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DILMA ROUSSEFF responde ao surto neofascista de Eduardo Bolsonaro ao sugerir um novo AI-5

A ex-presidenta Dilma Rousseff foi questionada por jornalistas de O Estado de S. Paulo sobre o que pensava a respeito das declarações de Eduardo Bolsonaro em defesa do AI-5. Abaixo segue a resposta de Dilma, na íntegra.

SOBRE OS SURTOS NEOFACISTAS E A COVARDIA
por Dilma Rousseff para O Estado de S. Paulo

Ninguém, dos órgãos de imprensa, pode se declarar surpreendido pela manifestação do deputado Eduardo Bolsonaro a favor do AI-5. Na verdade, ninguém pode se surpreender porque já houve seguidas manifestações contra a democracia por parte da família Bolsonaro. Defenderam a ditadura militar e, portanto, o AI-5; reverenciaram regimes totalitários e ditadores; homenagearam o torturador e a tortura; confraternizaram com milicianos. Desde sempre pensaram e agiram a favor do retrocesso. Antes das eleições não havia duvidas a respeito. Durante as eleições e depois dela, muito menos, pois têm se expressado contra a democracia e os princípios civilizatórios em todas as oportunidades que tiveram.

O grave é que nunca receberam da imprensa a oposição enérgica que mereciam. Ao contrário, acredito que a imprensa fez vista grossa ao crescimento do neofascismo bolsonarista, porque este adotara a agenda neoliberal. É que, além das pautas neofascistas, a extrema direita defende a retirada de direitos e de garantias ao trabalho e à aposentadoria; as privatizações desnacionalizantes das empresas públicas e da educação universitária e a suspensão da fiscalização e da proteção ambiental à Amazônia e às populações indígenas. Não é possível alegar surpresa ou se estarrecer diante da defesa do AI-5. Na verdade, em prol da realização da agenda neoliberal, na melhor hipótese se auto iludiram, acreditando que poderiam cooptar ou moderar Bolsonaro.

Mas a defesa do AI-5 e da ditadura sempre esteve lá.

Vamos novamente lembrar, o chamado filho 03, que agora diz que considera o AI-5 necessário, é o mesmo que, há algum tempo, disse que “um soldado e um cabo” bastavam para fechar o STF. Óbvio que sem o poder coercitivo de um AI-5, isto nunca seria possível.

O presidente, então ainda deputado, proferiu no plenário da Câmara um voto em que homenageou um dos mais notórios e sanguinários torturadores do regime militar. Aquele coronel só agiu com tal brutalidade contra os opositores do regime militar porque estava protegido pelo AI-5.

Jair Bolsonaro afirmou em entrevista que a ditadura militar cometeu poucos assassinatos de opositores políticos. E que os militares deviam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Também afirmou, na campanha do ano passado, que, se vencesse a eleição, só restariam dois caminhos aos petistas – o exílio ou a prisão – e de que maneira isto seria possível sem a força brutal de um ato institucional como o AI-5?

É estranho que me perguntem o que eu acho da última declaração sobre o AI-5, pois a minha vida toda lutei, e continuo lutando, contra o AI-5, seus assemelhados e seus defensores. O Estadão, que me faz esta pergunta, também deve e precisa responder, pois sua posição editorial tem sido, diga-se com muita gentileza, no mínimo ambígua diante da ascensão da extrema direita no País.

Quem nunca questionou as ameaças da família Bolsonaro com a firmeza necessária e que, em nome de uma oposição cega, covarde e irracional ao PT, se omitiu diante do crescimento do ódio e da extrema-direita, tornou-se cúmplice da defesa canhestra do autoritarismo neofascista.

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Bolsonaro é Ustra e Ustra é Bolsonaro

mulheres ditadura (Foto: Reprodução/Facebook)

Reprodução: Facebook

O candidato Jair Bolsonaro rendeu homenagem ao ex-coronel do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. Seus filhos, deputados, são vistos trajando camisetas com os dizeres Ustra Vive. Esse militar foi condenado pela justiça brasileira pela prática de tortura durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Aos desavisados, Ustra foi responsável pelo estupro, espancamento e todo tipo de violência contra mulheres. Muitas mortes são creditadas diretamente à sua ação. Vítimas de Ustra relatam que ele tinha a prática de inserir ratos nas vaginas de mulheres. Também levava os filhos menores das presas políticas para assistirem as mesmas sendo torturadas, como revela o depoimento de Maria Amélia Teles, cujos filhos foram levados para vê-la enquanto ela e o marido eram torturados por agentes do Estado ditatorial.

Nessa campanha eleitoral tenho visto colegas defendendo a candidatura de Bolsonaro e assumindo seus discursos. Há, até mesmo, quem tenha dito que a ditadura só foi ruim para “vagabundos” que não estavam “fazendo a coisa certa”. Devo dizer a quem divulga esse tipo de absurdo que sua ignorância ofende a milhares de pessoas que morreram ou foram brutalmente torturadas no Brasil.Estudem, camaradas! Não passem a vergonha de se colocarem lado-a-lado de candidatos violentos, homofóbicos, racistas e misóginos. Vocês só tem a perder com isso. A ignorância tem remédio, basta estudar. Não vamos colocar crápulas no comando deste país.

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Elites brasileiras não evoluíram desde 1964, diz Maria Aparecida de Aquino

No aniversário de 51 anos do GOLPE MILITAR que derrubou João Goulart, em 1964, o site Brasil de Fato fez uma entrevista com a historiadora aposentada da USP, Maria Aparecida de Aquino, na qual ela considera que o comportamento das elites brasileiras não mudou muito desde 1964.

Abaixo segue a entrevista na íntegra tal como publicado no Brasil de Fato.

“AS ELITES NÃO EVOLUÍRAM. AINDA É MUITO PARECIDO COM 1964, AFIRMA HISTORIADORA”
por Rafael Tatemoto | publicado originalmente em Brasil de Fato em 01.abr.2015

Maria Aparecida de Aquino é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, colabora com o Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma instituição. Durante a carreira, se dedicou ao estudo da repressão política durante o período da ditadura civil-militar no Brasil, especialmente a censura exercida sobre os veículos de comunicação.

Nesta entrevista à Agência Brasil de Fato, ela aborda os motivos que levaram ao golpe de Estado, o papel exercido pela imprensa e faz comparações com o atual cenário da política nacional. Segundo a historiadora, há um elemento em comum entre passado e presente: “Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964.”

Brasil de Fato: Quais foram os motivos que levaram ao golpe de 1964?

A gente precisa levar em consideração que no golpe estão presentes diversas forças dentro do Brasil, bem como existiu apoio internacional – mais especificamente, apoio dos Estados Unidos. Quando a gente pensa quais seriam os motivos que levariam essas forças internas e externas a embarcarem numa aventura, que foi o golpe de 1964 – aventura essa ilegal e ilegítima sobre todos os aspectos – existem razões bastantes diversas. Se tivéssemos que centralizar essas razões eu diria que, basicamente, foi o programa de reformas, as chamadas reformas de base do então presidente João Goulart, o elemento detonador dessa questão. Essas reformas atingiriam todos os setores: penetrariam na educação, no mundo agrícola, na indústria. Era uma proposta para mudar o Brasil.

Mas não se tratavam de reformas feitas em outros países? Por que aqui não foram aceitas pela elite?

Sim, era um projeto reformista, não revolucionário, mas “há elites e há elites”. Ela não aceitou porque não suporta partilhar, essa é a característica da nossa elite. Não apenas da elite do nosso país. É uma marca das elites dos países que eram consideradas subdesenvolvidas.

Enquanto você tem nos países considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada caracterização das elites, na medida em que não existe um distanciamento tão grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações, você tem uma distância imensa. Existem nações em que o menor salário e o maior não ultrapassa dez vezes. Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente esse distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão permissiva.

Ela não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que ela diz “não podem se sentar à mesa”, ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas teriam que, inclusive, você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando, mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O seu próprio desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para ela.

Hoje se fala muito do papel de resistência à ditadura que os órgão de imprensa desempenharam. Como eles atuaram antes do golpe?

Têm um papel de protagonismo. Eles foram conspiradores. Toda a grande imprensa estava na conspiração contra a democracia. Vai ser uma das articuladoras mais importantes do golpe. O único veículo que não apoiou o golpe e se manteve ao lado do regime deposto foi o jornal “Última Hora”, do Samuel Wainer. Por conta disso, ele ganhou um inimigo total, que vai destruir o jornal. Demora pelo menos quatro anos até ele perder a posse do jornal em 1968, mas é destruído. Também ocorreu com o “Correio da Manhã”, que apoia o golpe, mas que dois dias depois já está contra, se colocando na oposição, já que percebeu o monstro que ajudou a criar. Por conta disso, também será destruído, pelo mesmo grupo que comprou o “Última Hora”.

Então como se explica que parte da grande impressa, após esse momento inicial, passa a resistir à ditadura?

A maior parte dos órgãos de divulgação de notícias tem um tendência absolutamente liberal. Faz parte dos objetivos do liberalismo a defesa da liberdade de expressão e de opinião. Então, a liberdade de imprensa é um elemento central no interior da plataforma liberal. A imprensa tem essa plataforma. Não é o tipo de coisa que eles queriam que acontecesse. Embarcou numa terrível aventura, descobriu que a canoa era furada, num determinado momento a canoa deles também fura. O exemplo lapidar é o jornal que eu estudei, “O Estado de S. Paulo”. Foi um grande conspirador. Os Mesquita [família dona do jornal] assumem que estavam na conspiração, dois anos antes do golpe eles já faziam parte das reuniões que discutiam como seriam o Brasil depois do apocalipse. Mas três anos depois do golpe já está na linha de tiro, tanto que vai receber a censura. Talvez o único, ao lado da revista “Veja” órgão da grande imprensa que tem censura prévia no interior da redação.

Com o fim da ditadura, é possível dizer que há uma contradição entre democratização política e a ausência de democratização da mídia?

Os grandes blocos de comunicação, o Brasil tem meia dúzia, se chegar a tanto, você observa que eles não tem como seu ideal a defesa da democratização das comunicações. Porque democratizar significa, ao fim, que você dará liberdade para as pessoas se organizarem em pequenos jornais que nasceriam, que passariam a ter direito à luz do sol. Para grande imprensa isso não interessa.

Quando você pega “o grande jornal A” versus “o grande jornal B” você vai ver manchetes idênticas, até a fotografia de capa muito parecida. O mesmo para as grandes revistas, parece tudo a mesma coisa. É bom esse mundo, né? Esse mundo entre “iguais” agrada a grande imprensa, o mundo da diversidade não.

Na realidade se está na defesa do oligopólio. Há grupos enormes que dominam fatias gigantescas do mercado das comunicações. É uma defesa cooperativista. Não quer que outros entrem. Para eles o “mesmismo” é bom. De forma alguma tem a ver com liberdade imprensa. Liberdade de imprensa, inclusive, seria lutar pela diversidade

Você vai em uma cidade do Acre, tem uma concessionária dos grandes veículos. É isso que está em jogo. Por isso que está jogo, a perda de domínio. No Brasil, antes mesmo de se colocar em pauta, se faz o discurso de dizer que está se ameaçando a liberdade de imprensa.

Nesse sentido, qual sua avaliação mais geral sobre o papel da imprensa no fortalecimento da democracia?

Fortalece enquanto defensora das liberdades democráticas, dentre elas a liberdade de expressão e imprensa. Tem um papel importante sim, mas não se pode dizer que ela seja fiel à democracia no sentido de que a democracia também significa conviver com o diferente, com o antagônico. O que se vê hoje é a incapacidade de viver com o antagônico. “Vocês estão de um lado, eu de outro, não quero diálogo”. Hoje cumpre um papel péssimo, nesse sentido

Eu fico muito chateada e entristecida quando eu comparo as manchetes que antecedem o golpe de 1964 e o que se faz hoje na grande imprensa. Só é comparável o que se faz hoje em relação ao governo. A grande imprensa está fazendo isso de novo, não aprendeu com a censura, com o fechamento com o empastelamento, não aprendeu nada, repete a mesma coisa. Só a semelhança com a destruição que hoje se faz do governo com o processo de destruição de que foi alvo o governo de João Goulart.

Quando você acompanha as manchetes, as primeiras páginas, os editoriais daquela época, eles são devastadores. Não é “queremos um Brasil melhor”, mas sim “o que está aí não nos serve”, independente de ser democrático ou não, então partiram pro ataque. Está acontecendo o pior que pode ocorrer, não se está dando possibilidade de defesa para alguém que você colocou no chão. Usa-se todo seu potencial e destrata cada um dos pontos do governo. “Nada é bom”.

“O Brasil teve coisas negativas, mas cresceu o nível de emprego”. O “mas cresceu o nível de emprego” é o mais importante, mas aparece no rodapé da página. É clara a iniciativa para quem quiser ver e estiver prestando atenção.

Na sua opinião o que permaneceu intocado mesmo com o fim da ditadura?

Hoje pouca coisa. Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram. Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que que persista é uma atitude semelhante das elites, infelizmente.

Então as elites ainda se comportam do mesmo jeito?

Quando você analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem, para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.

Hoje você tem uma elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer “para nós acabou a brincadeira, a bola é minha e não brinco mais” e assumir uma caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não seja capaz de embarcar em um aventura terrível, pela forma como age, pelas considerações que ela faz.

Um exemplo foi quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos, você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer: “é esse tipo de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições, desejo e vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].

Ou seja, hoje você tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de outra dá o acesso às pessoas que não teriam a determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário.

Essa proposta descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.

Como a senhora analisa os protestos pedindo impeachment, os “panelaços”?

Quem bateu panelas? Foi a grande elite? Eu sou capaz de entender o porquê. Tem o que perder, e é só por isso que está batendo panela. Eu não tenho dúvida que essa gente está em defesa de seus privilégios. Existiu a tentativa de puxar um fio de corrupção que envolveria o PSDB, mas foi engavetado. Então por que se diz que só existe um criminoso, o PT?

O Paulo Francis, há mais de vinte anos já falava de corrupção na Petrobras. Faleceu porque veio um processo judicial que ele não conseguiu arcar. A corrupção é exclusiva desse governo?

Mas o consevadorismo, atualmente, não se resume à elite…

Uma coisa é pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de ascensão das chamadas classes médias, quanto a isso não há dúvida, mas é um erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a leitura que se tem, na média, é conservadora.

Isso se deve à formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.

O que você diria para alguém que defende o retorno da ditadura?

Pensa, raciocina e observa o que o regime militar produziu. Um mundo sem luz. A desigualdade se ampliou enormemente nesse período, os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. É isso que você quer para a sociedade brasileira? O remédio para a sociedade brasileira é uma aventura antidemocrática? Para combater a corrupção é necessário acabar com a democracia?

Para pessoas que pensam nisso, eu aconselharia a ver as contas da Transamazonica. Ou as contas nunca fechadas da Ponte Rio-Niterói. Ninguém falou, porque naquele momento não podia falar. Se você levantar, você vai trazer uma quantidade de coisas irregulares que arrepia os cabelos de qualquer um. Hoje, graças ao caminho que a sociedade brasileira trilhou, nós temos liberdade de falar. O autoritarismo corre ao lado da irregularidade, porque ele abafa a irregularidade.

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O ensino de História durante a ditadura militar (1964-1985)

Publicado originalmente na GAZETA DO POVO, em dezembro de 2014, esta é uma entrevista realizada com a professora Maria Auxiliadora Schmidt, durante o lançamento de seu livro 50 anos da ditadura militar: capítulos sobre o ensino de História no Brasil. Nela a professora trata do desafio de ensinar a história em um período no qual a disciplina foi simplesmente abolida do currículo escolar, durante o regime militar no país (1964-1985).

Convém recordar que, durante este período, além de os professores passarem por ‘treinamento’ oferecido pelo sistema, as matérias de História e Geografia foram substituídas pelo chamado “Estudos Sociais”, disciplina na qual o mesmo professor teria de ensinar as duas matérias com livros didáticos que obrigatoriamente passavam pelo crivo da censura. Evidentemente, o resultado geralmente era um ensino superficial.

Maria Auxiliadora Schmidt, durante o lançamento do livro 50 anos da ditadura militar: capítulos sobre o ensino de História no Brasil.

O DESAFIO DE ENSINAR HISTÓRIA QUANDO A HISTÓRIA FOI EXTINTA DAS ESCOLAS
publicado originalmente em Gazeta do Povo | dezembro 2014

As professoras Maria Auxiliadora Schmidt, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Kátia Abud, da Universidade de São Paulo (USP), lançaram recentemente o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos sobre o ensino de história no Brasil”, obra que reúne documentos do período e artigos de nove professores e pesquisadores.

No livro é possível encontrar artigos de professores relatando as dificuldades e experiências nesse regime de exceção. O artigo de João Bertolini, por exemplo, conta a passeata em março de 1964 – portanto dias antes do golpe militar – ocorrida em Curitiba contra o livro didático História Nova do Brasil ,que foi considerado uma obra “subversiva”. Confira os principais trechos da entrevista com Maria Auxiliadora Schmidt.

Como era ministrado o ensino de História durante o regime militar? Primeiro que nós não éramos professores de História, mas sim de Estudos Sociais. Esse modelo foi criado nos Estados Unidos pós-crise econômica de 1929. A educação foi culpada pela crise nos Estados Unidos. Passou-se a focar mais nos interesses de mercado, voltado para a sociedade industrial. Era um ensino menos intelectualizado. Juntaram História e Geografia em uma única disciplina. No Brasil, há um começo experimental dessa disciplina na década de 50, mas foi em 1971 que oficialmente abole-se de vez a História do currículo escolar.

Isso valia para todas as turmas? Do 1.º ao 4.º ano era a Integração Social, que misturava um pouco de tudo, de História a noções de higiene. Da 5.ª à 8.ª série começava a ministrar os Estudos Sociais. Fui professora dessa disciplina sem saber Geografia a fundo. Acabava focando mais na História. Os livros didáticos eram divididos: metade História e metade Geografia. Era um ensino raso. Os professores não tinham domínio de todo o assunto. Sem falar que os livros tinham um carimbo de que era autorizado pela censura. O material que usávamos em sala de aula tinha de passar pelo crivo da ditadura.

Ou seja, havia assuntos da história que não poderiam ser tratados? Sim. O golpe militar, por exemplo, só virou ‘golpe’ depois do regime militar. Antes, tínhamos de tratar o assunto como uma revolução contra o comunismo. Isso durou até 1984.

Não tinha como os professores driblarem o sistema? Sim, a gente tentava. Isso era mais comum nas escolas públicas do que nas particulares. Mas era complicado porque era algo proibido.

Pode nos contar alguma dessas experiências? Eu tentava falar, por exemplo, dos problemas sociais que existia no Brasil, o que não era permitido durante a educação do regime militar. Eu falava que esses problemas existiam em todo percurso histórico e que ainda hoje existem. Comentava sobre a Revolução dos Cravos, em Portugal (ocorrida em 1974 que depôs o regime ditatorial salazarista) e abordava que o que Portugal viveu era uma ditadura.

Havia repreensão? Fui reprimida até por pais dos alunos. As crianças ficavam impressionadas e os pais iam reclamar e indagar o motivo de eu falar isso em sala de aula. Muita gente da classe média era a favor do golpe.

Como era a preparação dos professores durante o Regime Militar? Os professores eram treinados. Tinha uma palavra chave no período, que era reciclagem. Ou seja, transformando algo velho em uma coisa nova. O governo militar estruturou isso muito bem no Paraná. Os professores eram convocados antes do começo das aulas, no início do ano, para serem ‘reciclados’ no Cetepar (Centro de Treinamento do Magistério do Estado do Paraná), no Boqueirão, em Curitiba. Assim, os professores eram adestrados.

Quanto tempo era esse preparo oferecido pelo regime? Cerca de uma semana. O professor ia pela manhã e só era liberado no final da tarde. Ficávamos o dia inteiro. Na escola, depois de fazer a ‘reciclagem’ íamos fazer o planejamento das aulas.

E como era estruturado o planejamento? O planejamento era baseado em objetivos e metas. Hoje há um debate para criar metas.

Durante todo o período do regime militar era proibido ensinar História? Apenas no 2.º grau (hoje Ensino Médio) é que havia a disciplina de História. Mas era durante um ano e duas vezes por semana. E o 2.º grau, naquela época, era escasso no ensino público. Estava concentrado na educação particular, onde a elite é que frequentava.

Ao proibir o ensino de História, o governo militar pretendia inibir as pessoas de pensar? A principal função da História é formar consciência histórica das pessoas. Claro que essa consciência também é influenciada na família, pela televisão, pela mídia, pelas conversas com os amigos. Tudo isso ajuda a formar uma cultura histórica. A escola tem a função e a responsabilidade de contribuir para a formação de uma consciência histórica para que os alunos possam estabelecer relações entre presente e passado, mas também perspectivar o futuro. A consciência histórica é fundamental para as pessoas se desanuviarem de preconceitos e estereótipos. Possibilita pensar de forma empática, se colocando no lugar do outro.

Como é o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos sobre o ensino de História no Brasil”? O livro pode ser dividido em duas vertentes. A primeira reúne capítulos escritos por professores que viveram o período e pesquisam o assunto. São análises históricas, com o componente de que as pessoas que as escreveram eram professores de História. A outra reúne documentos publicados durante o Regime Militar que se perderam com o tempo. Muitos jovens não têm acesso a esse material, como um manifesto da Associação Nacional de História contra as propostas de ensinar História naquela época. Resolvemos colocar esses anexos como fontes históricas para o período presente.

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“Dormia a nossa pátria mãe, tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”.

Por Rodrigo Nagem de Aragão, estudante de história do DH-USP, em ocasião do aniversário do Golpe Militar de 1964.

texto rodrigo

Há 51 anos, no dia primeiro de abril de 1964, tinha início a Ditadura Militar, um sombrio capítulo de nossa história que persistiu por longos 21 anos – desde o golpe que levou à deposição do presidente João Goulart até o início da Nova República, com o processo da “redemocratização” (ou, como se convém chamar, o processo de retorno ao parlamentarismo burguês, a “ditadura democrática” das classes dominantes). 

Pressionada pelo governo dos Estados Unidos, cuja postura com relação à América Latina se tornara mais assertiva após o triunfo da Revolução Cubana em 1959, e preocupada em assegurar o poder do Estado e prevenir que o reformismo do governo de João Goulart pudesse abrir espaço para caminhos mais radicais, a burguesia brasileira, nas condições postas, abraçou a via do golpe, contando com o amplo apoio logístico e operacional de órgãos de inteligência estadunidenses (com destaque para o IBAD e o IPES). E, deste modo, no dia primeiro de abril de 1964, Joao Goulart foi forçosamente destituído do cargo de presidente da República. O regime que então se seguiu foi marcado por uma série de crimes hediondos e violações aos direitos humanos, desde o cerceamento dos direitos civis e das garantias constitucionais até as práticas de tortura e assassinato, atrocidades cometidas principalmente na perseguição sistemática à esquerda brasileira, especialmente os comunistas.

A Ditadura Militar encarregou-se de, por um lado, esvaziar as esferas democráticas, desarticulando as reformas sociais e econômicas intencionados pelo governo de João Goulart, e, por outro lado, institucionalizar um brutal processo de repressão contra a esquerda. Assim, a soldo das elites e por meio da violência generalizada, os militares esforçaram-se para liquidar as organizações progressistas, no geral, e as organizações revolucionárias, de inclinação comunista, em específico. À época, partidos políticos, centrais sindicais, ligas camponesas e diversos movimentos sociais (estudantis, religiosos, etc.) tornaram-se alvos compulsórios dos órgãos de repressão da Ditadura – e, mais adiante, também os grupos de luta armada, formados após o recrudescimento da perseguição política; com requintes de crueldade, incontáveis militantes de tais organizações foram encarcerados, mutilados e chacinados, casos atrozes que, em sua maioria, permanecem até hoje sem esclarecimento público e cujos responsáveis seguem impunes, uma vez que, anistiados, jamais chegaram a responder por seus crimes. Desta forma, sob uma montanha de cadáveres, o regime militar cumpriu o seu papel: ossificou a vida política do país e, sob tal conjuntura, garantiu a primazia dos interesses econômicos e políticos das classes dominantes, atendendo igualmente aos propósitos do imperialismo norte-americano com relação ao Brasil.

Os resultados da tarefa bem-sucedida levada a cabo pelos militares se fazem sentir – e com muito peso – até hoje: o poderio político e econômico de monstruosas associações empresariais, formadas a partir de negociações entre grupos envolvidos nos bastidores do golpe militar e que até hoje reinam sobre largos setores da indústria brasileira; a elevada concentração de terras nas mãos de um ínfimo punhado de latifundiários, agraciados durante a Ditadura por uma série de leis aprovadas em detrimento da reforma agrária e em benefício do crescente acúmulo da propriedade fundiária, fato que entrava o desenvolvimento econômico do campo e condena milhares de famílias campesinas à miséria extrema; a cristalização das práticas de corrupção no seio da atividade parlamentar a partir da associação do Estado com grandes grupos econômicos, ocorrência inerente ao próprio capitalismo, mas fortemente propiciada pelo regime militar, como, por exemplo, é o caso das famosas “quatro irmãs” (Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez), empreiteiras que foram amplamente beneficiadas por contratos milionários firmados em parceria com a Ditadura e que, hoje em dia, lideram as listas de financiamento privado de campanhas eleitorais e marcam presença nos casos mais recentes de corrupção envolvendo esquemas de licitação pública; a subserviência da economia nacional às instituições financeiras privadas, principalmente os bancos estrangeiros, quadro incentivado após 1964 e que nos remete à atual dívida pública do país, cuja amortização compromete quase 50% do orçamento federal; e a permanência de práticas de repressão à moda fascista, herança direta dos métodos de procedimento policial instaurados pelos militares, cujo reflexo mais claro é a presente campanha de extermínio promovida pela polícia militar contra a população pobre, trabalhadora e negra que habita as periferias dos grandes centros urbanos brasileiros.

Passados trinta anos do fim da Ditadura Militar, ponderando sua relação com o nosso presente e colocando em perspectiva os seus efeitos, permanecem atuais, pois, os versos de Chico Buarque: “Dormia a nossa pátria mãe, tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”.

Para saber mais sobre a Ditadura Militar:

– Análise crítica do sociólogo Carlos Eduardo Martins acerca do regime militar:http://dincao.com.br/noticias/?p=2811

– Relatório final apresentado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV):http://dincao.com.br/noticias/?p=2804

– A participação dos EUA na elaboração e efetivação do golpe militar:http://dincao.com.br/noticias/?p=2835

– “O dia que durou 21 anos”, documentário dirigido por Camilo Galli Tavares sobre o envolvimento do governo dos Estados Unidos na preparação, desde 1962, do golpe militar executado em 1964:

O dia que durou 21 anos from Ivan Fayvit on Vimeo.

– A relação entre a Ditadura Militar e a Operação Condor: http://dincao.com.br/noticias/?p=2884

– Especial “À espera da verdade”, conjunto de documentos, artigos e entrevistas a respeito do regime militar: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/68036/Ultima+instancia+inaugura+especial+a+espera+da+verdade+45+anos+do+ai_5+50+anos+do+golpe.shtml

– Site da Comissão Nacional da Verdade, contendo os relatórios dos trabalhos de investigação e discussão realizados pela CNV e links para a documentação pesquisada e analisada: http://www.cnv.gov.br/

– Site “Memórias da Ditadura”, portal lançado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos com um amplo acervo de imagens, informações e documentários sobre a Ditadura Militar: http://memoriasdaditadura.org.br/

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Do Golpe Militar e o enraizamento da revolução burguesa no Brasil à fagulha incendiária

por Daniel Mafra | Exclusivo para o Hum Historiador | 01.Abr.2014

INTRODUÇÃO

O presente texto pretende transitar temporalmente e em movimento pendular, ora no passado, ora no presente, entre a sombria bruma condensada pelo Golpe Militar no Brasil, o qual instaurou uma ignominiosa Ditadura Militar entre os anos de 1964 e 1985 e o movimento político, social e cultural na primeira metade da segunda década do século XXI.

Não obstante este texto ter sido motivado pela dolorosa, mas imprescindível e imperativa lembrança dos 50 anos do Golpe Militar, não é nosso intuito remontar cronologicamente os fatos que se apresentaram. Qualquer manual poderá suprir tal necessidade. Nosso intuito é refletir como, a partir do golpe, se solidificou (ainda mais) o ideal reacionário, conservador e golpista no Brasil. Faz-se míster ressaltar o papel da imprensa ontem e hoje. Demonstraremos que a retórica de hoje sobre uma pretensa imparcialidade e defesa das instituições democráticas no país é somente uma das mais cândidas formas da grande mídia burguesa de manipular o discurso em prol do status quo, da ordem estabelecida.

Por fim, mas certamente não menos importante, refletiremos também sobre o árduo caminho a ser percorrido pela esquerda, para que esta retome seu papel atuante na política brasileira (e por que não dizer internacional, oras, se o programa original do socialismo se propõe como internacionalista?) e se faça presente e eficaz como modelo de contestação à ordem vigente e destrutiva da estrutura sócio-metabólica do capital. Àqueles que torcem o nariz, achando demasiado radical a bipolaridade deste texto, em sua exegese marxista capital x social, recorro à Mészáros: “Os que falam a respeito de uma “terceira via” como solução ao nosso dilema, e que afirmam não haver espaço para a revitalização de um movimento radical de massa, ou querem nos enganar cinicamente ao dar o nome de “terceira via” à aceitação submissa da ordem dominante, ou não entendem a gravidade da situação, acreditando num sonhado resultado positivo que vem sendo prometido por quase um século, mas que não dá sinais de se realizar.” (MÉSZÁROS, István. O Século XXI: Socialismo ou Barbárie? Boitempo Editorial. 2003. p. 108).

Antes de darmos início ao que já se iniciou nas entrelinhas, fica a reflexão sobre a liberdade imposta (o paradoxo não é coincidência) pelo capitalismo, resguardado pelo conceito conveniente de democracia: “A igualdade é uma palavra oca a não ser que por igualdade se entenda a abolição de classes. Só destruindo as classes haverá igualdade.” (LÊNIN, Vladimir Ílitch. Como iludir o povo – com os slogans de liberdade e igualdade. Global Editora, 1979. p. 33).

UM GOLPE. 21 ANOS.

Há exatos 50 anos, no dia 1º de abril de 1964 (não há data mais sugestiva para aqueles que até hoje tentam macular os fatos históricos) caía o governo democrático brasileiro, na figura de seu presidente João Goulart, o Jango, após a burlesca marcha do General Mourão Filho, que articulara o golpe em vestes de dormir (imagino-o numa ceroula de seda, nas cores do Brasil, declamando de si para si seu ato heróico diante do espelho, numa espécie de devaneio sem maiores aspirações) no dia anterior, mas que se tornaria o estopim bem-sucedido para o estupefato golpe.
Apoiados pelo governo dos EUA, os militares marcharam para a vitória sem disparar tiros, sem ir ao campo de batalha, num silêncio que se seguiria por 21 anos. Fosse esta uma rapsódia, dar-se-ia a impressão de que o silêncio corroborara com o vergonhoso ato. Um silêncio de vergonha e das mordaças da tortura. Mas mais adiante veremos que ecoaram pelos cantos urbanos de algumas capitais, gritos delirantes da classe média, sempre reprodutora bajuladora das classes dominantes contra as reformas de base propostas por Jango. Estas aviltavam o poder consolidado da grande propriedade privada e especulativa da classe burguesa. Colocavam em xeque as enormes e vergonhosas inversões de capital em prol de uma minoria que se banhava em rios de ouro, enquanto outros e muitos bebiam água barrenta. Na verdade, era delírio da direita ultraconservadora. João Goulart vivia sob uma enorme pressão de ambos os lados (ambos os lados estavam insatisfeitos com seus posicionamentos – a crise política crescia e arremessava uma névoa obscura e pouco inteligível aos olhos de quem a analisava). Numa medida drástica para seus padrões, sendo muito influenciado por Leonel Brizola, Jango vociferou no famoso comício da Central do Brasil. Aparentemente escolhera pelo povo. Estava lançada a semente última para o Golpe. Dos gritos, sobraram somente os ecos que foram silenciados pela lógica nefasta dos porões, das torturas e das sistemáticas execuções realizadas pelos mecanismos de repressão da Ditadura.

Ao lermos, relermos a exaustão, refletirmos sobre o período, sempre enojados e desconcertados pela imundice daqueles anos, é quase impossível acreditar que um indivíduo minimamente pensante possa conceber tal ignomínia para seu país e seus concidadãos novamente. Porém…

SAUDOSISMO TOSCO E O PAPEL DA IMPRENSA

É da natureza de uma sociedade que possui memória desviar seus olhares para o passado, para analisar o presente e vislumbrar o futuro. No entanto, por vezes, este saudosismo pode ser tosco, pois que se pauta no desconhecimento de um período, ou até mesmo estúpido, por se pautar nos valores ideais do tempo presente, propagados pelos meios de comunicação elevados a poder inquestionável, quase que divino. Oras, durante os anos de chumbo a novela das oito (hoje, das nove, mas que sempre recebe os láureos horários nobres da emissora) e o Jornal Nacional da Rede Globo terão espaço e influência direta no enraizamento da despolitização do cidadão brasileiro, que como bem se sabe, já não era lá o povo mais bem educado politicamente das Américas.

As Organizações Globo, que desde os anos que precederam o golpe já se manifestavam tendenciosas a favor de um golpe reacionário, foi quase que elevada à condição de porta-voz do governo, mas, sempre, sob os auspícios inescrupulosos da retórica da “imparcialidade”. Vale a pena ressaltar que aqueles que defendem esta maniqueísta “imparcialidade”, são aqueles que estão sempre no topo da pirâmide. Não manifestar-se é necessariamente comprar a idéia do status quo, do poder estabelecido. A imparcialidade é uma das formas mais escusas e repulsivas de manutenção das castas burguesas no poder, da falsa moralidade e ética da estética pseudo-democrática, que por sua natureza é seletiva, branca, eurocêntrica. O mesmo se pode dizer da Revista Veja e congêneres, que trabalham sob o discurso falacioso da imparcialidade. Neste sentido, podemos mui brevemente citar a desarticulação dos movimentos orgânicos de contracultura dos anos 1960 e 1970 e a substituição desses por um padrão de consumo cultural meramente mercadológico, arquétipo do lixo artificial e estéril dos anos 1990 em diante. De Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Celso, Glauber Rocha, O Pasquim (e tantos outros, tão importantes) à Luan Santana, Ivete Sangalo, Luciano Huck, Xuxa (e tantos outros tão desimportantes), ou qualquer lixo que se queira nomear.

Vale lembrar que neste pêndulo histórico, pouco se tem abordado sobre a manifestação da imprensa à época do Golpe Militar. Uma significativa parte da imprensa, mais uma vez respaldada pelo discurso da “imparcialidade”, foi absolutamente acrítica, evasiva e conivente ao golpe. Uma vez mais, os epítomes são a Rede Globo e a Revista Veja. Por muito tempo, ambas as mídias se esquivaram da matéria, apoiando-se nos efeitos certamente limitadores da censura, sobretudo a partir do AI-5. Não obstante, as manifestações de Junho do ano passado não deixam espaço para quaisquer dúvidas (se é que alguém tem alguma dúvida) sobre as inclinações destes dois veículos dominantes de comunicação. A começar pela clarividente apropriação da legítima reivindicação do MPL (Movimento Passe Livre) e subseqüente desfoco para uma pauta artificializada, sem mote e blasé. O discurso de que a luta não era por 20 centavos (o que não deixa de ser uma verdade, evidentemente) foi tão bem articulado, que antes mesmo de findar aquele mês, pôde-se assistir ao vivo (e com grande audiência) a desmobilização da população, num primeiro momento por reivindicar a absurda despolitização do movimento (dá pra acreditar?), depois ao deslegitimizar as ações “violentas”, enquadrando-as todas como atos de “vandalismo” e por fim (ah, por essa ninguém esperava) o ataque do conservadorismo ao Governo Dilma, à corrupção, aos mensaleiros… Jogada de mestre. O povo brasileiro é novo no jogo. Os caras são ases. Só faltou o Maluf na TV pra dizer que “foi ele que fez”. Pra findar esta digressão, que já nos embrulha o estômago, vale ressaltar o infeliz e trágico acidente mortal ocorrido com um cinegrafista da TV Bandeirantes. Fez-se primeiro parecer que aquela luta era a luta de “forças invisíveis” contra a imprensa livre e imparcial (olha a “imparcialidade” aqui de novo). Segundo fez-se sugerir que a esquerda estava envolvida em financiamentos escusos ao aparelhamento de movimentos apolíticos (oras, se são apolíticos, por que raios seriam financiados por partidos e por que, necessariamente, tinha que ser um partido da esquerda?), como os Black-Blocs. E em terceiro, a partir da imagética abstrata, mas muito bem desenhada, fez parecer que as manifestações eram subterfúgios inquestionáveis para ações de “vândalos” e “criminosos”. Pronto. O Brasil volta-se para o Carnaval e tudo volta à normalidade (ou seja, às normas de que a parcimônia popular está a serviço de quem detém interesses maiores por detrás da sujeira maculada pela imprensa em seu benefício próprio). O tempo livre, potencial destruidor das verdades incontestáveis, é substituído pelo valor e necessidade do labor, “na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho” (MARX, Karl. O Capital. Livro I. Boitempo Editorial. 2013. p. 597), ou pelo famoso Panis et Circensis da Roma Antiga. E não se esqueça, logo mais vem a Copa do Mundo. A gente se vê por aqui…

SAUDOSISMO TOSCO E O TIRO DO PT NO PRÓPRIO PÉ

Como nós pudemos verificar, o risco de um saudosismo tosco como este é não compreender as especificidades históricas de dado tempo. É chamar a Ditadura brasileira de “Ditabranda”, como o fez o jornal Folha de São Paulo. É reeditar a vexatória Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade (quão geniais são estes indivíduos: convocar a volta dos milicos – ou seja, do regime ditatorial – para instaurar uma liberdade guiada pela família cristão-burguesa. Ridículo, esdrúxulo, risível, mas extremamente perigoso). É desenhar com os lápis de ontem nos papéis de hoje a ascensão de grupelhos da direita ao Congresso Nacional sob a nomenclatura estapafúrdia de “bancadas religiosas” inseridas num estado laico, ou de “bancadas ruralistas” (sim, os mesmos grupos latifundiários que outrora apoiaram a derrubada de Jango no Golpe de 1964), mas com relações tão promíscuas politicamente, que se esquece da necessidade urgente de uma reforma política que impeça as aberrações que temos visto no Circo que se tornou a Política Nacional nos últimos anos (será que em algum momento ela foi algo senão um banquete da palhoça engravatada?). Eis uma das críticas que se pode fazer ao PT: a eterna demora para realizar uma reforma política que atenda aos interesses verdadeiros da nação.

Desde a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, certo se fez verificar o incômodo que este trouxe à direita (faz-se necessário esclarecer que este sempre foi uma pedra no sapato da direita, desde a curva descendente do regime militar). Não pelo fato de o PT ser um partido originário da esquerda, pois, como bem sabemos, o PT tem cada vez mais decepcionado no quesito ideológico, relacionando-se promiscuamente com partidos ligados historicamente ao fétido (de sangue das torturas e assassinatos) ARENA. Embora seja inevitável reconhecer alguns importantes, mas por vezes, vacilantes avanços do Brasil no Governo do PT, há de se lembrar que este teve a “faca e o queijo na mão”, chegando ao poder e deixando atordoados todos os reacionários de plantão, que agonizavam desesperadamente diante da possibilidade de uma real modificação no país, do desbaratamento das estruturas tão bem disseminadas das relações de poder burguesas. No entanto, o PT preferiu “trocar um Plano de Governo, por um Plano de Poder”, nas sempre sábias palavras de Frei Betto, em palestra proferida no Itaú Cultural, no dia 15/03/2014, às 20h30, numa das peças que compuseram a I Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

As esperanças de que o PT modificaria o Brasil esbarraram em questões que merecem uma reflexão mais aprofundada, mas fica aqui uma provocação: será possível chegar ao poder pelas vias democráticas sem sujar as mãos com aqueles que até mesmo as têm sujas de sangue? O que eu quero dizer é que, para chegar ao poder, o PT aparentemente teve que abrir mão de muitas de suas convicções, afastando-se de suas bases e programas originais… Mas esta é outra história, a qual lanço o desafio ao amigo Roger de colocá-la em pauta aqui no Hum Historiador tão logo seja possível.

Mas antes que “tucanos” e demais aves silvestres regurgitem seu reacionarismo moralista em favor de seus aliados políticos nas bancadas de uma oposição que notadamente é tão ou até mais mensaleira que a bancada petista e bebam a cicuta socrática e saudosa de seus tempos no poder, vale lembrar que o PSDB já fizera uma política tão promíscua quanto à do PT com os filhotes da Ditadura, nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, motivo pelo qual parceiros de tantos anos, como Octávio Ianni e Florestan Fernandes, romperam relações com o ex-presidente diante de sua postura paradoxal-esquizofrênica: presidente x sociólogo. O próprio FHC parece ter se desviado pelas ígneas relações do poder ao escrever um novo prefácio para a sua tese de doutorado, o clássico “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”, re-publicado pela Civilização Brasileira em 2003, demonstrando tendências bem mais conservadoras e certamente mais alinhadas com o presidente do que com o sociólogo. O ex-presidente recentemente concedeu uma entrevista ao site UOL (http://tvuol.uol.com.br/video/ninguem-sabia-de-que-lado-viria-o-golpe-diz-fhc-04020D9B3668D8C94326) falando sobre o golpe militar, sugere que se não fossem os milicos, seria a esquerda radical que o faria, e parece realmente achar que não há como fazer política no jogo democrático senão sujando as mãos…

O fato é que o PT, com todos os defeitos e críticas que podem ser apontados, incomoda as classes dominantes por dar visibilidade àqueles que sempre foram invisíveis. Não quero parecer o defensor-mor do Partido dos Trabalhadores. Boa parte de tudo o que me agradava no partido foi desfeito, redesenhado, repaginado. Mas há como contestar historicamente, dentro das linhas mestras metodológicas e sob a luz do conhecimento científico de que o PT desempenha o melhor governo da História do Brasil? Para a direita o pensamento, por mais que bisonho, parece ser a de  que “aquele partido com origens vermelhas, mesmo se tratando de mencheviques, chegaram e conquistaram democraticamente o poder. Quão perigosos podem ser o bolcheviques tupiniquins, caso estes pousem em Brasília?”. Eis um grande problema. Eis o cerne da distinção de julgamentos: o porquê de o mensalão do PT ser devassado ao passo que o mensalão tucano nem ao menos foi julgado. Ora, a “opinião pública” é encabeçada pelas mesmas elites dominantes de outrora, que permeiam o imaginário coletivo em sua forma impositiva e conservadora, e que desta feita, de forma taciturna e muito bem articulada pelo monopólio dos meios de comunicação, se faz presente sob a égide da falaciosa retórica da imparcialidade, mero discurso da perpetuação do mesmo poder velho e caduco através dos mecanismos de opressão e despolitização das massas. Como bem nos explica Mészáros, numa releitura de Marx, “[…] as pessoas estão “acostumadas a se movimentar” dentro das relações estabelecidas da vida cotidiana capitalista, por mais que sejam irracionais e absurdas as equações práticas impostas a elas pelos processos metabólicos dominantes do referido sistema.” (MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Boitempo Editorial. 2004. p. 481).

ANISTIA E A FALSA VITÓRIA

Ao final de sua dramática experiência no poder, através de uma anistia tendenciosa que os protegia juridicamente dos crimes cometidos, respaldados pela estéril volta da democracia (esta que serviria aos mesmos interesses daqueles que haviam realizado o golpe), os militares conseguiram solidificar as raízes da revolução burguesa no Brasil. A volta da democracia, embora significativa, não representava uma vitória verdadeira de fato, pois esta respaldava aqueles que seqüestraram o Brasil por 21 anos e institucionalizava aquilo que os militares preconizavam desde o início: uma vitória a qualquer custo da conservação do status quo da sociedade brasileira sobre as reformas imperativas que permitissem ao Brasil um desenvolvimento popular, mais justo e equânime, que não consentiria com o atual gigantesco abismo de concentração das riquezas nas mãos de tão poucos, em detrimento de outros em condições tão precárias. Do ponto de vista da luta de classes, o golpe militar estancou ao longo dos anos de chumbo a vitalidade da esquerda que, outrora ativa, se desconcertou e até hoje se indaga sobre seus rumos. Com a volta da democracia, ao invés de se ter a liberdade sobre o debate a respeito das vias socialistas para a sociedade brasileira, propondo a continuidade dos debates acerca da necessidade de se distribuir melhor as riquezas depois do interregno militar, parece ter triunfado o capitalismo, como se este estivesse indiscutivelmente atrelado a um suposto ideal democrático unívoco. Mas, como já vimos, a liberdade no capitalismo é uma ilusão: “A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo, a todo o momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos que já foram previamente postos na mesa, Por isso, essa ação não é livre.” (SAFATLE, Vladimir. A Esquerda que não teme dizer seu nome. Três Estrelas, 2012. p. 18).

Sobre este tema, fica a sugestão de, se puderem, assistirem à peça “Escola”, peça chilena presente na I Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Pautada na reflexão da ditadura chilena, assim como esta nossa última reflexão, aborda-se o plebiscito nacional que decidiria o rumo da ditadura no país. Claro está que seja pra que lado for o plebiscito (para a manutenção da ditadura ou a restauração democrática), somente um lado será vitorioso: o dos milicos, afinal, não se discute a fundo as causas e, sobretudo as conseqüências da ditadura militar naquele país. Com a volta da democracia, esquece-se a luta, pois se tem a falsa impressão de vitória e liberdade. Recorro a Lênin: “Qualquer espécie de Liberdade é uma fraude, se é contrária aos interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital.” (LÊNIN, Vladimir Ílitch. Como iludir o povo – com os slogans de liberdade e igualdade. Global Editora, 1979. p. 26-27).

A ESQUERDA E A NECESSIDADE DE SE REVIGORAR A LUTA E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE

A mídia burguesa, bem amparada pelos mecanismos de repressão do golpe militar, fez acreditar por todas as instâncias que a luta de classes não mais existe. Esta é talvez a mais descarada e descabida alegação da direita para a manutenção de seu poder estabelecido. A esquerda precisa lutar pelo revigoramento da luta e da consciência de classes, embora o trabalho seja árduo e cada vez mais difícil de ser atingindo. Acima, pude provocá-los quanto ao questionamento de ser ou não possível modificar radicalmente os rumos políticos de uma nação pelas vias democráticas. Pensar em uma modificação de caráter radical usualmente é pensar em revolução. Mas é possível no atual cenário conceber uma revolução? Desde o restabelecimento democrático no Brasil jamais havíamos nos deparado com um posicionamento tão claro dos setores conservadores do país, sobretudo das grandes mídias, serviçais das estruturas panópticas que trabalham exaustivamente pela conservação do poder hegemônico nacional. Nasce, pois, uma esperança burlesca, mas bela e poética, de uma mudança dramática nos rumos da sociedade. Não obstante, assim parece, todos os dias, que uma melancólica constatação da realidade nos esbofeteia. Por que somos presas de tal sentimento? A resposta nos parece óbvia: o golpe militar instituiu nas entranhas da cultura política brasileira, e por conseqüência, na cultura social dos cidadãos brasileiros, uma incapacidade de se mobilizar politicamente contra a estrutura sócio-metabólica do capital. No entanto, as brechas, embora mais escassas, de tempos em tempos reaparecem. Como professor, e acreditando em meu papel social, sendo instrumento propulsor de contestação da ordem vigente para as novas gerações, posso afirmar que através da educação podemos, ainda, politizar os indivíduos ao ponto de serem eles a próxima vanguarda para uma política verdadeiramente revolucionária.

CONCLUSÃO: A FAGULHA INCENDIÁRIA

Como historiador, consigo somente me pautar pelo o que vi, pelos longos estudos das ações humanas ao longo dos séculos, dos milênios, pelas noites mal dormidas, pela angústia perene de um conhecimento tão vasto, o qual conheço somente uma ponta mínima e que me arrebata de felicidade e tristeza, simultaneamente, e ao vasculhar o passado e tentar (quase sempre em vão, ou ao menos, em pretensos momentos de epifania, que evaporam no momento seguinte) interpretá-lo no presente. Minha impressão é de que a direita teve um êxito quimérico ao nos fazer acreditar que a democracia é a vitória de todos. Infelizmente, como sabemos, a democracia está a serviço daqueles que persistem no poder. No caso de nosso tempo, os burgueses, desde a Revolução Francesa de 1789. Sob a bandeira melíflua da liberdade, igualdade e fraternidade, fazem-nos crer, com um cinismo que beira à ridicularização, de que somos iguais, livres e, de fato, fraternos. A sociedade meritocrática atual parte do pressuposto de que temos todos as mesmas oportunidades. Brancos e negros, a despeito de séculos de escravidão dos últimos. Homens e mulheres, a despeito do machismo disseminado ao longo dos últimos (pelo menos) 2500 anos. Ricos e pobres. Ocidentais e Orientais. A díade dos contrários pode se estender por muitas e muitas linhas. Como vimos, sob a perspectiva marxista, pensar a liberdade passa necessariamente por eliminar por completo a sociedade burguesa. Revogar imediatamente as caducas concessões dos meios de comunicação que servem somente aos interesses dos poderosos e que alimentam com prato raso refeições insuficientes. Estatizar todos os meios de produção e de reprodução sócio-metabólica do capital, destituindo assim todas as suas forças endógenas, inclusive aquelas que permeiam as relações estruturais antagônicas da agonizante (mas ainda viva) luta de classes, revigorando um movimento radical de massa e recolocando o socialismo em sua trajetória histórica revolucionária em contraste à permissiva postura social democrata da “nova esquerda”. “Por isso a atualidade histórica da ofensiva socialista tem imenso significado. Pois, sob as novas condições de crise estrutural do capital, torna-se possível ganhar muito mais do que algumas grandes (mas, no fim das contas, terrivelmente isoladas) batalhas, como as Revoluções Russa, Chinesa e Cubana.” (MÉSZÁROS, István. Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista. Boitempo Editorial. 2010. p. 68).

A fagulha incendiária apenas aguarda a palha seca pra se disseminar, mas encontra-se muito mais nas batidas descompassadas do peito, do que necessariamente na análise criteriosa e intelectual das diversas possibilidades. Quem sabe ambas não se encontram fortuitamente e mudam os rumos deste mundo que beira à extinção? Pelo futuro da humanidade, que assim seja.


Daniel Mafra é professor de História, vocalista e guitarrista do duo hardcore DANO, músico, compositor, falso poeta e proto-escritor. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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A historietografia de Marco Antônio Villa: um negacionismo à brasileira

por Demian Melo | para o blog CONVERGÊNCIA em 07.fev.2014

Desde que publicou sua biografia do ex-presidente João Goulart,[1] Marco Antonio Villa vem defendendo a tese de que aquele presidente também pretendia “um golpe” em 1964.[2]Sendo assim os eventos de 31 de março/2 de abril daquele ano seriam uma espécie de “contra-golpe preventivo” – uma tese, aliás, que nada mais é do que o argumento dos verdadeiros golpistas. Do mesmo modo, o celebrado jornalista Elio Gaspari, em seu livro A ditadura envergonhada defende a mesma “tese”.[3] A questão é: mas o quê os dois apresentam como prova do suposto “golpismo” de Jango? Simplesmente um memorando do Embaixador Lincoln Gordon, onde este relatou à Washington os supostos intentos de Jango em “conseguir poderes ditatoriais”, além de informações retiradas de um livro comprometido com a ditadura, A história das revoluções brasileiras, de Glauco Carneiro. [4]A crítica ao trabalho de Gaspari já foi feita de forma eficiente pelo historiador Mario Maestri e o pelo jornalista Mario Augusto Jacobskind,[5] e essa nossa contribuição que segue irá se ater a Villa, que acaba de lançar outro livro.

Ditadura à brasileira é o que podemos definir como negacionismo, termo usado contra aqueles que nos anos 1980 difundiram a ideia de que o “Holocausto foi um mito”, autores classificados por Pierre Vidal-Naquet de “assassinos da memória”. A tese básica de Ditadura à brasileira apareceu há alguns anos em um artigo na Folha, que vale contextualizar.

Em 2009, quando um editorial do jornal Folha de São Paulo resolveu amenizar a ditadura brasileira através do termo “ditabranda”,[6] Villa não demorou muito para comparecer nas páginas do mesmo periódico paulistano propondo uma leitura ainda mais amenizadora sobre aquele período: a ideia de que no Brasil só houve mesmo ditadura entre o AI-5 de dezembro de 1968, e 1979. Com a “certeza da impunidade”, escreveu:

“Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982.”[7]

Em suma, se fosse possível levar a sério essas palavras do autor, as milhares de pessoas nas ruas em 1968 na passeata dos 100 mil contra a Ditadura deveriam ser praticamente taxadas de loucas; tal como seriam insanos os milhões de cidadãos que ocuparam as praças e avenidas do Brasil na campanha pelas Diretas já em 1984.

Mas voltemos a 1964 e pensemos em Gregório Bezerra, líder camponês e comunista, já idoso e arrastado pelas ruas do Recife amarrado a um jipe no dia do golpe; pensemos nos presos políticos, nas lideranças políticas banidas do país e nas denúncias de tortura já nos primeiros dias da ditadura;[8] nos Atos Institucionais e na Constituição de 1967. Poderíamos ficar aqui arrolando uma lista interminável de aspectos daquele regime, que obviamente sofreu uma radicalização a partir do AI-5.

Em breves palavras o filósofo Paulo Arantes sintetizou o espírito dessa operação revisionista:

“Pelas novas lentes revisionistas, a dita cuja só teria sido deflagrada para valer em dezembro de 1968, com o Ato Institucional no5 (AI-5) – retardada, ao que parece, por motivo de “efervescência” cultural tolerada – e encerrada precocemente em agosto de 1979, graças à autoabsolvição dos implicados em toda a cadeia de comando da matança. O que vem por ai? Negacionismo à brasileira? Quem sabe alguma variante local do esquema tortuoso de Ernest Nolte, que desencadeou o debate dos historiadores alemães nos anos 1980 acerca dos campos da morte.[9] Por essa via, a paranoia exterminista da ditadura ainda será reinterpretada como o efeito do pânico preventivo disparado pela marcha apavorante de um Gulag vindo em nossa direção.” [10]

Como intelectual de bolso dos talibãs do neoliberalismo, presença constante  como comentarista político – não, certamente, por algum mérito como pesquisador –, da TV Cultura à Globo News, da VEJA à blogosfera direitista, que Villa cumpra esse papel não deve espantar nenhuma pessoa bem informada. Sua Ditadura à brasileira não é um livro que precise ser lido; assim como os intragáveis Guias politicamente incorretos “disso e daquilo” não precisam de qualquer consulta atenta para se saber o tipo de literatura temos pela frente: mera manipulação ideológica.

Mais produtivo do que esquadrinhar o festival de bobagens escritos dessa vez pelo autor será observar como manipulações dessa natureza não são incomuns. Ao contrário, sempre ganham repercussão na ocasião de efemérides, como a dos 50 anos do golpe de 1964, como foi no bicentenário da Revolução Francesa,[11] ou, pior, nos 80 anos da Revolução Russa (1997), quando, além do Livro negro do comunismo, teve lugar também o filme Anastásia, da Disney, cuja função precípua era reabilitar o czarismo. Um exemplo recente é bem ilustrativo.

A “historietografia” espanhola

Desde o início dos anos 2000 as livrarias do Estado Espanhol têm sido invadidas por um tipo de literatura muito similar. Capitaneada por um ex-maoísta, Pío Moa,[12] e muito apoio midiático, agora se diz que a Guerra Civil dos anos 1930 foi uma “guerra patriótica contra a invasão vermelha”.[13] Enquanto isso o jornalista César Vidal, em publicações que são best-sellers, defende a tese de que o massacre de Guernica, imortalizado na tela de Picasso, não teria passado de um “mito vermelho”.[14]

Outra peça de propaganda desse revisionismo espanhol está expresso no Diccionario Biográfico Español, feito sob os auspícios da Real Academia de la Historia de España. No  verbete dedicado  a Franco, por exemplo, deixado a cargo do historiador medievalista Luis Suarez – nada menos que o presidente da Fundación Francisco Franco –, o caudilho aparece como um político “moderado” e “prudente” que encabeçou um “regime autoritário”, não uma “ditadura”, muito menos uma “ditadura fascista”. É evidente que não há consenso na historiografia sobre o enquadramento do franquismo como uma experiência fascista, mas deve-se observar que o propósito desta absolvição não opera a partir de uma rígida elaboração conceitual, mas com flagrante propósito apologético.

Em resposta, En el combate por la historia. La república, la guerra civil, el franquismo (Contradiccionario),[15] editado por Ángel Viñas e que conta com 45 capítulos temáticos e 12 verbetes biográficos  escritos por especialistas de três gerações, como veteranos do porte de Paul Preston, Julia Casanova, Julio Aróstegui, Alberto Reig Tapia, além de Josep Fontana. Com um título que rememora o clássico livro Combats pour l’Histoire (1952) de Lucien Febvre (1878-1956), o propósito do Contradiccionario é o de combater o que os autores denominam de “historietografia”, e também apresentar o resultado da investigação histórica dos últimos 30 anos sobre a evolução da sociedade espanhola no período compreendido entre 1931 até 1975.

Em sua Introdução, Ángel Viñas confessa que relutou algumas vezes antes de aceitar a ideia de organizar uma obra de resposta a essa manipulação neo-franquista da história, mas que acabou convencido por entender o problema ético de fundo que significava a popularização desse tipo de literatura no grande público. Isso por que, ao contrário do que pensam muitos profissionais da Clio, o tipo de atividade que exercem tem profundas implicações nas disputas políticas contemporâneas.

Normalizar um passado ditatorial pode ser uma arma eficiente na construção do consenso em torno ao desmonte do Estado Social – que o Brasil nunca conheceu, diga-se de passagem – e a instituição de um Estado Policial. Não se trata de um debate sobre o passado, mas sobre o aqui e o agora, seja no Sul da Europa dos pacotes de austeridade, seja no país da Copa e dos Megaeventos.

Um negacionismo à brasileira

Definitivamente, Marco Antonio Villa está longe de ser um historiador que a comunidade acadêmica tem levado a sério. Embora esteja vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, é só mais um exemplar daqueles escribas da ordem apresentados na TV como “especialistas”, como o sociólogo Demétrio Magnoli e tantos outros ex-esquerdistas que, como Villa, estão sempre à disposição para vocalizar os interesses da oposição de direita ao governo do PT.

Alguns colegas, sérios pesquisadores por sinal, acreditam que infelizmente trabalhos como o de Villa vendem, e vendem muito. E é muito provável que tenham razão. Tal como literatura de aeroporto, é muito possível que Ditadura à brasileira encontre seu lugar entre os best-sellers na categoria dos livros de não-ficção, o que ironicamente só revela o lado decadente  de amplas parcelas semiletradas da classe média brasileira, mais afeitas a churrascarias do que  a bibliotecas.[16] Pois é propriamente o tipo de livro que interessa a gente que adora uma boa justificativa para não ler mais nada.


[1] VILLA, Marco Antonio. Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004.

[2] Idem, p.9.

[3] GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.51.

[4] VILLA, op. cit., p.191. GASPARI, op. cit., p.79.

[5] Cf. MAESTRI, Mário & JAKOBSKIND, Mário Augusto. “A historiografia envergonhada” Revista História & Luta de Classes. Ano 1, nº 1, p. 125-131, 2005. Disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/024/24res_gaspari.htm

[6] Editorial do jornal Folha de São Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, p.2.

[7] VILLA, M. A. “Ditadura à brasileira.” Folha de São Paulo, 5 de março de 2009, p.3.

[8][8] Tortura como uma prática estrutural do novo regime, já que num país de passado escravista como o Brasil sua origem é imemorial.

[9] Sobre o revisionismo de Nolte, remeto o leitor à nossa contribuição: MELO, Demian Bezerra de. “Revisão e revisionismo historiográfico: as disputas pelo passado e os embates políticos contemporâneos.” Marx e o Marxismo, Niterói, v.1, n.1, p.49-74 jul/dez 2013. Disponível emhttp://www.marxeomarxismo.uff.br/index.php/MM/article/view/11

[10] ARANTES, Paulo. “1964, o ano que não terminou.” In. TELES, Edson & SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p.209.

[11] Para o qual existe o incontornável livro de HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[12] Pío Moa pertenceu à organização de extrema-esquerda Grupo de Resistência Antifascista Primero de Octubre (GRAPO), fundada em 1975, o braço armado do maoísta Partido Comunista de España (reconstituído).

[13] MOA, Pío. Los mitos de la Guerra Civil. Madrid: La esfera de los libros, 2003.

[14] VIDAL, César. Paracuellos-Katyn. Un ensayo sobre el genocídio de la izquierda. Madrid: Libros libres, 2005.

[15] VIÑAS, Ángel (ed.). En el combate por la historia. La república, la guerra, el franquismo. Barcelona: Pasado & Presente, 2012.

[16] Classe média essa que adora recomendar aos jovens de periferia que  façam seus “rolezinhos” em bibliotecas.

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CLUBE Militar faz crítica dura às organizações Globo por terem afirmado que apoio ao Golpe de 64 foi um equívoco

O blog de Lino Bocchini, da Carta Capital, traz post interessante sobre a reação do Clube Militar ao recente editoral de O Globo, publicado neste último sábado (31), no qual considera o apoio dado pelas organizações do Sr. Roberto Marinho ao Golpe de 64 um equívoco. Para entidade que reúne oficiais da ativa e ex-militares e promove comemorações da chamada “Revolução” todo dia 31 de março, “Declarar agora que se tratou de um ‘equívoco’ é mentira deslavada”.

Abaixo, o texto do post do Blog de Lino Bocchini.

CLUBE MILITAR CRITICA EDITORIAL “MEA CULPA” DE O GLOBO.
por Lino Bocchini – publicado originalmente 04/09/2013 | Blog do Lino

O Clube Militar, entidade que reúne oficiais da ativa da marinha, do exército e da polícia (e também ex-militares), soltou nestaquarta-feira 4 de setembro uma nota oficial ” Nossa Opinião – Equívoco, uma ova!”, condenando o editorial “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, divulgado pelo jornal O Globo no último dia 31 de agosto. O texto do veículo da família Marinho afirmava que “as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio [ao golpe militar] foi um erro”.

O Clube Militar reagiu com firmeza:

“o apoio ao Movimento de 64 ocorreu antes, durante e por muito tempo depois da deposição de Jango; em segundo lugar, não se trata de posição equivocada “da redação”, mas de posicionamento político firmemente defendido por seu proprietário, diretor e redator chefe, Roberto Marinho, como comprovam as edições da época”.

E foi além:

“não foi, também, como fica insinuado, uma posição passageira revista depois de curto período de engano, pois dez anos depois da revolução, na edição de 31 de março de 1974, em editorial de primeira página, o jornal publica derramados elogios ao Movimento; e em 7 de abril de 1984*, vinte anos passados, Roberto Marinho publicou editorial assinado, na primeira página, intitulado “Julgamento da Revolução”, cuja leitura não deixa dúvida sobre a adesão e firme participação do jornal nos acontecimentos de 1964 e nas décadas seguintes.”

* Na verdade o editorial foi publicado em 7 de outubro de 1984, e não em 7 de abril como afirmou o Círculo Militar. Nota de Hum Historiador.

Abaixo, repercutimos a íntegra da nota do Clube Militar, disponível da página da Instituição:

Nossa Opinião – Equívoco, uma ova!

Logotipo do Clube Militar

Logotipo do Clube Militar

Numa mudança de posição drástica, o jornal O Globo acaba de denunciar seu apoio histórico à Revolução de 1964. Alega, como justificativa para renegar sua posição de décadas, que se tratou de um “equívoco redacional”.

Dos grandes jornais existentes à época, o único sobrevivente carioca como mídia diária impressa é O Globo. Depositário de artigos que relatam a história da cidade, do país e do mundo por mais de oitenta anos, acaba de lançar um portal na Internet com todas as edições digitalizadas, o que facilita sobremaneira a pesquisa de sua visão da história.

Pouca gente tinha paciência e tempo para buscar nas coleções das bibliotecas, muitas vezes incompletas, os artigos do passado. Agora, porém, com a facilidade de poder pesquisar em casa ou no trabalho, por meio do portal eletrônico, muitos puderam ler o que foi publicado na década de 60 pelo jornalão, e por certo ficaram surpresos pelo apoio irrestrito e entusiasta que o mesmo prestou à derrubada do governo Goulart e aos governos dos militares. Nisso, aliás, era acompanhado pela grande maioria da população e dos órgãos de imprensa.

Pressionado pelo poder político e econômico do governo, sob a constante ameaça do “controle social da mídia” – no jargão politicamente correto que encobre as diversas tentativas petistas de censurar a imprensa – o periódico sucumbiu e renega, hoje, o que defendeu ardorosamente ontem.

Alega, assim, que sua posição naqueles dias difíceis foi resultado de um equívoco da redação, talvez desorientada pela rapidez dos acontecimentos e pela variedade de versões que corriam sobre a situação do país.

Dupla mentira: em primeiro lugar, o apoio ao Movimento de 64 ocorreu antes, durante e por muito tempo depois da deposição de Jango; em segundo lugar, não se trata de posição equivocada “da redação”, mas de posicionamento político firmemente defendido por seu proprietário, diretor e redator chefe, Roberto Marinho, como comprovam as edições da época; não foi, também, como fica insinuado, uma posição passageira revista depois de curto período de engano, pois dez anos depois da revolução, na edição de 31 de março de 1974, em editorial de primeira página, o jornal publica derramados elogios ao Movimento; e em 7 de abril de 1984, vinte anos passados, Roberto Marinho publicou editorial assinado, na primeira página, intitulado “Julgamento da Revolução”, cuja leitura não deixa dúvida sobre a adesão e firme participação do jornal nos acontecimentos de 1964 e nas décadas seguintes.

Declarar agora que se tratou de um “equívoco da redação” é mentira deslavada.

Equívoco, uma ova! Trata-se de revisionismo, adesismo e covardia do último grande jornal carioca.

Nossos pêsames aos leitores.

Para melhor compreensão do assunto que está sendo abordado, abaixo disponibilizamos a Capa de O Globo com o editorial dando vivas ao movimento dos militares, e o texto na íntegra do editorial de 1964 (Fonte: Pragmatismo Político).

Editorial de O Globo, um dia após o Golpe Militar de 1964.

Editorial de O Globo de 02 de abril de 1964, um dia após o Golpe Militar.

“Ressurge a Democracia”

Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.

Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.

Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.

Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.

Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.

As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, “são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI.”

No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.

Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.

Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.

A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.

Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”

Por fim, o Hum Historiador também gostaria de adicionar ao post, o referido editorial de 07 de outubro de 1984, assinado pelo Sr. Roberto Marinho, e que foi referido pelo Clube Militar em sua resposta a O Globo para destacar a defesa que o proprietário das Organizações Globo fazia do “movimento revolucionário” mesmo 20 anos após o Golpe ter sido perpetrado.

Abaixo a transcrição na íntegra do editorial de Roberto Marinho, publicado na edição de 7 de outubro de 1984 de O Globo.

Detalhe da capa de O Globo, de 7 de Outubro de 1984. Fonte: O Globo.

Detalhe da capa de O Globo, de 7 de Outubro de 1984. Fonte: O Globo.

JULGAMENTO DA REVOLUÇÃO
Roberto Marinho

PARTICIPAMOS da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura que deverá consolidar-se com a posse do futuro presidente.

TEMOS permanecido fiéis aos seus objetivos, embora conflitando em várias oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o Marechal Costa e Silva, “por exigência inelutável do povo brasileiro”. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um “pronunciamento” ou “golpe” com o qual não estaríamos solidário.

O GLOBO, desse a Aliança Liberal, quando lutou contra os vícios políticos da Primeira República, vem pugnando por uma autêntica democracia e progresso econômico e social do País. Em 1964, teria de unir-se aos companheiros de jornadas anteriores, aos “tenentes e bacharéis” que se mantinham coerentes com as tradições e os ideais de 1930m aos expedicionários da FEB que ocupavam a Chefia das Forças Armadas, os quais se congregaram sob a pressão das grandes marchas populares, mudando o curso da nossa história.

ACOMPANHAMOS esse esforço de renovação em todas as suas fases. No período de ordenação da economia que se encerrou em 1967. Nos meses dramáticos de 1968 em que a intensificação dos atos de terrorismo provocou a implantação do AI-5. Na expansão econômica de 1969 a 1972, quando o produto nacional cresceu à taxa média anual de 10%. Assinale-se que, naquele primeiro decênio revolucionário, a inflação decrescera de 96% para 12,6% ao ano, elevando-se as exportações anuais de 1 bilhão e 300 mil dólares para mais de 12 bilhões de dólares. Na era do Impacto da crise mundial do petróleo desencadeada em 1973 e repetida em 1979, a que se seguiram aumentos vertiginosos nas taxas de juros, impondo-nos uma sucessão de sacrifícios para superar nossa dependência externa de energia a deterioração dos preços dos nossos produtos de exportação e a desorganização do sistema financeiro internacional. Essa conjugação de fatores que violentaram a administração de nossas contas externas obrigou-nos a desvalorizações cambiais de emergência que teriam fatalmente de resultar na exacerbação do processo inflacionário. Nas respostas que a sociedade e o governo brasileiros deram a esses desafios, conseguindo no segundo decênio revolucionário que agora se completa, apesar de todas as dificuldades, reduzir de 80% pra menos de 40% a dependência externa na importação de energia, elevando a produção de petróleo de 175 mil para 500 mil barris diários e a de álcool, de 680 milhões para 8 bilhões de litros; e simultaneamente aumentar a fabricação industrial em 85%, expandir a área plantada para produção de alimentos com 20 milhões de hectares a mais, criar 13 milhões de novos empregos, assegurar a presença de mais de 10 milhões de estudantes nos bancos escolares, ampliar a população economicamente ativa de 29 milhões e 500 mil para 45 milhões 797 mil, elevando as exportações anuais de 12 bilhões para 22 bilhões de dólares.

VOLVENDO os olhos para as realizações nacionais dos últimos vinte anos, há que se reconhecer um avanço impressionante: em 1964, éramos a quadragésima nona economia mundial, com uma população de 80 milhões de pessoas e uma renda per capita de 900 dólares; somos hoje a oitava, com uma população de 130 milhões de pessoas, e uma renda média per capita de 2.500 dólares. 

* * *

O PRESIDENTE Castello Branco, em seu discurso de posse, anunciou que a Revolução visava “a arrancada para o desenvolvimento econômico, pela elevação moral e política”. Dessa maneira, acima do progresso material, delineava-se o objetivo supremo da preservação dos princípios éticos e do restabelecimento do estado de direito. Em 24 de junho de 1978, o Presidente Geisel anunciou o fim dos atos de exceção, abrangendo o AI-5, o Decreto-Lei 477 e demais Atos Institucionais. Com isso, restauravam-se as garantias da magistratura e o instituto do habeas-corpus. Cessava a competência do Presidente para decretar o fechamento do Congresso e a intervenção nos Estados, fora das determinações constitucionais. Perdia o Executivo as atribuições de suspender direitos políticos, cassar mandatos, demitir funcionários civis e reformar militares. Extinguiam-se as atividades da G.G.I. e o confisco sumário de bens. Desapareciam da legislação o banimento, a pena de morte, a prisão perpétua e a inelegibilidade perene dos cassados. Findava-se o período discricionário, significando que os anseios de liberalização que Castello Branco e Costa e Silva manifestaram e diversas ocasiões e que Médici vislumbrou em seu primeiro pronunciamento finalmente se concretizavam.

ENQUANTO vários líderes oposicionistas pretenderam considerar aquelas medidas fundamentais como “meros paliativos”, o então Deputado Tancredo Neves, Líder do MDB na Câmara Federal, reconheceu que a determinação governamental “foi além do esperado”.

AO ASSUMIR o Governo, o Presidente Figueiredo jurou dar continuidade ao processo de democratização. A concessão da anistia ampla e irrestrita, as eleições diretas para os Governos dos Estados, a posse dos eleitos, a colaboração federal com os novos Governos oposicionistas na defesa dos interesses maiores da coletividade são demonstrações de que o Presidente não falou em vão.

NÃO HÁ memória de que haja ocorrido aqui, ou em qualquer outro país, que um regime de força, consolidado há mais de dez anos, se tenha utilizado do seu próprio arbítrio para se auto-limitar, extinguindo os poderes de exceção, anistiando adversários, ensejando novos quadros partidários, em plena liberdade de imprensa. É esse indubitavelmente, o maior feito da Revolução de 1964. 

* * *

NESTE momento em que se desenvolve o processo da sucessão presidencial, exige-se coerência de todos os que têm a missão de preservar as conquistas econômicas e políticas dos últimos decênios.

O CAMINHO para o aperfeiçoamento das Instituições é reto. Não admite desvios céticos, nem a afastamentos do povo.

ADOTAR outros rumos ou retroceder para atender a meras conveniências de facções ou assegurar a manutenção de privilégios seria trair a Revolução no seu ato final.

Abaixo, link para página do Globo contendo a íntegra do recente editorial considerando um equívoco o apoio editorial ao Golpe.

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Mino Carta revela que sua cabeça foi vendida à ditadura por 50 milhões

Mino Carta, fundador da Revista Veja, concedeu entrevista no ano passado a alunos da PUC-Campinas revelando como foi sua relação com o recém-falecido dono do Grupo Abril, Roberto Civita. Justamente em função da morte deste último na semana passada, o blog Viomundo divulgou a entrevista para relembrarmos um pouco de quem é Roberto Civita.

CARTA NÃO PERDOA CIVITA POR ENTREGA DE SUA CABEÇA À DITADURA

por Danilo Zanini – Publicado originalmente em Digitais PUC Campinas 29/06/2012

Em entrevista aos alunos da PUC-Campinas, o jornalista Mino Carta fundador das revistas VejaIstoÉCartaCapital e Quatro Rodas conta que os donos da editora Abril Victor Civita e seu filho Roberto Civita o “venderam” em troca de  um empréstimo de 50 milhões de dólares. No momento em que revive suas emoções, o Michelangelo das revistas perde o controle e afirma que duas vezes tentou bater no Roberto Civita. “Minha cabeça foi vendida por 50 milhões de dólares. Eu tentei duas vezes dar um murro na cara do Roberto Civita, e ele fugiu! Escreve isso, ele fugiu”, conta Carta

O episódio culminou na saída do jornalista da editora Abril. Mino Carta diz que foi ele que se demitiu, não foi demitido como contam os Civita. Carta relembra que foi Richard Civita, irmão de Roberto, que durante uma partida de tênis contaria para Carta sobre as dificuldades financeiras da editora Abril, o empréstimo de 50 milhões de dólares proposto pela Caixa Econômica Federal a mando dos líderes da Ditadura que só seria possível se os Civita aceitassem a troca: o dinheiro pela saída de Carta da Abril. Dá primeira vez que toca nesse assunto não estoura em sentimentos e até brinca: “Vocês viram como valho muito?”

A entrevista não foi apenas marcada por essa declaração, houve momentos de forte crítica as elites brasileiras e a sociedade. “Nós tivemos a pior elite do mundo. Os brasileiros são os herdeiros da casa grande, né. Eu acho que a tragédia brasileira são três séculos e meio de escravidão e uma elite cafajeste, vulgar, prepotente, arrogante, incapaz, incompetente, muito incompetente, muito ignorante. Nossa elite é uma tragédia”, conclui o jornalista.

O italiano, radicado no país desde os doze anos, analisa que o Brasil ainda não é uma nação por não ter uma identidade. Ele afirma que o povo brasileiro é infantil e estupidamente festeiro, colocando a culpa nas elites coloniais e da república velha.

“Mas o problema do Brasil é que sofreu algo monstruoso que foram os três séculos e meio de escravidão. É que essa elite é tão calhorda que ela permitiu o inchaço das cidades. Então, há uma péssima distribuição da população brasileira dentro do território brasileiro, tão ruim quanto à distribuição de renda. A nossa distribuição de renda nos coloca ao nível da Nigéria e de Serra Leoa”, contextualiza Carta.

O diretor de redação da CartaCapital ainda condena os escolhidos pela presidente Dilma Roussef para compor a Comissão da Verdade. Na opinião de Mino Carta, os integrantes deveriam ser pessoas que estiveram envolvidas, sentiram os problemas.

“E por que chama pilantras notórios? Nelson Jobim na comissão da verdade? Paulo Sérgio Pinheiro na comissão da verdade? José Carlos Dias na comissão da verdade? Isso é uma piada! Ou a Dona Dilma está confusa ou enganada, está sendo enganada ou está tudo errado”, defende o jornalista.

Mino Carta ainda critica as faculdades de jornalismo, afirma que os cursos de comunicação são corporativos e que foram criados pela ditadura. Apesar de analisar que não é mais possível acabar com os cursos, ele aconselha que o estudante faça uma graduação de História ou Ciências Sociais e apenas posteriormente fazer uma pós-graduação em Jornalismo. “Para a prática profissional o jornalista deve ter uma busca canina pela verdade factual, um espírito crítico, e o dever de fiscalizar o poder”

Apesar dos problemas com os Civita, o ítalo-brasileiro revela carinho com os veículos que criou. Ele afirma gostar da Veja que criou e da Revista Quatro Rodas. “A Quatro Rodas foi um sucesso de mercado realmente. Era um momento muito oportuno, porque estava nascendo a indústria automobilística brasileira”, diz Carta que observa que as revistas criadas foram uma aventuras complicadas por levar muito tempo para se afirmar, como no caso de Veja e da CartaCapital. Mas brinca que sempre teve que inventar seus empregos: “São revistas que eu inventei para poder garantir um salário”.

Abaixo, parte da entrevista em que Mino Carta se exalta ao contar sua relação com Roberto Civita.

http://soundcloud.com/danilofzanini/mino-carta-para-o-digitais-puc

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Comissão da Verdade: entidades denunciam golpe do reitor da USP

publicado originalmente no VIOMUNDO em 08.mai.2013

CANETAÇO DO REITOR IRRITA SERVIDORES E ESTUDANTES
por Luiz Carlos Azenha

Atual reitor da USP, João Grandino Rodas

Foi uma longa e árdua campanha (aqui, o blog), desde maio de 2012, das entidades que congregam os servidores e estudantes da Universidade de São Paulo pela instalação de uma Comissão da Verdade. A ideia era de que ela fosse formada por representantes de professores, funcionários e estudantes, além de membros do conselho universitário. Todos consideraram um avanço o fato de a reitoria ter aberto negociações para tratar do assunto.

No entanto, agora as entidades se dizem vítimas de um golpe do reitor João Grandino Rodas, que descartou as negociações em andamento e decidiu nomear ele mesmo a Comissão da Verdade, integrada por sete membros: Dalmo de Abreu Dallari, da Faculdade de Direito (FD), na qualidade de presidente; Erney Felicio Plessmann de Camargo, do Instituto de Ciências Biomédicas; Eunice Ribeiro Durham e Janice Theodoro da Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH); Maria Hermínia Brandão Tavares de Almeida, do Instituto de Relações Internacionais (IRI); Silvio Roberto de Azevedo Salinas, do Instituto de Física (IF); e Walter Colli, do Instituto de Química (IQ).

As entidades que se dizem traídas pelo reitor consideram que uma Comissão nomeada por ele não terá a autonomia e independência necessárias, contará com um prazo muito exíguo para a apuração — 12 meses — e terá um número muito pequeno de integrantes para aprofundar as investigações, já que os sete indicados cumprem várias outras funções profissionais.

Ou seja, acreditam que o objetivo do reitor foi limitar a apuração sobre os 47 assassinados ou desaparecidos pela ditadura militar que tinham relação com a USP, sobre os professores cassados e aposentados compulsoriamente, sobre os estudantes que não puderam concluir seus cursos e sobre as mudanças no projeto pedagógico impostas pela ditadura através de intervenções nos departamentos das unidades.

No post publicado por Azenha para o Viomundo é possível ouvir a denúncia de Renan Honório Quinalha, da Associação dos Pós-Graduandos, que havia sido indicado pelos estudantes de pós-graduação para compor a Comissão.

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