por Daniel Mafra | Exclusivo para o Hum Historiador | 01.Abr.2014
INTRODUÇÃO
O presente texto pretende transitar temporalmente e em movimento pendular, ora no passado, ora no presente, entre a sombria bruma condensada pelo Golpe Militar no Brasil, o qual instaurou uma ignominiosa Ditadura Militar entre os anos de 1964 e 1985 e o movimento político, social e cultural na primeira metade da segunda década do século XXI.
Não obstante este texto ter sido motivado pela dolorosa, mas imprescindível e imperativa lembrança dos 50 anos do Golpe Militar, não é nosso intuito remontar cronologicamente os fatos que se apresentaram. Qualquer manual poderá suprir tal necessidade. Nosso intuito é refletir como, a partir do golpe, se solidificou (ainda mais) o ideal reacionário, conservador e golpista no Brasil. Faz-se míster ressaltar o papel da imprensa ontem e hoje. Demonstraremos que a retórica de hoje sobre uma pretensa imparcialidade e defesa das instituições democráticas no país é somente uma das mais cândidas formas da grande mídia burguesa de manipular o discurso em prol do status quo, da ordem estabelecida.
Por fim, mas certamente não menos importante, refletiremos também sobre o árduo caminho a ser percorrido pela esquerda, para que esta retome seu papel atuante na política brasileira (e por que não dizer internacional, oras, se o programa original do socialismo se propõe como internacionalista?) e se faça presente e eficaz como modelo de contestação à ordem vigente e destrutiva da estrutura sócio-metabólica do capital. Àqueles que torcem o nariz, achando demasiado radical a bipolaridade deste texto, em sua exegese marxista capital x social, recorro à Mészáros: “Os que falam a respeito de uma “terceira via” como solução ao nosso dilema, e que afirmam não haver espaço para a revitalização de um movimento radical de massa, ou querem nos enganar cinicamente ao dar o nome de “terceira via” à aceitação submissa da ordem dominante, ou não entendem a gravidade da situação, acreditando num sonhado resultado positivo que vem sendo prometido por quase um século, mas que não dá sinais de se realizar.” (MÉSZÁROS, István. O Século XXI: Socialismo ou Barbárie? Boitempo Editorial. 2003. p. 108).
Antes de darmos início ao que já se iniciou nas entrelinhas, fica a reflexão sobre a liberdade imposta (o paradoxo não é coincidência) pelo capitalismo, resguardado pelo conceito conveniente de democracia: “A igualdade é uma palavra oca a não ser que por igualdade se entenda a abolição de classes. Só destruindo as classes haverá igualdade.” (LÊNIN, Vladimir Ílitch. Como iludir o povo – com os slogans de liberdade e igualdade. Global Editora, 1979. p. 33).
UM GOLPE. 21 ANOS.
Há exatos 50 anos, no dia 1º de abril de 1964 (não há data mais sugestiva para aqueles que até hoje tentam macular os fatos históricos) caía o governo democrático brasileiro, na figura de seu presidente João Goulart, o Jango, após a burlesca marcha do General Mourão Filho, que articulara o golpe em vestes de dormir (imagino-o numa ceroula de seda, nas cores do Brasil, declamando de si para si seu ato heróico diante do espelho, numa espécie de devaneio sem maiores aspirações) no dia anterior, mas que se tornaria o estopim bem-sucedido para o estupefato golpe.
Apoiados pelo governo dos EUA, os militares marcharam para a vitória sem disparar tiros, sem ir ao campo de batalha, num silêncio que se seguiria por 21 anos. Fosse esta uma rapsódia, dar-se-ia a impressão de que o silêncio corroborara com o vergonhoso ato. Um silêncio de vergonha e das mordaças da tortura. Mas mais adiante veremos que ecoaram pelos cantos urbanos de algumas capitais, gritos delirantes da classe média, sempre reprodutora bajuladora das classes dominantes contra as reformas de base propostas por Jango. Estas aviltavam o poder consolidado da grande propriedade privada e especulativa da classe burguesa. Colocavam em xeque as enormes e vergonhosas inversões de capital em prol de uma minoria que se banhava em rios de ouro, enquanto outros e muitos bebiam água barrenta. Na verdade, era delírio da direita ultraconservadora. João Goulart vivia sob uma enorme pressão de ambos os lados (ambos os lados estavam insatisfeitos com seus posicionamentos – a crise política crescia e arremessava uma névoa obscura e pouco inteligível aos olhos de quem a analisava). Numa medida drástica para seus padrões, sendo muito influenciado por Leonel Brizola, Jango vociferou no famoso comício da Central do Brasil. Aparentemente escolhera pelo povo. Estava lançada a semente última para o Golpe. Dos gritos, sobraram somente os ecos que foram silenciados pela lógica nefasta dos porões, das torturas e das sistemáticas execuções realizadas pelos mecanismos de repressão da Ditadura.
Ao lermos, relermos a exaustão, refletirmos sobre o período, sempre enojados e desconcertados pela imundice daqueles anos, é quase impossível acreditar que um indivíduo minimamente pensante possa conceber tal ignomínia para seu país e seus concidadãos novamente. Porém…
SAUDOSISMO TOSCO E O PAPEL DA IMPRENSA
É da natureza de uma sociedade que possui memória desviar seus olhares para o passado, para analisar o presente e vislumbrar o futuro. No entanto, por vezes, este saudosismo pode ser tosco, pois que se pauta no desconhecimento de um período, ou até mesmo estúpido, por se pautar nos valores ideais do tempo presente, propagados pelos meios de comunicação elevados a poder inquestionável, quase que divino. Oras, durante os anos de chumbo a novela das oito (hoje, das nove, mas que sempre recebe os láureos horários nobres da emissora) e o Jornal Nacional da Rede Globo terão espaço e influência direta no enraizamento da despolitização do cidadão brasileiro, que como bem se sabe, já não era lá o povo mais bem educado politicamente das Américas.
As Organizações Globo, que desde os anos que precederam o golpe já se manifestavam tendenciosas a favor de um golpe reacionário, foi quase que elevada à condição de porta-voz do governo, mas, sempre, sob os auspícios inescrupulosos da retórica da “imparcialidade”. Vale a pena ressaltar que aqueles que defendem esta maniqueísta “imparcialidade”, são aqueles que estão sempre no topo da pirâmide. Não manifestar-se é necessariamente comprar a idéia do status quo, do poder estabelecido. A imparcialidade é uma das formas mais escusas e repulsivas de manutenção das castas burguesas no poder, da falsa moralidade e ética da estética pseudo-democrática, que por sua natureza é seletiva, branca, eurocêntrica. O mesmo se pode dizer da Revista Veja e congêneres, que trabalham sob o discurso falacioso da imparcialidade. Neste sentido, podemos mui brevemente citar a desarticulação dos movimentos orgânicos de contracultura dos anos 1960 e 1970 e a substituição desses por um padrão de consumo cultural meramente mercadológico, arquétipo do lixo artificial e estéril dos anos 1990 em diante. De Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Celso, Glauber Rocha, O Pasquim (e tantos outros, tão importantes) à Luan Santana, Ivete Sangalo, Luciano Huck, Xuxa (e tantos outros tão desimportantes), ou qualquer lixo que se queira nomear.
Vale lembrar que neste pêndulo histórico, pouco se tem abordado sobre a manifestação da imprensa à época do Golpe Militar. Uma significativa parte da imprensa, mais uma vez respaldada pelo discurso da “imparcialidade”, foi absolutamente acrítica, evasiva e conivente ao golpe. Uma vez mais, os epítomes são a Rede Globo e a Revista Veja. Por muito tempo, ambas as mídias se esquivaram da matéria, apoiando-se nos efeitos certamente limitadores da censura, sobretudo a partir do AI-5. Não obstante, as manifestações de Junho do ano passado não deixam espaço para quaisquer dúvidas (se é que alguém tem alguma dúvida) sobre as inclinações destes dois veículos dominantes de comunicação. A começar pela clarividente apropriação da legítima reivindicação do MPL (Movimento Passe Livre) e subseqüente desfoco para uma pauta artificializada, sem mote e blasé. O discurso de que a luta não era por 20 centavos (o que não deixa de ser uma verdade, evidentemente) foi tão bem articulado, que antes mesmo de findar aquele mês, pôde-se assistir ao vivo (e com grande audiência) a desmobilização da população, num primeiro momento por reivindicar a absurda despolitização do movimento (dá pra acreditar?), depois ao deslegitimizar as ações “violentas”, enquadrando-as todas como atos de “vandalismo” e por fim (ah, por essa ninguém esperava) o ataque do conservadorismo ao Governo Dilma, à corrupção, aos mensaleiros… Jogada de mestre. O povo brasileiro é novo no jogo. Os caras são ases. Só faltou o Maluf na TV pra dizer que “foi ele que fez”. Pra findar esta digressão, que já nos embrulha o estômago, vale ressaltar o infeliz e trágico acidente mortal ocorrido com um cinegrafista da TV Bandeirantes. Fez-se primeiro parecer que aquela luta era a luta de “forças invisíveis” contra a imprensa livre e imparcial (olha a “imparcialidade” aqui de novo). Segundo fez-se sugerir que a esquerda estava envolvida em financiamentos escusos ao aparelhamento de movimentos apolíticos (oras, se são apolíticos, por que raios seriam financiados por partidos e por que, necessariamente, tinha que ser um partido da esquerda?), como os Black-Blocs. E em terceiro, a partir da imagética abstrata, mas muito bem desenhada, fez parecer que as manifestações eram subterfúgios inquestionáveis para ações de “vândalos” e “criminosos”. Pronto. O Brasil volta-se para o Carnaval e tudo volta à normalidade (ou seja, às normas de que a parcimônia popular está a serviço de quem detém interesses maiores por detrás da sujeira maculada pela imprensa em seu benefício próprio). O tempo livre, potencial destruidor das verdades incontestáveis, é substituído pelo valor e necessidade do labor, “na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho” (MARX, Karl. O Capital. Livro I. Boitempo Editorial. 2013. p. 597), ou pelo famoso Panis et Circensis da Roma Antiga. E não se esqueça, logo mais vem a Copa do Mundo. A gente se vê por aqui…
SAUDOSISMO TOSCO E O TIRO DO PT NO PRÓPRIO PÉ
Como nós pudemos verificar, o risco de um saudosismo tosco como este é não compreender as especificidades históricas de dado tempo. É chamar a Ditadura brasileira de “Ditabranda”, como o fez o jornal Folha de São Paulo. É reeditar a vexatória Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade (quão geniais são estes indivíduos: convocar a volta dos milicos – ou seja, do regime ditatorial – para instaurar uma liberdade guiada pela família cristão-burguesa. Ridículo, esdrúxulo, risível, mas extremamente perigoso). É desenhar com os lápis de ontem nos papéis de hoje a ascensão de grupelhos da direita ao Congresso Nacional sob a nomenclatura estapafúrdia de “bancadas religiosas” inseridas num estado laico, ou de “bancadas ruralistas” (sim, os mesmos grupos latifundiários que outrora apoiaram a derrubada de Jango no Golpe de 1964), mas com relações tão promíscuas politicamente, que se esquece da necessidade urgente de uma reforma política que impeça as aberrações que temos visto no Circo que se tornou a Política Nacional nos últimos anos (será que em algum momento ela foi algo senão um banquete da palhoça engravatada?). Eis uma das críticas que se pode fazer ao PT: a eterna demora para realizar uma reforma política que atenda aos interesses verdadeiros da nação.
Desde a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, certo se fez verificar o incômodo que este trouxe à direita (faz-se necessário esclarecer que este sempre foi uma pedra no sapato da direita, desde a curva descendente do regime militar). Não pelo fato de o PT ser um partido originário da esquerda, pois, como bem sabemos, o PT tem cada vez mais decepcionado no quesito ideológico, relacionando-se promiscuamente com partidos ligados historicamente ao fétido (de sangue das torturas e assassinatos) ARENA. Embora seja inevitável reconhecer alguns importantes, mas por vezes, vacilantes avanços do Brasil no Governo do PT, há de se lembrar que este teve a “faca e o queijo na mão”, chegando ao poder e deixando atordoados todos os reacionários de plantão, que agonizavam desesperadamente diante da possibilidade de uma real modificação no país, do desbaratamento das estruturas tão bem disseminadas das relações de poder burguesas. No entanto, o PT preferiu “trocar um Plano de Governo, por um Plano de Poder”, nas sempre sábias palavras de Frei Betto, em palestra proferida no Itaú Cultural, no dia 15/03/2014, às 20h30, numa das peças que compuseram a I Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
As esperanças de que o PT modificaria o Brasil esbarraram em questões que merecem uma reflexão mais aprofundada, mas fica aqui uma provocação: será possível chegar ao poder pelas vias democráticas sem sujar as mãos com aqueles que até mesmo as têm sujas de sangue? O que eu quero dizer é que, para chegar ao poder, o PT aparentemente teve que abrir mão de muitas de suas convicções, afastando-se de suas bases e programas originais… Mas esta é outra história, a qual lanço o desafio ao amigo Roger de colocá-la em pauta aqui no Hum Historiador tão logo seja possível.
Mas antes que “tucanos” e demais aves silvestres regurgitem seu reacionarismo moralista em favor de seus aliados políticos nas bancadas de uma oposição que notadamente é tão ou até mais mensaleira que a bancada petista e bebam a cicuta socrática e saudosa de seus tempos no poder, vale lembrar que o PSDB já fizera uma política tão promíscua quanto à do PT com os filhotes da Ditadura, nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, motivo pelo qual parceiros de tantos anos, como Octávio Ianni e Florestan Fernandes, romperam relações com o ex-presidente diante de sua postura paradoxal-esquizofrênica: presidente x sociólogo. O próprio FHC parece ter se desviado pelas ígneas relações do poder ao escrever um novo prefácio para a sua tese de doutorado, o clássico “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”, re-publicado pela Civilização Brasileira em 2003, demonstrando tendências bem mais conservadoras e certamente mais alinhadas com o presidente do que com o sociólogo. O ex-presidente recentemente concedeu uma entrevista ao site UOL (http://tvuol.uol.com.br/video/ninguem-sabia-de-que-lado-viria-o-golpe-diz-fhc-04020D9B3668D8C94326) falando sobre o golpe militar, sugere que se não fossem os milicos, seria a esquerda radical que o faria, e parece realmente achar que não há como fazer política no jogo democrático senão sujando as mãos…
O fato é que o PT, com todos os defeitos e críticas que podem ser apontados, incomoda as classes dominantes por dar visibilidade àqueles que sempre foram invisíveis. Não quero parecer o defensor-mor do Partido dos Trabalhadores. Boa parte de tudo o que me agradava no partido foi desfeito, redesenhado, repaginado. Mas há como contestar historicamente, dentro das linhas mestras metodológicas e sob a luz do conhecimento científico de que o PT desempenha o melhor governo da História do Brasil? Para a direita o pensamento, por mais que bisonho, parece ser a de que “aquele partido com origens vermelhas, mesmo se tratando de mencheviques, chegaram e conquistaram democraticamente o poder. Quão perigosos podem ser o bolcheviques tupiniquins, caso estes pousem em Brasília?”. Eis um grande problema. Eis o cerne da distinção de julgamentos: o porquê de o mensalão do PT ser devassado ao passo que o mensalão tucano nem ao menos foi julgado. Ora, a “opinião pública” é encabeçada pelas mesmas elites dominantes de outrora, que permeiam o imaginário coletivo em sua forma impositiva e conservadora, e que desta feita, de forma taciturna e muito bem articulada pelo monopólio dos meios de comunicação, se faz presente sob a égide da falaciosa retórica da imparcialidade, mero discurso da perpetuação do mesmo poder velho e caduco através dos mecanismos de opressão e despolitização das massas. Como bem nos explica Mészáros, numa releitura de Marx, “[…] as pessoas estão “acostumadas a se movimentar” dentro das relações estabelecidas da vida cotidiana capitalista, por mais que sejam irracionais e absurdas as equações práticas impostas a elas pelos processos metabólicos dominantes do referido sistema.” (MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Boitempo Editorial. 2004. p. 481).
ANISTIA E A FALSA VITÓRIA
Ao final de sua dramática experiência no poder, através de uma anistia tendenciosa que os protegia juridicamente dos crimes cometidos, respaldados pela estéril volta da democracia (esta que serviria aos mesmos interesses daqueles que haviam realizado o golpe), os militares conseguiram solidificar as raízes da revolução burguesa no Brasil. A volta da democracia, embora significativa, não representava uma vitória verdadeira de fato, pois esta respaldava aqueles que seqüestraram o Brasil por 21 anos e institucionalizava aquilo que os militares preconizavam desde o início: uma vitória a qualquer custo da conservação do status quo da sociedade brasileira sobre as reformas imperativas que permitissem ao Brasil um desenvolvimento popular, mais justo e equânime, que não consentiria com o atual gigantesco abismo de concentração das riquezas nas mãos de tão poucos, em detrimento de outros em condições tão precárias. Do ponto de vista da luta de classes, o golpe militar estancou ao longo dos anos de chumbo a vitalidade da esquerda que, outrora ativa, se desconcertou e até hoje se indaga sobre seus rumos. Com a volta da democracia, ao invés de se ter a liberdade sobre o debate a respeito das vias socialistas para a sociedade brasileira, propondo a continuidade dos debates acerca da necessidade de se distribuir melhor as riquezas depois do interregno militar, parece ter triunfado o capitalismo, como se este estivesse indiscutivelmente atrelado a um suposto ideal democrático unívoco. Mas, como já vimos, a liberdade no capitalismo é uma ilusão: “A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo, a todo o momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos que já foram previamente postos na mesa, Por isso, essa ação não é livre.” (SAFATLE, Vladimir. A Esquerda que não teme dizer seu nome. Três Estrelas, 2012. p. 18).
Sobre este tema, fica a sugestão de, se puderem, assistirem à peça “Escola”, peça chilena presente na I Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Pautada na reflexão da ditadura chilena, assim como esta nossa última reflexão, aborda-se o plebiscito nacional que decidiria o rumo da ditadura no país. Claro está que seja pra que lado for o plebiscito (para a manutenção da ditadura ou a restauração democrática), somente um lado será vitorioso: o dos milicos, afinal, não se discute a fundo as causas e, sobretudo as conseqüências da ditadura militar naquele país. Com a volta da democracia, esquece-se a luta, pois se tem a falsa impressão de vitória e liberdade. Recorro a Lênin: “Qualquer espécie de Liberdade é uma fraude, se é contrária aos interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital.” (LÊNIN, Vladimir Ílitch. Como iludir o povo – com os slogans de liberdade e igualdade. Global Editora, 1979. p. 26-27).
A ESQUERDA E A NECESSIDADE DE SE REVIGORAR A LUTA E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE
A mídia burguesa, bem amparada pelos mecanismos de repressão do golpe militar, fez acreditar por todas as instâncias que a luta de classes não mais existe. Esta é talvez a mais descarada e descabida alegação da direita para a manutenção de seu poder estabelecido. A esquerda precisa lutar pelo revigoramento da luta e da consciência de classes, embora o trabalho seja árduo e cada vez mais difícil de ser atingindo. Acima, pude provocá-los quanto ao questionamento de ser ou não possível modificar radicalmente os rumos políticos de uma nação pelas vias democráticas. Pensar em uma modificação de caráter radical usualmente é pensar em revolução. Mas é possível no atual cenário conceber uma revolução? Desde o restabelecimento democrático no Brasil jamais havíamos nos deparado com um posicionamento tão claro dos setores conservadores do país, sobretudo das grandes mídias, serviçais das estruturas panópticas que trabalham exaustivamente pela conservação do poder hegemônico nacional. Nasce, pois, uma esperança burlesca, mas bela e poética, de uma mudança dramática nos rumos da sociedade. Não obstante, assim parece, todos os dias, que uma melancólica constatação da realidade nos esbofeteia. Por que somos presas de tal sentimento? A resposta nos parece óbvia: o golpe militar instituiu nas entranhas da cultura política brasileira, e por conseqüência, na cultura social dos cidadãos brasileiros, uma incapacidade de se mobilizar politicamente contra a estrutura sócio-metabólica do capital. No entanto, as brechas, embora mais escassas, de tempos em tempos reaparecem. Como professor, e acreditando em meu papel social, sendo instrumento propulsor de contestação da ordem vigente para as novas gerações, posso afirmar que através da educação podemos, ainda, politizar os indivíduos ao ponto de serem eles a próxima vanguarda para uma política verdadeiramente revolucionária.
CONCLUSÃO: A FAGULHA INCENDIÁRIA
Como historiador, consigo somente me pautar pelo o que vi, pelos longos estudos das ações humanas ao longo dos séculos, dos milênios, pelas noites mal dormidas, pela angústia perene de um conhecimento tão vasto, o qual conheço somente uma ponta mínima e que me arrebata de felicidade e tristeza, simultaneamente, e ao vasculhar o passado e tentar (quase sempre em vão, ou ao menos, em pretensos momentos de epifania, que evaporam no momento seguinte) interpretá-lo no presente. Minha impressão é de que a direita teve um êxito quimérico ao nos fazer acreditar que a democracia é a vitória de todos. Infelizmente, como sabemos, a democracia está a serviço daqueles que persistem no poder. No caso de nosso tempo, os burgueses, desde a Revolução Francesa de 1789. Sob a bandeira melíflua da liberdade, igualdade e fraternidade, fazem-nos crer, com um cinismo que beira à ridicularização, de que somos iguais, livres e, de fato, fraternos. A sociedade meritocrática atual parte do pressuposto de que temos todos as mesmas oportunidades. Brancos e negros, a despeito de séculos de escravidão dos últimos. Homens e mulheres, a despeito do machismo disseminado ao longo dos últimos (pelo menos) 2500 anos. Ricos e pobres. Ocidentais e Orientais. A díade dos contrários pode se estender por muitas e muitas linhas. Como vimos, sob a perspectiva marxista, pensar a liberdade passa necessariamente por eliminar por completo a sociedade burguesa. Revogar imediatamente as caducas concessões dos meios de comunicação que servem somente aos interesses dos poderosos e que alimentam com prato raso refeições insuficientes. Estatizar todos os meios de produção e de reprodução sócio-metabólica do capital, destituindo assim todas as suas forças endógenas, inclusive aquelas que permeiam as relações estruturais antagônicas da agonizante (mas ainda viva) luta de classes, revigorando um movimento radical de massa e recolocando o socialismo em sua trajetória histórica revolucionária em contraste à permissiva postura social democrata da “nova esquerda”. “Por isso a atualidade histórica da ofensiva socialista tem imenso significado. Pois, sob as novas condições de crise estrutural do capital, torna-se possível ganhar muito mais do que algumas grandes (mas, no fim das contas, terrivelmente isoladas) batalhas, como as Revoluções Russa, Chinesa e Cubana.” (MÉSZÁROS, István. Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista. Boitempo Editorial. 2010. p. 68).
A fagulha incendiária apenas aguarda a palha seca pra se disseminar, mas encontra-se muito mais nas batidas descompassadas do peito, do que necessariamente na análise criteriosa e intelectual das diversas possibilidades. Quem sabe ambas não se encontram fortuitamente e mudam os rumos deste mundo que beira à extinção? Pelo futuro da humanidade, que assim seja.
Daniel Mafra é professor de História, vocalista e guitarrista do duo hardcore DANO, músico, compositor, falso poeta e proto-escritor. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.