Arquivo do mês: dezembro 2018

João de Deus, o kardecismo e a desigualdade entre os homens

Delegado diz que João de Deus utilizava a fé para cometer abusos sexuais

Sem querer me estender muito em toda essa patifaria ligada ao caso do charlatão que se autodenominou João de Deus, gostaria de compartilhar por aqui breves reflexões que me fizeram relembrar o tempo em que eu estudei de perto o espiritismo kardecista e, na sequência, engatei numa pós-graduação em teologia com alguns professores jesuítas.

Sem rodeios e indo direto ao ponto, a reaparição do João de Deus na TV me fez recordar de uma discussão que havia feito com alguns colegas no começo dos anos 2000 sobre a relação entre CARIDADE e DESIGUALDADE entre os homens. Já naquele tempo, antes mesmo de ter cursado faculdade de Ciências Humanas, defendia ser possível classificar qualquer doutrina/religião cujo fundamento principal é a caridade como sendo fortemente vinculada a valores da DIREITA. Depois de ter cursado História e, sobretudo, lido as reflexões sobre Direita e Esquerda de Norberto Bobbio, fiquei ainda mais convicto disso.

Antes que me acusem de insanidade, o que quero dizer é que tais doutrinas entendem a desigualdade como algo NATURAL em vez de SOCIALMENTE CONSTRUÍDA, isto é, as pessoas nascem e ocupam posições diferenciadas na escala social não por conta do modo como a sociedade se organiza, mas em razão de outros fatores, como por exemplo, a conduta individual dessas pessoas em vidas pretéritas. Tal critério daria conta de explicar a existência de pessoas “INFERIORES” e “SUPERIORES” em nossa sociedade. Para essas doutrinas, a caridade é o principal instrumento de ascensão espiritual a TODOS aqueles em busca de se desenvolverem para atingirem novos planos. Entretanto, deve-se ter em conta que os que já entraram nessa vida em estágio maior de desenvolvimento espiritual (os superiores) estão em melhores condições para desempenhar o papel de mitigar o sofrimento dos que ainda estão nos estágios iniciais (os inferiores).

Por essa linha raciocínio, sou levado a pensar que o ESPIRITISMO KARDECISTA leva essa ideia ainda mais adiante, pois postula que “fora da caridade não há salvação”. Ao fazê-lo, condiciona o aprimoramento espiritual do indivíduo à prática da caridade, principalmente, entre pessoas de diferentes níveis de desenvolvimento espiritual, isto é, dos mais aos menos desenvolvidos. Mais que isso, o kardecismo leva para o além-túmulo a desigualdade entre os seres humanos, uma vez que os mais desenvolvidos deverão reencarnar sempre em condições melhores (a não ser que aceitem alguma missão), enquanto os menos desenvolvidos ainda deverão penar com miséria, doenças, fome, deficiências e outra miríade de infortúnios em razão dos erros em vidas pretéritas.

Historicamente não é difícil compreender porque Allan Kardec (1804-1869) codificou uma doutrina como essa que acabou levando o seu nome. Como todos, era um homem de seu tempo, profundamente influenciado pelo POSITIVISMO e pela ideia de que o homem branco tinha o “FARDO” de civilizar o resto da humanidade. Para tanto, elegeu como mecanismo principal dessa “civilização” a caridade, cujo papel era justamente o desenvolvimento da humanidade em muitas etapas sucessivas ou estágios.

Antes de prosseguir quero deixar muito claro que não me oponho, de forma alguma, à prática da caridade. Muito pelo contrário. Em um mundo como o que vivemos ela é mais do que necessária. Penso, porém, que tudo deve estar bem claro para quem estiver disposto a seguir quaisquer doutrinas ou religiões. No caso em questão, o kardecismo, vejo uma obscuridade intencional nesse sentido, assim como uma necessidade imensa de se fantasiar com vestes cristãs para poder dialogar com esse grande público. No entanto, por trás disso tudo fica evidente que o espiritismo se opõe ao cristianismo naquilo que lhe é mais caro: a salvação.

Ora, ao colocar a caridade como o elemento central de sua doutrina, o kardecismo não só se torna anti-cristão, pois retira o papel de Jesus na salvação da humanidade – passando-o exclusivamente para o próprio indivíduo em busca seu aprimoramento espiritual -, mas também alinha-se ao postulado de que a desigualdade entre os seres humanos é natural, isto é, já vem com ele ao nascer. Segundo os kardecistas, a superação dessa desigualdade só se dará pela via sobrenatural (reencarnação) e, ainda assim, após uma vida dedicada a caridade. Há uma ESCALA DE DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL para cada indivíduo que, após o intercurso de uma vida, poderá se elevar ou diminuir, determinando seu destino nas próximas vidas. Nesse sentido, não há quem possa intervir pelo indivíduo no plano da vida material, nem mesmo todo o sangue derramado por Jesus. Este último, cumpre lembrar, é considerado pelos kardecistas um grande mestre, um profeta, uma alma desenvolvida, um modelo de vida, mas não o filho de Deus ou, tampouco, o Deus encarnado.

Por outro lado, insisto que vale a pena aprofundarmos essa reflexão sobre a desigualdade natural entre os humanos e a Criação. Ora, se a desigualdade é natural e há uma intencionalidade por trás de toda a Criação, então o arquiteto maravilhoso é quem deve ser responsabilizado pela existência de toda essa desigualdade, certo? Mas como pensar em uma divindade eminentemente boa com tamanha desigualdade no mundo? Essa é uma pergunta que todos nós – crentes e ateus – deveríamos nos fazer diante do verdadeiro horror que é o mundo que vivemos: qual a razão de bilhões de pessoas nascerem sem acesso a comida e água potável em um canto do mundo, enquanto outras tantas nascem em situação oposta, isto é, com tamanho excesso de tais recursos ao ponto de a maior parte dos mesmos ser desperdiçada?

Se nos fosse dada uma explicação cristã para essa verdadeira tragédia, certamente ouviríamos em resposta que deus tem um plano pra cada um e nós não temos como entender os desígnios divinos (MISTÉRIO). No caso da kardecista, porém, a explicação recai nas vidas pretéritas desses indivíduos. Cada um está exatamente no lugar onde deveria estar segundo seu desenvolvimento espiritual. No melhor dos casos, há ESPÍRITOS ILUMINADOS que optaram por reencarnar em tal situação para auxiliar no desenvolvimento espiritual dos menos desenvolvidos. É a caridade além-túmulo, pré-natal.

Enquanto a explicação cristã evidencia o papel da própria divindade na criação da desigualdade, isto é, deus teria criado os homens iguais (à sua imagem e semelhança), mas os teria colocado na Terra em situações de desigualdade em função de um plano individual que tem para cada um; a explicação kardecista retira o protagonismo divino e coloca-o novamente em cada indivíduo (ainda que, em última instância, acabará por recair na divindade quando da criação inicial dos espíritos. Estes, por sua vez, criados todos igualmente inferiores para que possam se desenvolver, mais ou menos rapidamente, através das inúmeras vidas sucessivas nos diferentes planos).

Por fim, para não deixar o fio solto, o que pensar do tal João de Deus? Se antes ele era um ser de luz, encarnado em missão para ajudar na evolução espiritual da humanidade, e agora? O que pensar dessa figura sinistra após a descoberta de seus abusos e falcatruas? Te convence a ideia de que ele voltará em próximas vidas como um ser doente, tetraplégico ou com câncer infantil? É tudo tão simples e tão raso assim? Ainda que a Federação Espírita Brasileira (FeB) negue a vinculação de João de Deus aos quadros do espiritismo, tanto o charlatão quanto a Federação se beneficiaram, durante anos, das promessas de curas espirituais que o “falso médico” realizava através de suas pseudo-cirurgias. Antes de ser descoberto em suas inúmeras falcatruas, a FeB não parece ter se importado em divulgar que ela não tinha ligação nenhuma com o dito patife. Pelo contrário. Me lembro de ter sido informado de que alguns centros espíritas de São Paulo  promoviam excursões aos que se interessassem nas alegadas curas espirituais do médium de Abadiânia.

A quem possa interessar, deixo, aqui, um vídeo do doutor Dráuzio Varella tratando da questão dos charlatães, em especial, o de João de Deus, e suas promessas de curas espirituais.


Rogério Beier é doutorando em História Econômica (FFLCH-USP) e mestre em História Social (FFLCH-USP). Entre 1998-2001 estudou o kardecismo em centos-espíritas na cidade de São Paulo e fez um curso de pós-graduação em teologia em instituição ligada aos jesuítas.

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Os signos do reacionarismo, da teocracia neopentecostal e do militarismo marcam governo Bolsonaro

por Vinícius Moraes – 06. dez. 2018

A formação do governo Bolsonaro combina duas características bastante nítidas, são elas o conservadorismo civil como critério objetivo de escolha e a presença militar. Um desavisado poderia confundir o processo atual com a constituição de governos de inspiração fascista do início do século XX.

Durante a campanha eleitoral, os defensores da tese de que “tem que mudar tudo isso aí” sugeriram diminuir o número de ministérios para 15, no afã do Estado mínimo. Hoje são 29. No entanto, a necessidade de acomodar no governo o conjunto das forças que apoiam Bolsonaro obrigou aos novos articulares a expandir as vagas. O velho toma lá dá cá se mostra muito atual.

O governo que está sendo montado nasce com os signos do reacionarismo, da teocracia neopentecostal e do militarismo. Nunca antes a bancada evangélica se viu com tanta força de indicação de nomes e, ao mesmo tempo, poder de veto.

Cotado para o Ministério da Educação, pasta que contará com 122 bilhões em 2019, o nome de Mozart Neves Ramos, membro do Instituto Ayrton Senna, foi simplesmente vetado, por ser considerado um moderado. Os evangélicos fazem questão de que os nomes do governo defendam a medieval ‘escola sem partido’ e o combate à ‘ideologia de gênero’, segundo Ronaldo Nogueira do PTB.

Com o veto, Bolsonaro recorreu ao Olavo de Carvalho, considerado filósofo por alguns e figura tão chula quanto lunática por outros. O indicado foi o católico colombiano, ex-trotskysta, ultrarreacionário Ricardo Vélez Rodríguez. Este, diferente de Mozart, agrada aos evangélicos. Olavo de Carvalho também indicou para chanceler Eugênio Araújo, quem pretende priorizar o combate ao ‘marxismo cultural’, considera que existe um alarmismo em relação ao aquecimento global e pretende colocar o Brasil sob a tutela norte-americana.

Os evangélicos ainda se organizaram para indicar um nome para o Ministério da Cidadania, o qual deve reunir as estruturas do Desenvolvimento Social, Cultura, Esportes e parte da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. O nome indicado, o pastor Marco Feliciano, não foi aceito. O escolhido foi Osmar Terra, ex-ministro de Temer, nome que não desagradou aos defensores da teologia da prosperidade. Composta por 84 deputados federais e sete senadores, o peso da Frente Parlamentar Evangélica parece explicar a guinada religiosa de Jair Bolsonaro.

A presença militar nos cargos de primeiro escalão impressiona e muito. Não é de agora que os militares voltaram a ter protagonismo na cena política brasileira. Imerso em crise, Michel Temer os trouxe para ser uma espécie de pilar de sustentação. Vale dizer, a título de nota relevante, que membros da ativa das Forças agiram politicamente em plena luz do dia para defender posições no cenário recente de incertezas e crise institucional. O ápice foi o tuíte do general Villas Bôas ameaçando o STF, caso a corte aceitasse o habeas corpus que permitiria a candidatura do ex-presidente Lula no pleito eleitoral.

Pois bem, agora, militares de alta patente estão em postos estratégicos do Estado brasileiro, algo que não acontecia desde a ditadura. Os generais do Exército são Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional); Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo). Os capitães são Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) e Wagner Rosário (Controladoria Geral da União). Como representante da Marinha, o almirante Bento Costa Lima Leite chefiará Minas e Energia. Da Aeronáutica, o tenente-coronel, astronauta e ex-candidato a deputado federal pelo PSB, assumirá, não se sabe porquê, a Ciência e Tecnologia. Em nenhuma democracia do mundo os militares possuem tanta presença quanto aqui. Talvez isso se explique pelo fato de o Brasil estar em marcha contrária ao destino democrático.

Há, evidentemente, os superpoderosos Ministérios da Economia e da Justiça. O primeiro contará com o ‘posto Ipiranga’ Paulo Guedes. Ultraliberal, sujeito de poucas palavras, Guedes montou uma equipe econômica ao seu sabor. Como orientação, devem todos defender a privatização de tudo o que for possível e garantir os interesses do mercado financeiro.
Nomeado para agradar ao senso comum conservador, a indicação de Sérgio Moro assombrou o mundo do direito. Depois de comandar uma operação judicial que reformulou toda a roupagem do sistema político, o juiz-militante mudou de função, assumindo a pasta da Justiça no governo daqueles que saúdam torturadores. Ora, por óbvio que a Lava Jato passou a ser imediatamente questionada pela ousadia de Moro de sequer esconder suas preferências políticas.

Vale acrescentar aqui um grave ataque aos direitos dos trabalhadores: a extinção do Ministério do Trabalho. Surgido em 1930, este ministério tinha a função de estimular políticas de criação e proteção do emprego, fiscalizar violações, como o trabalho escravo, e conceder novas cartas sindicais. Ao dividir suas atribuições entre as pastas da Economia, Justiça e Cidadania, Bolsonaro revela desprezo por aqueles que vivem do seu próprio suor. Em nota, o próprio Ministério do Trabalho considerou a medida ilegal. Argumentou-se que “o Ministério do Trabalho reitera que o eventual desmembramento da pasta atenta contra o artigo 10 da Constituição Federal, que estabelece a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

Observando essa montagem, fica evidente que este governo não terá vida fácil. Os militares, nacionalistas por dever de ofício, não aceitarão de bom grado os anseios ultraliberais de Guedes. Generais, diga-se de passagem, não são chegados a receber ordens, conforme já afirmou o vice Mourão. Não costumam aceitar ordem nem de economistas, nem de capitães. Por outro lado, como Sergio Moro lidará com um exército de corruptos articulados por Onyx Lorenzoni? Será que daqui em diante pedidos de desculpas serão suficientes?

Em meio a toda essa tormenta, Jair Bolsonaro será o quadro mediador. Autoritário, estabanado e impulsivo, Bolsonaro poderá, involuntariamente, levar todo o Brasil para a ponta da praia.

Segue o desenho do novo ministério:

Casa Civil: Onyx Lorenzoni

GSI: general Augusto Heleno

Secretaria de Governo: general Carlos Alberto dos Santos Cruz

Secretaria-Geral: Gustavo Bebianno

Economia (Fazenda, Planejamento, Trabalho e MDIC): Paulo Guedes

Minas e Energia: Bento Albuquerque

Justiça e Segurança Pública (Justiça, Segurança Pública e Trabalho): Sergio Moro

Relações Exteriores: Ernesto Araújo

Defesa: general Fernando Azevedo e Silva

Educação: Ricardo Vélez Rodríguez

Saúde: Luiz Henrique Mandetta

Agricultura: Tereza Cristina

Infraestrutura (Transportes, Aviação Civil, Portos e Aeroportos): Tarcísio Freitas

Ciência, Tecnologia e Comunicações: Marcos Pontes

Cidadania (Desenvolvimento Social, Trabalho, Esporte e Cultura): Osmar Terra

Turismo: Marcelo Álvaro Antônio

Banco Central: Roberto Campos Neto

AGU: André Luiz Mendonça

CGU: Wagner Rosário

Desenvolvimento Regional (Cidades e Integração Nacional): Gustavo Canuto

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Vinícius Moraes é historiador pela Universidade de São Paulo.

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