Arquivo do mês: abril 2013

Congregação da ECA-USP também se opõe ao PIMESP e carta aberta de Lilia Schwarcz e Maria Helena Machado sobre o projeto do PIMESP

Depois da congregação da Psicologia-USP posicionar-se contra a proposta do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP), nesta semana foi a vez da congregação da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) também se posicionar. Segundo texto publicado na página do Departamento de Comunicação e Arte:

A Congregação da ECA, reunida no dia 25 de abril deliberou contra a proposta do Governo do Estado de estabelecer o  Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior – PIMESP como maneira de acesso à universidade.

A congregação acolheu resultado de debate coordenado pelo Prof. Ricardo Alexino Ferreira, ocorrido na segunda-feira (22) para os membros da Congregação da ECA com os especialistas sobre Direitos Fundamentais, Etnia e Inclusão. O debate está  disponível no IPTV (http://iptv.usp.br/portal/home.jsp)

De acordo com o Prof. Alexino, pesquisa feita em diferentes publicações e sites sobre o que a sociedade civil tem pensado sobre o PIMESP evidencia a rejeição ao Programa como proposta de inclusão.

Apresentamos um CLIPPING contendo  textos, imagens e som sobre o tema. De acordo com o professor,  os artigos jornalísticos e acadêmicos são enfáticos na crítica à proposta. No clipping foi inserido também entrevista (em vídeo) com os três Reitores que falam e defendem o PIMESP.

Ainda sobre esse assunto, as professoras Lilia M. Schwarcz (Departamento de Antropologia) e Maria Helena P. T. Machado (Departamento de História) divulgaram uma carta aberta a respeito do PIMESP, dizendo que foi com preocupação que tomaram conhecimento do projeto de programa de inclusão do Governo do Estado. Para Schwarcz e Machado, “o primeiro estranhamento se justifica pelo fato das Congregações e Conselho Universitário de nossa universidade terem apenas começado a discutir o assunto estratégico das cotas sociais e étnico-raciais apenas nos últimos meses”, informam as professoras.

Em nossa faculdade, a FFLCH, por exemplo, na qual se encontram os principais estudiosos da USP a respeito do problema da inclusão universitária, a Comissão de Discussão de Cotas Raciais teve oportunidade de apresentar apenas uma primeira reflexão no mês de novembro e fomos já surpreendidos por um projeto que se afirma pronto, e frente ao qual somos instados a nos posicionar no prazo máximo de 30 dias

Além disso, Schwarcz e Machado chamam atenção para o fato de o projeto não trazer autoria definida o que, segundo as professoras,  “é estranho em se tratando de uma proposta de tal envergadura, que deverá ser discutida pelos principais produtores de conhecimento, a respeito do tema da desigualdade social e racial existente em nosso estado”.

Quanto ao conteúdo do projeto analisado pelas professoras da FFLCH, destacam-se quatro problemas:

  1. O termo “Community College”, que aparece reiteradamente ao longo do PIMESP como modelo para o Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), está sendo utilizado de maneira bastante dúbia. Não parece acertado que a USP, centro de excelência de pesquisa internacional de nosso país, se aproprie de maneira inadequada de um modelo de ensino superior que em nada se coaduna com as reais necessidades de inclusão do contexto paulista, nem reflete a estrutura do ICES. Os “Community Colleges” são faculdades de cursos mais curtos, normalmente de dois anos, voltados para a capacitação profissional rápida de seus alunos, que saem formados e diplomados em carreiras tais como contador, secretária executiva, assistente jurídico (paralegal) etc… Ao contrário da formação técnica do “Community College”, o ICES do PIMESP se propõe a oferecer cursos gerais, voltados para a complementação da escolarização média e para a “formação sociocultural superior para exercício de cidadania na sociedade moderna”. Ora, se queremos de fato enfrentar as desigualdades devemos começar a tratar o jovem de baixa renda e os PPIs (Pretos, Pardos e Indígenas), provenientes da escola pública, como cidadãos que merecem e exigem, não uma extensão do ensino médio num formato paternalista, que têm como objetivo formar cidadãos. Este aluno não merece ser tratado como um indivíduo que precisa ser diferenciado para só depois poder frequentar nossos bancos universitários, em cursos generalistas, que apenas os colocam em novos espaços de exclusão. O que este

    aluno almeja é poder participar da vida universitária real de nossos campi, de

    maneira plena e cidadã. Imaginar que o aluno de escola pública e de baixa renda e os PPIs precisam de um curso intermediário como esse significa não analisar o grau de inserção dos alunos que vem entrando em outras escolas pelo sistema de cotas e que não precisaram desse tratamento desigualado. Tal postura distancia o nosso ensino público da direção tão almejada por todos nós da diminuição das desigualdades sócio-raciais.

  2. Em segundo lugar, é importante sublinhar que alunos da escola pública e os PPIs fariam este curso, em grande parte, à distância. Assim, ficariam eles, por pelo menos mais dois anos, excluídos fisicamente da frequência e da utilização de nossas instalações. Não é difícil imaginar que teríamos uma USP predominantemente branca e notavelmente elitista contraposta a uma USP virtual, onde alunos de escola pública, de baixa renda e PPIs, ficariam em espaços separados.
  3. O sistema UNIVESP de ensino à distância que surge no PIMESP como ferramenta essencial para a realização do projeto é um sistema que já foi duramente criticado pela comunidade universitária e que andava, nos últimos anos, não sem razão, escanteado. O ensino à distância pode ser eficaz e estratégico para atingir metas educacionais quando aplicado a populações de difícil acesso geográfico ou físico (população hospitalar e carcerária, por exemplo). Nada justifica a implantação, porém, desse sistema para tratar com jovens alunos, que são justamente carentes das benesses que só a convivência universitária pode trazer. Que sentido teria oferecermos um curso presencial de excelência em nossos campi quando mantemos jovens também universitários de baixa renda e PPIs segregados em bairros periféricos da cidade de São Paulo e no interior, acessando a universidade apenas ou majoritariamente pela internet?
  4. Finalmente, após um ou dois anos, o PIMESP considera a possibilidade do aluno “incluído” ingressar na universidade real, “respeitando o mérito acadêmico e de acordo com as ofertas apresentadas”. O PIMESP, portanto, não oferece nenhuma garantia de acesso desse aluno ao sistema universitário integral.

Schwarcz e Machado concluem a carta afirmando que frente aos problemas apontado, elas consideram premente a dilatação desse prazo para que ocorra uma efetiva abertura de um amplo debate público na USP – e nas universidades públicas paulistas em geral. Isso para que não sejamos alijados de um amplo e necessário processo de democratização e inclusão no ensino superior, meta que hoje o Brasil enfrenta como seu grande e mais profundo desafio.

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“Menos democracia é melhor para organizar uma Copa”

Para secretário-geral da FIFA, o francês Jérôme Valcke, a democracia brasileira pode ser um problema para a organização da Copa de 2014 e prevê menos dificuldade para organizar o torneio de 2018, a ser realizado na Rússia.

“Eu vou dizer uma coisa que é maluca, mas menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa. Quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, como talvez Vladimir Putin na Rússia em 2018, é mais fácil para nós, organizadores, do que em um país como a Alemanha, onde você tem que negociar em várias esferas. A principal dificuldade que temos é quando entramos em um país com estrutura política dividida, como é no Brasil, com três níveis, federal, estadual e municipal – disse o francês. (…) Há pessoas diferentes, movimentos diferentes, interesses diferentes e é um pouco difícil organizar a Copa do Mundo nestas condições.”

Foto: Agência EFE

Notabilizado por haver dito que o Brasil precisava receber um chute na bunda, por conta dos atrasos nas obras dos estádios, Valcke e a FIFA penaram para conseguirem aprovar a venda de bebidas alcoólicas nos estádios brasileiros durante o torneio de futebol.

A notícia ganha ainda mais peso uma vez que nesta quarta-feira, Joseph Blatter, o presidente da FIFA, também comentou sobre democracia e lembrou a Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina durante período de ditadura no país. Segundo reportagem publicada no portal do Globo Esporte, Blatter afirmou ter ficado feliz com a vitória da seleção da casa.

É um tipo de reconciliação do público, do povo da Argentina, com o sistema político, militar na época. Eu não sei o que poderia ter acontecido se eles tivessem perdido a final para a Holanda. O jogo e o mundo mudaram, este era o meu sentimento na época.

Como desgraça pouca é bobagem, o suíço descreveu a Fifa como sendo uma instituição conservadora, liberal e socialista, tudo ao mesmo tempo.

Joseph Blatter, presidente da FIFA.

“Somos conservadores, como os católicos, quando se trata das regras do jogo e arbitragem. E somos liberais quando vamos ao mercado”, disse ele, referindo-se às relações comerciais da entidade que controla o futebol mundial.

Somos Marx e Engels quando se trata da distribuição do dinheiro, 70 por cento de toda a renda é distribuída para as associações nacionais para programas de desenvolvimento.”

Durma-se com um barulho desses!

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Para presidente da Nestlé, a água não é um direito e deve ser privatizada

Texto traduzido livremente de post publicado em Abadia Digital, aos 22 de abril de 2013.

Presidente da Nestlé: “A água não é um direito, deveria ter um valor de mercado e ser privatizada”.

Peter Brabeck-Letmathe, presidente da Nestlé

Peter Brabeck-Letmathe, um empresário austríaco que desde 2005 exerce o cargo de presidente do grupo Nestlé, considera que o abastecimento de água deveria ser privatizado para que, como sociedade, tomássemos consciência de sua importância e acabássemos com subcotação existente na atualidade.

Essas são apenas algumas de suas palavras que causam certo estupor, ainda mais se levarmos em conta que a Nestlé é líder mundial na venda de água engarrafada. Setor este que dá 8% das vendas totais da empresa e que, em 2011, atingiu os 58 bilhões de libras esterlinas (segundo o The Guardian).

Mas Brabeck deixou essas críticas de lado para destacar que o fato de muita gente ter a percepção de que a água é gratuita faz com que, em muitas ocasiões, estas mesmas pessoas não deem o valor que a água tem e a desperdicem. Com base nisso é que sustenta que os governos devem garantir que cada pessoa deveria dispor de 5 litros de água diária para beber e outros 25 litros para sua higiene pessoal mínima,  o restante do consumo deveria ser gerido seguindo critérios empresariais.

Abaixo seguem partes das declarações de Brabeck, publicadas em reportagem do jornal britânico The Guardian:

“The fact is they [activists] are talking first of all only about the smallest part of the water usage, I am the first one to say water is a human right. This human right is the five litres of water we need for our daily hydration and the 25 litres we need for minimum hygiene.

“This amount of water is the primary responsibility of every government to make available to every citizen of this world, but this amount of water accounts for 1.5% of the total water which is for all human usage.

“Where I have an issue is that the 98.5% of the water we are using, which is for everything else, is not a human right and because we treat it as one, we are using it in an irresponsible manner, although it is the most precious resource we have. Why? Because we don’t want to give any value to this water. And we know very well that if something doesn’t have a value, it’s human behaviour that we use it in an irresponsible manner.”

Apesar das críticas e oposição que seus postulados provocam, há tempos Brabeck os defende sem constrangimento, tal como o faz em entrevistas como esta que aparece no vídeo abaixo, na qual qualifica de extremistas as ONGs que sustentam que a água deveria ser um direito fundamental (especialmente a partir da marca de 2:00 minutos).

Para Brabeck, a água deveria ser tratada como qualquer outro bem alimentício e ter um valor de mercado a ser estabelecido pela lei da oferta e da procura. Só desta maneira, aponta, empreenderíamos ações para limitar o consumo excessivo que se dá nestes momentos.

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Pesquisadora da Unicamp traça o “mapa neonazista” no Brasil

Trote racista por alunos da UFMG que foram flagrados em fotos que circularam pelas redes sociais em poses de práticas com simbologia nazista.

Publicada originalmente no portal Pragmatismo Político no último 19/abril, notícia destaca o crescimento dos grupos neonazistas no Brasil, em especial na região Sudeste, onde se multiplicam em São Paulo e Minas Gerais, e também no Centro-Oeste, no Distrito Federal.

Segundo a reportagem:

Mapa da intolerância: região sul concentra maioria dos grupos neonazistas no Brasil, mas crescem em São Paulo, Distrito Federal e Minas Gerais

O crescimento do número de simpatizantes neonazistas tem se tornado uma tendência internacional. É o que aponta um monitoramento da internet realizado pela antropóloga e pesquisadora da Unicamp, Adriana Dias. De 2002 a 2009, o número de sites que veiculam informações de interesse neonazistas subiu 170%, saltando de 7.600 para 20.502. No mesmo período, os comentários em fóruns sobre o tema cresceram 42.585%.

Nas redes sociais, os dados são igualmente alarmantes. Existem comunidades neonazistas, antissemitas e negacionistas em 91% das 250 redes sociais analisadas pela antropóloga. E nos últimos 9 anos, o número de blogs sobre o assunto cresceu mais de 550%.

Adriana Dias trabalha há 11 anos mapeando grupos neonazistas que atuam na internet e também no mundo não virtual. Devido ao conhecimento construído, a pesquisadora já prestou consultoria para a Polícia Federal e para serviços de inteligência de Portugal, Espanha e outros países.

Veja as estatísticas do crescimento de sites com assuntos neonazistas:

mapa neonazista brasil

(Gráfico – EBC)

Brasil

Segunda Adriana, os grupos neonazistas eram predominantes no sul do país, mas nos últimos anos têm crescido vertiginosamente no Distrito Federal, em Minas Gerais e em São Paulo. Ela vem mapeando o número de internautas que baixam arquivos de sites neonazistas e considera simpatizantes aqueles que já fizeram mais de 100 downloads. Por esse critério, seus dados de 2013 apontam que há aproximadamente 105 mil neonazistas na região Sul.

Estados com maior número de internautas que baixaram mais de 100 arquivos de sites neonazistas:

  • Minas Gerais: Simpatizantes neonazistas: 6.000
  • Goiás: Simpatizantes neonazistas: 8.000
  • Paraná: Simpatizantes neonazistas: 18.000
  • São Paulo: Simpatizantes neonazistas: 29.000
  • Rio Grande do Sul: Simpatizantes neonazistas: 42.000
  • Santa Catarina: Simpatizantes neonazistas: 45.000

No caso de Minas Gerais, os movimentos parecem ter ganhado fôlego em 2009, como forma de responder ao assassinato de Bernardo Dayrell Pedroso. Fundador da revista digital “O Martelo”, ele era uma referência do movimento neonazista na cidade. Acabou morto em um evento no município de Quatro Barras (PR), por uma outra gangue de skinheads neonazistas que via em Bernardo uma barreira para sua ascenção.

Organização

Não é possível descrever um único percurso para ingresso no movimento neonazista. Mas há uma trajetória mais comum: “Geralmente, eles atendem ao proselitismo na juventude. O jovem em busca de uma causa acaba recebido pelo grupo, que o convencem de que o negro ou o judeu tomou seu espaço no mercado de trabalho, na universidade, etc”, explica Adriana Dias.

Os líderes dos grupos geralmente não participam das ações violentas. “São pessoas que já possuem uma condição financeira melhor e geralmente possuem curso superior. Eles conduzem o movimento e leem muito material antissemita. Possuem um alto grau de instrução e buscam se resguardar de eventuais ações judiciais”, descreve a pesquisadora.

Léo Rodrigues, EBC

Do mesmo portal, leia também:

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Jornal O Globo manipula dados para fazer cobertura contra Chávez-Maduro, na Venezuela

Matéria publicada no Portal Vermelho dá espaço para a demonstração de como os jornais da Rede Globo, como O GLOBO, manipula os dados para fazer uma cobertura contrária ao governo de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela.

PROFESSOR DE ECONOMIA DEMONSTRA MANIPULAÇÃO DE O GLOBO SOBRE VENEZUELA
por DEMARCHI para O VERMELHO

Diante da manipulação da informação nos jornais da Rede Globo, como O Globo, sobre a situação econômica da Venezuela, depois da confirmação de que o candidato Nicolás Maduro,  Partido Socialista Unido da Venezuela (Psuv) venceu a eleição no domingo (14), o professor de economia Victor Leonardo enviou carta ao impresso manifestando sua indignação. No domingo, uma onda de violência foi iniciada pela oposição.

Globo ataca governo venezuelano com dados manipulados

Prezada Senhora Sandra Cohen

Editora de Mundo de O Globo

Já é sabido que o jornal O Globo não nutre qualquer simpatia pelo governo do presidente venezuelano Hugo Chávez, e tem se esforçado a formar entre os seus leitores opinião contrária ao chavismo – por exemplo, entrevistando o candidato Henrique Caprilles sem oferecer ao leitor entrevista com o candidato Nicolás Maduro em igual espaço. Isto por si já é algo temerário, mas como eu não tenho a capacidade de modificar a linha editorial do jornal, resigno-me. O problema é que o jornal tem utilizado sistematicamente dados um tanto quanto estranhos na sua tarefa de formar a opinião do leitor. Sou professor de Economia da Universidade Federal Fluminense e, embora não seja “especialista” em América Latina, conheço alguns dados sobre a Venezuela e não poderia deixar de alertá-la quanto aos erros que têm sido sistematicamente cometidos.

Como parte do esforço de mostrar que o governo Chávez deixou a economia “em frangalhos”, o jornalista José Casado, em matéria publicada em 15/04/2013 (“Economia em frangalhos no caminho do vencedor”) informa que o déficit público em 2012 foi de 15% do PIB. Infelizmente, as fontes desta informação não aparecem na reportagem (apenas uma genérica referência a “dados oficiais e entidades privadas”!!!), uma falha primária que nem meus alunos não cometem mais em seus trabalhos. Segundo estimativas apresentadas para o ano de 2012 no “Balanço Preliminar das Economias da América Latina e Caribe”, da conceituada Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), o déficit foi de 3,8% do PIB, ligeiramente menor do que no ano anterior, mas muito inferior ao apresentado pelo jornal. Caso o jornalista queira construir a série histórica para os resultados fiscais para a Venezuela (e qualquer outro país do continente), pode consultar também as várias edições do “Estudio Económico” também da Cepal. Para poupar o seu trabalho: a Venezuela registrou superávit primário de 2002 a 2008: 1% do PIB; 2003: 0,3; 2004: 1,8; 2005: 4,6; 2006: 2,1; 2007: 4,5; 2008: 0,1; e déficit nos anos seguintes: 2009: -3,7% do PIB; 2010: -2,1; 2011: -1,8; 2012: -1,3. O déficit é decrescente, mas bem distante dos 15% do PIB publicados na matéria. Afirmar que o déficit público na Venezuela corresponde a 15% do PIB tem sido um erro recorrente, e também aparece na matéria intitulada “Onipresente Chávez”, publicada na véspera, também no caderno “Mundo” do jornal O Globo em 13/04/2013. A este propósito, tenho uma péssima informação a lhe dar: diante de um quadro fiscal tão saudével, o presidente Nicolás Maduro não precisará realizar ajuste fiscal recessivo, e terá condições de seguir com as políticas de seu antecessor.

A matéria do dia 15/04/2013 possui ainda outros erros graves. O primeiro é afirmar que existe hiperinflação na Venezuela, e crescente. Não há como negar que a inflação é um problema grave na Venezuela, mas O Globo não tem dispensado o tratamento adequado para informar os seus leitores. A inflação na Venezuela tem desacelerado: foi de 20% em 2012, contra 32% em 2008 (novamente utilizo os dados da Cepal). Tudo indica que o jornalista não possui conhecimento em Economia, pois a Venezuela não se enquadra em qualquer definição existente para hiperinflação – a mais comumente utilizada é de 50% ao mês; outras, mais qualitativas, definem hiperinflação a partir da perda da função de meio de troca da moeda doméstica, situações bem distantes do que ocorre na Venezuela.

Outro equívoco é afirmar que “não há divisas suficientes para pagar pelas importações”. A Venezuela acumula superávits comerciais e em transações correntes (recomendo que procure os dados – os encontrará facilmente na página da Cepal). Esta condição é algo estrutural, e a Venezuela é a única economia latino-americana que pode dar-se ao luxo de não precisar atrair fluxos de capitais na conta financeira para financiar suas importações de bens e serviços. Isto decorre exatamente das exportações de petróleo.

O problema, Senhora Sandra Cohen, é que os erros cometidos ao expor a situação econômica venezuelana não se limitam à edição do dia 15/04, mas tem sido sistemáticos e corriqueiros. Como parte do esforço de mostrar que o governo Chávez deixou uma “herança pesada”, a jornalista Janaína Figueiredo divulgou no dia 14/04 (“Chavismo joga seu futuro”) que em 1998 a indústria respondia por 63% da economia venezuelana, e caiu para 35% em 2012. Infelizmente, a reportagem comete o erro primário que o seu colega José Casado cometeu: não cita suas fontes. Em primeiro lugar, a informação dada pelo jornal é que a Venezuela era a economia mais industrializada do globo terrestre no ano de 1998. Veja bem: uma economia em que a indústria representa 63% do PIB é super-hiper-mega-industrializada, algo que sequer nos países desenvolvidos foi observado naquele ano, nem em qualquer outro. E a magnitude da queda seria digna de algo realmente patológico. Como trata-se de um caso de desindustrialização bastante severo, procurei satisfazer a minha curiosidade, fazendo algo bastante corriqueiro e básico em minha profissão (e, ao que tudo indica, o jornalista não fez): consultei os dados. Na página do Banco Central da Venezuela encontrei a desagregação do PIB por setor econômico e lá os dados eram diferentes: a indústria respondia por 17,3% do PIB em 1998, e passa a representar 14% em 2012. Uma queda importante, sem dúvida, mas algo muito distante da queda relatada por sua jornalista. Caso a senhora, por qualquer juízo de valor que faça dos dados oficiais venezuelanos, quiser procurar em outras fontes, sugiro novamente a Cepal, (Comissão Econômica para América Latina e Caribe). As proporções mudam um pouco (21% em 1998 contra 18% em 2007 – os dados por lá estão desatualizados), mas sem adquirir a mesma conotação trágica que a reportagem exibe. Em suma: os dados publicados na matéria estão totalmente errados.

O erro cometido é gravíssimo, mas não é o único. A reportagem ainda sugere que a Venezuela é fortemente dependente do petróleo, respondendo por 45% do PIB. Novamente, a jornalista não cita suas fontes. Na que eu consultei (o Banco Central da Venezuela), o setor petróleo respondia por 19% do PIB em 1998, contra pouco mais de 10% em 2012. Como a Senhora pode perceber, a economia venezuelana se diversificou. Não foi rumo à indústria, pois, como eu mesmo lhe mostrei no parágrafo acima, a participação desta última no PIB caiu. Mas, insisto, a dependência do petróleo DIMINUIU, e não aumentou como o jornal tem sistematicamente afirmado.

A edição de 13/04/2012, traz outros erros graves. Eu já falei anteriormente sobre os dados sobre déficit público apresentados pela matéria assinada pelo jornalista José Casado (“Onipresente Chávez”). A mesma matéria afirma que a participação do Estado venezuelano representa 44,3% do PIB. O conceito de “participação do Estado na economia” é algo bastante vago, e por isso era importante o jornalista utilizar alguma definição e citar a fonte – mas isto é algo, ao que tudo indica, O Globo não faz. Algumas aproximações para “participação do Estado na economia” podem ser utilizadas, e as mais usuais apresentam números distantes daqueles exibidos pelo jornalista: os gastos do governo equivaliam a 17,4% do PIB em 2010 (contra 13,5% em 1997) e a carga tributária em 2011 era de 23% (contra 21% em 2000), nada absurdamente fora dos padrões latino-americanos.

Enfim, no afã de mostrar uma economia em frangalhos, O Globo exibe números que simplesmente não correspondem à realidade da economia venezuelana. Veja bem: eu nem estou falando de interpretação dos dados, mas sim de dados equivocados!

Seria importante oferecer ao leitor de O Globo uma correção dessas informações – mas não na forma de errata ao pé de página, mas em uma reportagem que apresente ao leitor a economia venezuelana como ela é, e não o caos que O Globo gostaria que fosse.

E, por favor, nos próximos infográficos, exibam suas fontes.

Atenciosamente,

Victor Leonardo de Araujo

Fonte: Rede Democratica

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O Guia do Politicamente Incorreto da América Latina na visão de Maria Lígia Coelho Prado

Recentemente, durante uma festa de aniversário da filha de uma amiga, um colega sentou-se à mesa em que eu estava e, ao lembrar-se de que eu havia concluído minha formação em História, quis puxar assunto comigo, propondo discutirmos sobre alguns aspectos da História da América Latina. Usando como base de sua argumentação a recente leitura que havia feito do Guia Politicamente Incorreto da América Latina, este colega questionava a importância histórica concedida a personagens como Simón Bolívar, Pancho Villa e Che Guevara, por exemplo, especialmente por “essa gente da esquerda”, como ele preferia dizer.

Sabendo se tratar de uma prática recorrente dentre as pessoas que pouco se dedicam a ler ou estudar História a partir de uma bibliografia mais séria sobre o assunto, acho bastante relevante repercutir uma resenha preparada pela professora de História de América Latina da USP, Maria Lígia Coelho Prado, que foi publicada no jornal  O Estado de S. Paulo em setembro de 2011. Assim fica claro o meu posicionamento em relação ao livro de Narloch e Teixeira, bem como em relação àqueles que utilizam tal obra como fonte para reproduzir as “simplificações oportunas e interpretações discutíveis” que aparecem postuladas neste livro.

Resenha do Guia Politicamente Incorreto da América Latina
por Maria Lígia Coelho Prado
Publicada originalmente em O Estado de S. Paulo – 25/09/2011

Guia Politicamente Incorreto

Lombroso Oculto: livro sobre “falsos heróis latino-americanos” usa simplificações oportunas, omissões e interpretações discutíveis, avalia professora.

O principal objetivo desse Guia Politicamente Incorreto da América Latina, nas palavras dos autores, é derrubar do pedestal o que chamam de “falsos heróis latino-americanos”. São “falsos” porque deles se construíram injustas imagens laudatórias. O livro quer mostrar a “outra” face desses homens, indicando seus equívocos, fraquezas e incapacidades. Cada capítulo está dedicado a um dos personagens que será objeto de críticas, de Simón Bolívar a Che Guevara.

Sem dúvida, a decisão dos autores de centrar o texto nas figuras dos “heróis” ou dos assim denominados “grandes homens” é bastante decepcionante. A desmistificação de heróis – “falsos” ou não, latino-americanos ou europeus – foi tarefa já exaustivamente cumprida pelos historiadores. Para que o passado histórico seja compreendido, é indispensável que se faça uma cuidadosa análise dos pensamentos e ações de homens e mulheres envolvidos na complexa trama de questões sociais, políticas, culturais, religiosas e econômicas.

Para construir seus argumentos e ordenar sua narrativa, Leandro Narloch e Duda Teixeira se apoiam em muitas citações retiradas da bibliografia e indicam suas fontes em notas de rodapé, conferindo ao livro um pretenso ar de respeitabilidade acadêmica.

Todos os capítulos trazem afirmações polêmicas, simplificações oportunas e interpretações discutíveis que mereceriam ser esquadrinhadas. Repetem a equivocada estratégia de pinçar frases a esmo, retirando-as do contexto histórico, atribuindo-lhes valores positivos ou negativos sem as devidas explicações e restringindo, portanto, sua compreensão. Diante de tantas possibilidades para o exercício da crítica, analisamos dois procedimentos utilizados pelos autores para sustentar seus pontos de vista.

O primeiro deles é o de se apropriar de uma fonte bibliográfica contestada e corroída por suspeitas e apresentá-la ao leitor brasileiro como fidedigna e isenta. O capítulo sobre Salvador Allende, que é particularmente controverso e recheado de afirmações refutáveis, exemplifica tal utilização imprópria. Narloch e Teixeira, no item 6 do capítulo, retiram informações do livro do chileno Víctor Farías, Salvador Allende, Anti-semitismo e Eutanásia, para acusar o falecido presidente de racista e antissemita e para associá-lo a certas práticas nazistas. Essas rotulações já foram fortemente denunciadas e refutadas no Chile, inclusive com a publicação de documentos que demonstram os equívocos de todas as acusações.

Para mais clara compreensão do manuseio das fontes pelos autores, vamos nos ater à questão do racismo e antissemitismo. Sobre esse tema, Narloch e Teixeira reproduzem trechos retirados do livro de Farías, que supostamente teriam sido transcritos da tese Higiene Mental e Delinquência, que Allende escreveu para obter o título de médico em 1933. As frases atribuídas a Allende estão carregadas dos piores preconceitos sobre judeus, ciganos, árabes, italianos, homossexuais e alcoólatras. Entretanto, a Fundação Presidente Allende, da Espanha, para refutar as diatribes de Farías, publicou a tese original de Allende, que também está disponível na internet. O que se constata é que Allende estava, no trecho mencionado, reproduzindo frases do médico e criminologista italiano Cesare Lombroso – ele afirma isso literalmente – numa discussão sobre suas teorias, como ainda era usual no começo dos anos 30. A conclusão de Allende sobre as possíveis relações, defendidas por Lombroso, entre origem étnica e delito criminoso, é a de que não havia dados precisos para demonstrar tal influência “no mundo civilizado” (p. 115 da tese). Frase esta que não aparece na transcrição de Farías e do Guia. Como se sabe, o bom historiador e o bom jornalista devem checar suas fontes, estudá-las, compará-las, garantir sua credibilidade e depois transcrevê-las com correta isenção.

O segundo procedimento refere-se ao mecanismo de utilização de uma fonte bibliográfica de prestígio para referendar ou legitimar conclusões bastante diferentes daquelas defendidas pelos autores do Guia. O capítulo sobre Pancho Villa, líder da revolução mexicana, é, nesse sentido, exemplar. A intenção explícita de Narloch e Teixeira é demonstrar que Pancho Villa não era antiamericano e não foi um Robin Hood latino-americano (p. 239). Para alcançar seu objetivo, os autores fazem referências a trabalhos de historiadores de onde retiram informações pontuais e dados específicos. Entre eles, um se sobressai, pois é citado em 27 das 47 notas de rodapé: Friedrich Katz, historiador da revolução mexicana, homem de convicções esquerdistas e autor de uma monumental biografia de Pancho Villa. Nela, Katz salienta o lugar de Villa no movimento revolucionário e procura fugir das lendas e da construção do mito. A trajetória pessoal e política de Villa é analisada integrada ao contexto social do México. Assim, existe um fosso entre a abordagem e conclusões de Katz e aquelas encontradas no Guia. A voz de autoridade de Katz é utilizada apenas para conferir credibilidade aos argumentos do Guia.

Para terminar, uma observação de caráter geral. Os autores apresentam no Guia uma visão desdenhosa sobre a história da América Latina. Só se entende essa exacerbada desqualificação se ela for pensada como a outra face do real desconhecimento dos autores sobre o assunto.

* MARIA LIGIA COELHO PRADO É PROFESSORA DE HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA NA USP.

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Congregação do Instituto de Psicologia da USP é contra o PIMESP

Instituto de Psicologia da USP (IP) divulga moção de sua congregação sobre o PIMESP, manifestando-se contra o projeto de inclusão proposto pelo Governo do Estado.

Abaixo segue íntegra da moção divulgada aos membros da Universidade de São Paulo:

Moção da Congregação do Instituto de Psicologia da USP sobre o PIMESP

IPUSPA Congregação do Instituto de Psicologia da USP instituiu, em outubro de 2012, a “Comissão Assessora da Congregação para uma Política de Inclusão na USP” com o objetivo de conduzir o processo de discussão com a sua comunidade de professores, alunos e funcionários sobre as políticas de inclusão por cotas nesta Universidade. Pressionada pela notícia veiculada, mais rapidamente pelos jornais do que pelas vias oficiais, do conteúdo do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público de São Paulo (PIMESP), decidiu manifestar-se.

O PIMESP, concebido sem a participação da comunidade das Universidades Estaduais Paulistas, foi produzido pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) com a participação das Secretarias Estaduais de São Paulo, Universidade Virtual do Estado de São Paulo, UNIVESP, entre outros órgãos do governo estadual. Os dirigentes das Unidades da USP foram comunicados sobre o PIMESP em ofício de 28 de janeiro de 2013 de que teriam 60 dias para se manifestar.

Em 18 de março, a Congregação do IP/USP manifestou-se favoravelmente à adoção de cotas nas universidades estaduais paulistas e contrária à implantação do PIMESP. Propôs um prazo de 90 dias para que a comunidade da USP seja incluída no debate, por meio de seus representantes, ouvido seu corpo de pesquisadores e especialistas, e discuta as várias possibilidades para um projeto de cotas que finalmente inclua os egressos das escolas publicas e os segmentos sub-representados no corpo discente de estudantes pretos, pardos e indígenas.

Recusamos a aprovação do PIMESP por diversas razões que foram apontadas no debate da proposta. O texto não faz uma avaliação dos dez anos de experiências brasileiras de implementação de cotas nas universidades federais. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) publicados pelo jornal O Estado de São Paulo (18/03/2013), “se a reserva de vagas para cotistas nas instituições federais de ensino já fosse de 50% (meta para 2016), a nota de corte desses estudantes teria, na média, uma queda inferior a 5%. Na concorrência ampla, em que disputam os alunos de escolas particulares, o desempenho mínimo para ingressar nas instituições teria um salto de 1%”. Não faz sentido, portanto, o Programa se autonomear como de “Inclusão com Mérito”, deixando subentendido que outros programas de inclusão não contemplam o mérito acadêmico do ingressante.

O projeto deixa de valorizar programas de inclusão já existentes na USP, tais como a Tutoria Cientifico-Acadêmica, a Pré-Iniciação Cientifica, o Programa Embaixadores da USP, que poderiam compor, com outras iniciativas, um Programa de Ações Afirmativas na USP. O PIMESP não consolida tampouco amplia ações afirmativas pois, como apontado em documento da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD), trata-se de “forma de discriminação negativa”, já que, aos alunos das escolas públicas, negros e indígenas, será exigido que realizem, “diversamente dos demais, curso antecedente ao ingresso” aumentando seu tempo de espera para a plena convivência acadêmica e titulação o que, ainda segundo a AJD, “significa tratá-los de forma pejorativa e aumentar o nível de exclusão a que já se encontram previamente submetidos”.

Do ponto de vista acadêmico, o projeto é ambíguo e leva à confusão com relação à sua finalidade: trata-se de um curso pré-universitário, intermediário entre ensino médio e universitário (“college”), de um curso pós-médio (Darcy Ribeiro), ou mesmo de um curso de escola de ensino médio ministrado pela universidade?

Portanto, pelas razões acima expostas, a Congregação do Instituto de Psicologia manifesta-se contra o PIMESP e a favor de uma discussão mais representativa que produza propostas que versem sobre Ações Afirmativas na Universidade de São Paulo.

Congregação do Instituto de Psicologia – USP

5 de abril de 2013

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Por que as cotas raciais deram certo no Brasil

Reportagem assinada por Amauri Segalla, Mariana Brugger e Rodrigo Cardoso apresenta os bons resultados da políticas de cotas raciais no Brasil. Dedicada aos senhores Demetrio Magnoli e Ali Kamel. Obrigado Amauri, Mariana e Rodrigo. Veja a reportagem na íntegra com fotos e depoimentos.

Reportagem publicada na revista ISTO É
N° Edição:  2264 |  05.Abr.13 – 21:00 |  Atualizado em 09.Abr.13 – 00:01

Política de inclusão de negros nas universidades melhorou a qualidade do ensino e reduziu os índices de evasão. Acima de tudo, está transformando a vida de milhares de brasileiros

Amauri Segalla, Mariana Brugger e Rodrigo Cardoso

Antes de pedalar pelas ruas de Amsterdã com uma bicicleta vermelha e um sorriso largo, como fez na tarde da quarta-feira da semana passada, Ícaro Luís Vidal dos Santos, 25 anos, percorreu um caminho duro, mas que poderia ter sido bem mais tortuoso. Talvez instransponível. Ele foi o primeiro cotista negro a entrar na Faculdade de Medicina da Federal da Bahia. Formando da turma de 2011, Ícaro trabalha como clínico geral em um hospital de Salvador. A foto ao lado celebra a alegria de alguém que tinha tudo para não estar ali. É que, no Brasil, a cor da pele determina as chances de uma pessoa chegar à universidade. Para pobres e alunos de escolas públicas, também são poucas as rotas disponíveis. Como tantos outros, Ícaro reúne várias barreiras numa só pessoa: sempre frequentou colégio gratuito, sempre foi pobre – e é negro. Mesmo assim, sua história é diferente. Contra todas as probabilidades, tornou-se doutor diplomado, com dinheiro suficiente para cruzar o Atlântico e saborear a primeira viagem internacional. Sem a política de cotas, ele teria passado os últimos dias pedalando nas pontes erguidas sobre os canais de Amsterdã? Impossível dizer com certeza, mas a resposta lógica seria “não”.

Desde que o primeiro aluno negro ingressou em uma universidade pública pelo sistema de cotas, há dez anos, muita bobagem foi dita por aí. Os críticos ferozes afirmaram que o modelo rebaixaria o  nível educacional e degradaria as universidades. Eles também disseram que os cotistas jamais acompanhariam o ritmo de seus colegas mais iluminados e isso resultaria na desistência dos negros e pobres beneficiados pelos programas de inclusão. Os arautos do pessimismo profetizaram discrepâncias do próprio vestibular, pois os cotistas seriam aprovados com notas vexatórias se comparadas com o desempenho da turma considerada mais capaz. Para os apocalípticos, o sistema de cotas culminaria numa decrepitude completa: o ódio racial seria instalado nas salas de aula universitárias, enquanto negros e brancos construiriam muros imaginários entre si. A segregação venceria e a mediocridade dos cotistas acabaria de vez com o mundo acadêmico brasileiro. Mas, surpresa: nada disso aconteceu. Um por um, todos os argumentos foram derrotados pela simples constatação da realidade. “Até agora, nenhuma das justificativas das pessoas contrárias às cotas se mostrou verdadeira”, diz Ricardo Vieiralves de Castro, reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

As cotas raciais deram certo porque seus beneficiados são, sim, competentes. Merecem, sim, frequentar uma universidade pública e de qualidade. No vestibular, que é o princípio de tudo, os cotistas estão só um pouco atrás. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas federais foi de 787,56 pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos. A diferença entre eles, portanto, ficou próxima de 3%. ISTOÉ entrevistou educadores e todos disseram que essa distância é mais do que razoável. Na verdade, é quase nada. Se em uma disciplina tão concorrida quanto medicina um coeficiente de apenas 3% separa os privilegiados, que estudaram em colégios privados, dos negros e pobres, que frequentaram escolas públicas, então é justo supor que a diferença mínima pode, perfeitamente, ser igualada ou superada no decorrer dos cursos. Depende só da disposição do aluno. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das mais conceituadas do País, os resultados do último vestibular surpreenderam. “A maior diferença entre as notas de ingresso de cotistas e não cotistas foi observada no curso de economia”, diz Ângela Rocha, pró-reitora da UFRJ. “Mesmo assim, essa distância foi de 11%, o que, estatisticamente, não é significativo.”

Por ser recente, o sistema de cotas para negros carece de estudos que reúnam dados gerais do conjunto de universidades brasileiras. Mesmo analisados separadamente, eles trazem respostas extraordinárias. É de se imaginar que os alunos oriundos de colégios privados tenham, na universidade, desempenho muito acima de seus pares cotistas. Afinal, eles tiveram uma educação exemplar, amparada em mensalidades que custam pequenas fortunas. Mas a esperada superioridade estudantil dos não cotistas está longe de ser verdade. A Uerj analisou as notas de seus alunos durante 5 anos. Os negros tiraram, em média, 6,41. Já os não cotistas marcaram 6,37 pontos. Caso isolado? De jeito nenhum. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também é referência no País, uma pesquisa demonstrou que, em 33 dos 64 cursos analisados, os alunos que ingressaram na universidade por meio de um sistema parecido com as cotas tiveram performance melhor do que os não beneficiados. E ninguém está falando aqui de disciplinas sem prestígio. Em engenharia de computação, uma das novas fronteiras do mercado de trabalho, os estudantes negros, pobres e que frequentaram escolas públicas tiraram, no terceiro semestre, média de 6,8, contra 6,1 dos demais. Em física, um bicho de sete cabeças para a maioria das pessoas, o primeiro grupo cravou 5,4 pontos, mais dos que os 4,1 dos outros (o que dá uma diferença espantosa de 32%).

Em um relatório interno, a Unicamp avaliou que seu programa para pobres e negros resultou em um bônus inesperado. “Além de promover a inclusão social e étnica, obtivemos um ganho acadêmico”, diz o texto. Ora, os pessimistas não diziam que os alunos favorecidos pelas cotas acabariam com a meritocracia? Não afirmavam que a qualidade das universidades seria colocada em xeque? Por uma sublime ironia, foi o inverso que aconteceu. E se a diferença entre cotistas e não cotistas fosse realmente grande, significaria que os programas de inclusão estariam condenados ao fracasso? Esse tipo de análise é igualmente discutível. “Em um País tão desigual quanto o Brasil, falar em meritocracia não faz sentido”, diz Nelson Inocêncio, coordenador do núcleo de estudos afrobrasileiros da UnB. “Com as cotas, não é o mérito que se deve discutir, mas, sim, a questão da oportunidade.” Ricardo Vieiralves de Castro fala do dever intrínseco das universidades em, afinal, transformar  seus alunos – mesmo que cheguem à sala de aula com deficiências de aprendizado. “Se você não acredita que a educação é um processo modificador e civilizatório, que o conhecimento é capaz de provocar grandes mudanças, não faz sentido existir professores.” Não faz sentido existir nem sequer universidade.

Mas o que explica o desempenho estudantil eficiente dos cotistas? “Os alunos do modelo de inclusão são sobreviventes, aqueles que sempre foram os melhores de sua turma”, diz Maurício Kleinke, coordenador-executivo do vestibular da Unicamp. Kleinke faz uma análise interessante do fenômeno. “Eles querem, acima de tudo, mostrar para os outros que são capazes e, por isso, se esforçam mais.” Segundo o professor da Unicamp, os mais favorecidos sabem que, se tudo der errado na universidade, podem simplesmente deixar o curso e voltar para os braços firmes e seguros de seus pais. Para os negros e pobres, é diferente. “Eles não sofrem da crise existencial que afeta muitos alunos universitários e que faz com que estes desistam do curso para tentar qualquer outra coisa.” Advogado que entrou na PUC do Rio por meio de um sistema de cotas, Renato Ferreira dos Santos concorda com essa teoria. “Nós, negros, não podemos fazer corpo mole na universidade”, diz. Também professor do departamento de psicologia da Uerj, Ricardo Vieiralves de Castro vai além. “Há um esforço diferenciado do aluno cotista, que agarra essa oportunidade como uma chance de vida”, diz o educador. “Ele faz um esforço pessoal de superação.” Esse empenho, diz o especialista, é detectável a cada período estudantil. “O cotista começa a universidade com uma performance mediana, mas depois se iguala ao não cotista e, por fim, o supera em muitos casos.”

O cotista não desiste. Se desistir, terá de voltar ao passado e enfrentar a falta de oportunidades que a vida ofereceu. Por isso, os índices de evasão dos alunos dos programas de inclusão são baixos e, em diversas universidades, até inferiores aos dos não cotistas. Para os críticos teimosos, que achavam que as cotas não teriam efeito positivo, o que se observa é a inserção maior de negros no mercado de trabalho. “Fizemos uma avaliação com 500 cotistas e descobrimos que 91% deles estão empregados em diversas carreiras, até naquelas que têm mais dificuldade para empregar”, diz Ricardo Vieiralves de Castro. Com o diploma em mãos, os negros alcançam postos de melhor remuneração, o que, por sua vez, significa uma chance de transformação para o seu grupo social. Não é difícil imaginar como os filhos dos cotistas terão uma vida mais confortável – e de mais oportunidades – do que seus pais jamais tiveram.

Por mais que os críticos gritem contra o sistema de cotas, a realidade nua e crua é que ele tem gerado uma série de efeitos positivos. Hoje, os negros estão mais presentes no ambiente universitário. Há 15 anos, apenas 2% deles tinham ensino superior concluído. Hoje, o índice triplicou para 6%. Ou seja: até outro dia, as salas de aula das universidades brasileiras lembravam mais a Suécia do que o próprio Brasil. Apesar da evolução, o percentual é ridículo. Afinal de contas, praticamente a metade dos brasileiros é negra ou parda. Nos Estados Unidos, a porcentagem da população chamada afrodescendente corresponde exatamente à participação dela nas universidades: 13%. Quem diz que não existe racismo no Brasil está enganado ou fala isso de má-fé. Nos Estados Unidos, veem-se negros ocupando o mesmo espaço dos brancos – nos shoppings, nos restaurantes bacanas, no aeroporto, na televisão, nos cargos de chefia. No Brasil, a classe média branca raramente convive com pessoas de uma cor de pele diferente da sua e talvez isso explique por que muita gente refuta os programas de cotas raciais. No fundo, o que muitos brancos temem é que os negros ocupem o seu lugar ou o de seus filhos na universidade. Não há outra palavra para expressar isso a não ser racismo.

Com a aprovação recente, pelo Senado, do projeto que regulamenta o sistema de cotas nas universidades federais (e que prevê que até 2016 25% do total de vagas seja destinado aos estudantes negros), as próximas gerações vão conhecer uma transformação ainda mais profunda. Os negros terão, enfim, as condições ideais para anular os impedimentos que há 205 anos, desde a fundação da primeira faculdade brasileira, os afastavam do ensino superior. Por mais que os críticos se assustem com essa mudança, ela é justa por fazer uma devida reparação. “São muitos anos de escravidão para poucos anos de cotas”, diz o pedagogo Jorge Alberto Saboya, que fez sua tese de doutorado sobre o sistema de inclusão no ensino superior. Acima de tudo, são muitos anos de preconceito. Como se elimina isso? “Não se combate o racismo com palavras”, diz o sociólogo Muniz Sodré, pesquisador da UFRJ. “O que combate o racismo é a proximidade entre as diferenças.” Não é a proximidade entre as diferenças o que, afinal, promove o sistema de cotas brasileiro?

Fotos: Arquivo pessoal; Adriano Machado/Ag. Istoé; Ana Carolina Fernandes; Orestes Locatel; Link Photodesign

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Uma história de amor e fúria: uma narrativa da história brasileira através do desenho animado

Estréia hoje (05/04/2013) nos cinemas brasileiros a animação Uma História de Amor e Fúria. Segundo seu diretor, Luiz Bolognesi, um longa-metragem que reflete a história do Brasil ao narrar a trajetória de um personagem que viveu quase 600 anos e testemunhou diversos momentos da história do Brasil.

Segundo Bolognesi, o projeto nasceu de um desejo pessoal de unir história do Brasil com HQ, na tentativa de contar uma história “que nunca foi contada”. Em entrevista a Revista Brasileira de Cinema, Bolognesi, que é jornalista de formação, afirma que a história do Brasil que aparece em seu filme, não é a história que se costuma ver nos livros didáticos, mas sim uma história de quem foi além das versões da história oficial e de quem foi ouvir a versão dos perdedores e dos massacrados e não a de quem massacrou e construiu a estátua para o general responsável pelo massacre.

De modo bastante sucinto, explica ainda que para escrever o roteiro de seu filme, ele foi “visitar a história” para questioná-la, no intuito de desvelar como era esse outro lado da história que foi “varrido para debaixo do tapete”. Portanto, segundo o autor do longa-metragem, “a pegada geral” de seu filme é contar um pouco essa história que foi varrida para debaixo do tapete, isto é, levantar o tapete e mostrar ao seu público a verdadeira história do Brasil que estava escondida e que ninguém havia revelado ainda. Abaixo segue a entrevista de Luiz Bolognesi à Revista Brasileira de Cinema.

Obviamente, na entrevista não há menção de métodos ou das fontes utilizadas para a escrita desse roteiro que pretende contar uma história do Brasil jamais escrita. Tampouco se revela quem são os responsáveis por varrer a história do Brasil para debaixo do tapete e ali deixá-la até que Bolognesi e sua equipe conseguissem levantá-lo para exibir a verdadeira história do Brasil através de sua animação. Há apenas uma presunção de que há uma história não contada, que não há interesse em contá-la e que foi necessário um jornalista/cineasta se interessar no assunto para que ela saísse debaixo do tapete onde era mantida. Além disso, claro, há uma confusão pueril de que a história dos livros didáticos é a “história oficial” e uma maneira bastante ultrapassada de narrar a história do Brasil, narrativa que, pelos avanços da História, já não cabe mais em nosso século, para quem pretende escrever qualquer trabalho que se pretende histórico (na verdade, já não cabia no século passado).

Ambientado num Rio de Janeiro do futuro, com imagens do Cristo Redentor com os braços caídos, o filme volta no tempo e pretende mostrar a verdadeira história do Brasil a partir do fio condutor de uma história de amor, que começa no século XVI e vai se arrastando no tempo até o final do século XXI, graças a um personagem que não morre em todo esse tempo, tendo vivido e testemunhado esses quase 600 anos de história, apaixonado por Janaína, que geração após geração vai reencarnando no Brasil para, assim, continuar sua história de amor através do tempo.

Segundo Daniel Grecco, supervisor de produção do filme, a animação visa atingir um público jovem, em idade escolar, mas sua mensagem atinge a todos os públicos. Portanto, se o objetivo é fazer com que o filme seja visto pelo maior número de pessoas, como disse Luiz Bolognesi em uma sessão de lançamento exclusiva para professores e alunos da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, não poderia haver melhor escolha do que Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro para fazerem as vozes dos principais personagens da animação.

Abaixo o teaser para divulgação da animação:

Do teaser acima, gostaria de destacar as seguintes frases, que aparecem logo no princípio:

Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”.

“Nossas memórias não são datas num livro, são histórias vivas, cheias de amor e fúria. Como eu sei disso? Estou vivo há quase 600 anos. Eu vi muita coisa.”

Pelas frases acima, percebe-se um flerte com ideia de “História mestra da vida”, segundo a qual a história serve para ensinar os homens os erros do passado para que não se volte a cometê-los no futuro. Na sessão exclusiva realizada com alunos e professores da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, as palavras do estudante Yuri, não deixam dúvidas (avançar o filme até o 2:22 para ver a declaração de Yuri):

“Historia magistra vitae” é um conceito antigo, que aparece em Cícero e que foi bem analisado por Fernando Cartoga, da Universidade de Coimbra, em artigo publicado na revista Estudos Ibero-Americanos, da PUC-RS. Artigo, aliás, que recomendo aos que se interessarem por saber mais sobre alguns problemas da historiografia. Aqui neste espaço, gostaria apenas de deixar algumas perguntas ao diretor e roteirista do filme, Luiz Bolognesi, que são apenas uma amostra mínima dos questionamentos com os quais um historiador de ofício deve se preocupar antes de pensar em escrever uma narrativa que se pretende histórica:

  1. Será que a melhor forma de contar uma história do Brasil que jamais foi escrita é através de uma narrativa do tipo “historia magistra vitae”, já utilizada por um historiador romano um século antes de Cristo e que passa a ser questionada pela historiografia do século XIX e XX?

    Cicero

    Marco Túlio Cícero (106 a.C – 43 a.C.)

  2. Será mesmo que hoje, em pleno século XXI, aquele que vai escrever uma narrativa histórica deve continuar a enxergar o devir histórico, ou se preferir, o tempo histórico, da mesma forma como Cícero o encarava para contar a história de Roma?
  3. Nós, que escrevemos História hoje, devemos continuar representando o tempo histórico como um itinerário possível de ser determinado e, portanto, que impede o surgimento do novo, já que todas as respostas estão no passado?
  4. Por fim, tal como pergunta Fernando Cartoga em seu artigo: “poderá acolher a experiência do novo, quando a história é apresentada como um encadeamento necessário, no qual, em última análise, a ideia apriorística de fim se encontra insinuada desde a origem?”

Quanto a escolha do narrador dessa “história dos perdedores”, Luiz Bolognesi optou por fazer uso de uma TESTEMUNHA OCULAR da história que, por ter vivido quase 600 anos, viu tudo (ou muita coisa) e, em função disso, poderia contar essa história com [mais] propriedade do que qualquer outro. Aqui, parte-se também de um antigo pressuposto de que, por ser narrada por quem viu e testemunhou os acontecimentos no calor do momento, a história narrada por este indivíduo seria verdadeira e não poderia ser contestada por alguém que não tivesse visto o que se passou. Como os historiadores costumam dizer, trata-se de uma visão muito positivista da História. A valorização do documento histórico acima de tudo, ou em outras palavras, é o documento histórico quem conta o que se passou. O trabalho do historiador é apenas encontrar o documento e jogar luz em seu conteúdo.

No mundo artístico brasileiro, a ideia explorada pelo filme não é nova, Raul Seixas já brincava com ela na década de 1970 quando escreveu “Eu nasci há 10 mil anos atrás”. Em sua música, Raul descreve ter testemunhado diversos momentos históricos vividos pela humanidade, desde a queda da Babilônia, passando pelo nascimento de Jesus, até o extermínio dos judeus pela Alemanha nazista. Contudo, no fim da canção, Raul Seixas ironiza a versão da história que ele próprio está contando ao levantar a possibilidade de haver algumas mentiras em sua narrativa: “(…) e para aquele que provar que eu estou mentindo, eu tiro o meu chapéu”. Abaixo o clipe da música de Raul Seixas.

Gostaria de finalizar o post, deixando apenas essas considerações registradas por ter me incomodado com a maneira como Luiz Bolognesi fala da história do Brasil e do papel dos historiadores na entrevista que concedeu a Revista Brasileira de Cinema. Escrever história é bastante complexo, requer uma erudição muito grande e, ao contrário do que se pensa, não é algo que se pode fazer simplesmente consultando enciclopédias e ouvindo um par de pessoas nas ruas. Bolognesi me pareceu bastante leviano ao confundir a “história oficial” (se é que existe uma história oficial) com a história dos livros didáticos, e mostrar um profundo desconhecimento da existência de inúmeros trabalhos de historiadores brasileiros à respeito das minorias massacradas nas diferentes temporalidades abarcadas por seu filme.

Ao contrário do que ele pensa, a história que ele pretendia contar com seu filme, já foi escrita sim e não apenas por um, mas por centenas e centenas de trabalhos de historiadores que estudaram anos a fio e pormenorizadamente seus objetos para, ao fim e ao cabo, escreverem suas narrativas que jamais pretendem esgotar o assunto ao qual se propuseram estudar. Aquilo que ele alega estar debaixo do tapete e que jamais foi escrito pela “história oficial”, tendo sido necessário ser desvelado por um jornalista/cineasta com sua animação, já foi revelado por tantos e tantos trabalhos de historiadores há décadas, não havendo, portanto, novidade histórica alguma em seu filme.

Cabe agora assistir ao filme na íntegra para ver se há alguma surpresa ou outras maneiras como o diretor optou por contar sua história do Brasil. Por enquanto, fico com a sensação de que a ideia é interessante, o formato escolhido para o filme também, mas a visão que o diretor tem sobre História, bem como as escolhas de narrativa para contar a sua versão dos oprimidos, deixaram muito a desejar, especialmente para quem tinha a pretensão de contar uma história do Brasil que nenhum historiador tinha descoberto ainda ou, no pior dos casos, preferido deixar debaixo do tapete. Nesse sentido (revelar uma história do Brasil inédita), mesmo sem tê-lo visto na íntegra posso afirmar que o objetivo do autor não se concretizou e, portanto, trata-se de um retumbante fracasso. Quanto ao filme em si, entendo que no fim, pode até ser uma boa diversão. Apenas isso, um bom entretenimento.

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O assassinato de Patrice Lumumba no contexto da guerra-fria.

Texto de ELIO GASPARI publicado na FOLHA DE S. PAULO de hoje, 03 de abril de 2013, trata sobre o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro eleito do Congo (antigo Congo Belga e Zaire), em 1961, que foi deposto, preso e fuzilado com o auxílio do serviço secreto inglês e anuência das tropas da ONU.

OS INGLESES E A MORTE DE LUMUMBA
por Elio Gaspari

Patrice Lumumba

A CENA não podia ser mais chique. Em 2010, Lord Lea de Crondall tomava chá com a baronesa Park de Monmouth e comentou um trecho de um livro que discutia o envolvimento do serviço secreto britânico no assassinato do primeiro-ministro congolês Patrice Lumumba, em 1961. O mistério completaria meio século. Lumumba tinha 35 anos e parecia um Fidel Castro (versão 1.0) africano. Vencera uma eleição e mal completara três meses como primeiro-ministro quando foi deposto e preso. Fugiu e foi capturado. Seu assassinato foi um crime que superou, de longe, a execução do Che Guevara. Primeiro, porque estava no seu país. Ademais, porque foi filmado apanhando, até mesmo quando soldados tentavam fazê-lo comer um documento que assinara. A imagem de sua altaneira resignação, com as mãos amarradas, está no YouTube (http://youtu.be/HtzfCMHX1Yg). Tropas da ONU que policiavam o Congo poderiam tê-lo libertado. Lumumba foi martirizado durante duas semanas. Apanhou de soldados, generais e até mesmo do presidente de uma província rebelada. Finalmente, no dia 17 de janeiro de 1961, militares congoleses e mercenários europeus encostaram-no numa arvore e fuzilaram-no.

A execução foi uma espécie de Assassinato no Expresso Oriente da Guerra Fria. Os americanos tentaram envenená-lo, os belgas tratavam-no pelo codinome de Satan e planejaram seu assassinato. O primeiro-ministro inglês discutira sua “eliminação” com o presidente americano Eisenhower, mas o dedo de Londres só apareceu durante o chá dos lordes. Faltava uma peça: quem armou a cena final?

“Fomos nós. Eu organizei a coisa”, disse a octogenária baronesa de Monmouth. Aos 39 anos ela era Daphne Park e chefiava a estação da inteligência inglesa no Congo. Para quem se habituou com a cenografia de James Bond, Park encarnava o anticlímax. Com jeitão de missionária gorda, dirigia um Citroën velho. Até chegar à Câmara dos Lordes, passaria por Moscou, Zâmbia e Hanói. Nunca falou de sua carreira, ria do Bond de Ian Fleming e não gostava das tramas de John Le Carré. Daphne morreu aos 88 anos, poucos meses depois de seu breve comentário com Lord Crondall. Ele narrou a conversa numa carta recente ao London Review of Books.

Recompondo-se os fatos de janeiro de 1961, é possível que Daphne tenha organizado e instruído a ida de um ex-assessor de Lumumba à prisão onde ele estava, transferindo-o para a capital de uma província rebelada, onde seu fim estaria selado. Semanas antes, ela salvara a vida desse novo colaborador escondendo-o na porta-malas de seu carro.

Passados 52 anos do assassinato de Lumumba, ficou o saldo. De 1961 a 1997, o Congo foi governado por Joseph Mobutu, um policial transformado em coronel, queridinho da Central Intelligence Agency americana. O embaixador inglês achava-o incapaz de se tornar ditador. Foi um arquétipo dos cleptocratas africanos, intitulando-se Messias, Supremo Combatente e O Grande Leopardo. Juntou algo como US$ 5 bilhões, mais um castelo na França. Desde então o Congo viveu meio século de guerras civis (numa das quais se meteu Che Guevara) e nelas morreram milhões de pessoas. País de imensos recursos naturais, o Congo é um dos mais pobres e corruptos do mundo.

No aniversário de 39 anos da morte de Lumumba, em 17/01/2010, o portal OPERA MUNDI trouxe um texto sobre quem foi Patrice Lumumba e quais as circunstâncias de sua morte. Ao final, destaca uma carta-testamento que o ex primeiro-ministro deixara com sua mulher:

“Morto sob tortura, à noite, Lumumba deixara com sua mulher Pauline Opangu uma carta-testamento:”

“Minha fé se manterá inquebrantável. Eu sei e eu sinto no fundo de mim mesmo que cedo ou tarde meu país se libertará de todos os seus inimigos internos e externos, que ele se levantará, como um só homem para dizer não ao vergonhoso e degradante colonialismo e reassumir sua dignidade sob um sol puro”.

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