Voting Right Acts de [Lyndon] Johnson tornou ilegais exigências que os Estados do sul faziam para obter título de eleitor, como testes de alfabetização e comprovantes de pagamentos de impostos.
Desde 2010, muitos Estados aprovaram leis com novos requisitos para o registro eleitoral, que dificultam os pobres e negros o exercício do direito do voto. Em junho de 2013, o Supremo derrubou partes da Voting Rights Act que impunha aos estados a obrigação de submeter ao governo federal quaisquer mudanças que viessem a fazer em sua legislação sobre eleições.
Com isso 22 estados passaram a restringir a inscrição de eleitores com obrigações como apresentação de documentos com fotos e/ou comprovante de residência, impedimento a condenados pela Justiça por crimes e outras.
Essas mudanças ocorrem especialmente nos Estados do sul, a maioria sob controle do Partido Republicano, que passou a dominar a região após John Kennedy e Lyndon Johnson combaterem a segregação racial”.
Se era esperado que com a administração de Barack Obama, o Congresso estadunidense aprovasse novas leis que diminuíssem a “segregação” entre brancos e negros que persiste nos Estados Unidos, ficou evidente que a oposição imposta pelo Partido Republicano, através de sua maioria na Câmara, vem aprovando leis que, ao invés de diminuir, estão aprofundando a “segregação” racial nos Estados Unidos. Liberais e/ou conservadores tais como Thomas Sowell que, ao fingirem não ver o racismo de seus posicionamentos, simplesmente impedem a ascensão social de afro-descendentes nos Estados Unidos, usando as mentiras mais absurdas para rotular grupos que lutam pela implantação de políticas públicas que adotem ações afirmativas de “racistas”, os beneficiários de tais leis de “preguiçosos” e a própria legislação de um “empurrão do Estado”.
Para concluir, entendo que talvez fosse mais apropriado que Sowell mudasse o título de seu texto para “Afinal, quem somos racistas?”. Assim, o texto estaria mais adequado ao conteúdo apresentado e, de brinde, abriria espaço para que os colegas divulgadores do IMB e, também, aqueles que apoiaram o texto nos comentários da publicação, pudessem se identificar claramente.