Sem querer me estender muito em toda essa patifaria ligada ao caso do charlatão que se autodenominou João de Deus, gostaria de compartilhar por aqui breves reflexões que me fizeram relembrar o tempo em que eu estudei de perto o espiritismo kardecista e, na sequência, engatei numa pós-graduação em teologia com alguns professores jesuítas.
Sem rodeios e indo direto ao ponto, a reaparição do João de Deus na TV me fez recordar de uma discussão que havia feito com alguns colegas no começo dos anos 2000 sobre a relação entre CARIDADE e DESIGUALDADE entre os homens. Já naquele tempo, antes mesmo de ter cursado faculdade de Ciências Humanas, defendia ser possível classificar qualquer doutrina/religião cujo fundamento principal é a caridade como sendo fortemente vinculada a valores da DIREITA. Depois de ter cursado História e, sobretudo, lido as reflexões sobre Direita e Esquerda de Norberto Bobbio, fiquei ainda mais convicto disso.
Antes que me acusem de insanidade, o que quero dizer é que tais doutrinas entendem a desigualdade como algo NATURAL em vez de SOCIALMENTE CONSTRUÍDA, isto é, as pessoas nascem e ocupam posições diferenciadas na escala social não por conta do modo como a sociedade se organiza, mas em razão de outros fatores, como por exemplo, a conduta individual dessas pessoas em vidas pretéritas. Tal critério daria conta de explicar a existência de pessoas “INFERIORES” e “SUPERIORES” em nossa sociedade. Para essas doutrinas, a caridade é o principal instrumento de ascensão espiritual a TODOS aqueles em busca de se desenvolverem para atingirem novos planos. Entretanto, deve-se ter em conta que os que já entraram nessa vida em estágio maior de desenvolvimento espiritual (os superiores) estão em melhores condições para desempenhar o papel de mitigar o sofrimento dos que ainda estão nos estágios iniciais (os inferiores).
Por essa linha raciocínio, sou levado a pensar que o ESPIRITISMO KARDECISTA leva essa ideia ainda mais adiante, pois postula que “fora da caridade não há salvação”. Ao fazê-lo, condiciona o aprimoramento espiritual do indivíduo à prática da caridade, principalmente, entre pessoas de diferentes níveis de desenvolvimento espiritual, isto é, dos mais aos menos desenvolvidos. Mais que isso, o kardecismo leva para o além-túmulo a desigualdade entre os seres humanos, uma vez que os mais desenvolvidos deverão reencarnar sempre em condições melhores (a não ser que aceitem alguma missão), enquanto os menos desenvolvidos ainda deverão penar com miséria, doenças, fome, deficiências e outra miríade de infortúnios em razão dos erros em vidas pretéritas.
Historicamente não é difícil compreender porque Allan Kardec (1804-1869) codificou uma doutrina como essa que acabou levando o seu nome. Como todos, era um homem de seu tempo, profundamente influenciado pelo POSITIVISMO e pela ideia de que o homem branco tinha o “FARDO” de civilizar o resto da humanidade. Para tanto, elegeu como mecanismo principal dessa “civilização” a caridade, cujo papel era justamente o desenvolvimento da humanidade em muitas etapas sucessivas ou estágios.
Antes de prosseguir quero deixar muito claro que não me oponho, de forma alguma, à prática da caridade. Muito pelo contrário. Em um mundo como o que vivemos ela é mais do que necessária. Penso, porém, que tudo deve estar bem claro para quem estiver disposto a seguir quaisquer doutrinas ou religiões. No caso em questão, o kardecismo, vejo uma obscuridade intencional nesse sentido, assim como uma necessidade imensa de se fantasiar com vestes cristãs para poder dialogar com esse grande público. No entanto, por trás disso tudo fica evidente que o espiritismo se opõe ao cristianismo naquilo que lhe é mais caro: a salvação.
Ora, ao colocar a caridade como o elemento central de sua doutrina, o kardecismo não só se torna anti-cristão, pois retira o papel de Jesus na salvação da humanidade – passando-o exclusivamente para o próprio indivíduo em busca seu aprimoramento espiritual -, mas também alinha-se ao postulado de que a desigualdade entre os seres humanos é natural, isto é, já vem com ele ao nascer. Segundo os kardecistas, a superação dessa desigualdade só se dará pela via sobrenatural (reencarnação) e, ainda assim, após uma vida dedicada a caridade. Há uma ESCALA DE DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL para cada indivíduo que, após o intercurso de uma vida, poderá se elevar ou diminuir, determinando seu destino nas próximas vidas. Nesse sentido, não há quem possa intervir pelo indivíduo no plano da vida material, nem mesmo todo o sangue derramado por Jesus. Este último, cumpre lembrar, é considerado pelos kardecistas um grande mestre, um profeta, uma alma desenvolvida, um modelo de vida, mas não o filho de Deus ou, tampouco, o Deus encarnado.
Por outro lado, insisto que vale a pena aprofundarmos essa reflexão sobre a desigualdade natural entre os humanos e a Criação. Ora, se a desigualdade é natural e há uma intencionalidade por trás de toda a Criação, então o arquiteto maravilhoso é quem deve ser responsabilizado pela existência de toda essa desigualdade, certo? Mas como pensar em uma divindade eminentemente boa com tamanha desigualdade no mundo? Essa é uma pergunta que todos nós – crentes e ateus – deveríamos nos fazer diante do verdadeiro horror que é o mundo que vivemos: qual a razão de bilhões de pessoas nascerem sem acesso a comida e água potável em um canto do mundo, enquanto outras tantas nascem em situação oposta, isto é, com tamanho excesso de tais recursos ao ponto de a maior parte dos mesmos ser desperdiçada?
Se nos fosse dada uma explicação cristã para essa verdadeira tragédia, certamente ouviríamos em resposta que deus tem um plano pra cada um e nós não temos como entender os desígnios divinos (MISTÉRIO). No caso da kardecista, porém, a explicação recai nas vidas pretéritas desses indivíduos. Cada um está exatamente no lugar onde deveria estar segundo seu desenvolvimento espiritual. No melhor dos casos, há ESPÍRITOS ILUMINADOS que optaram por reencarnar em tal situação para auxiliar no desenvolvimento espiritual dos menos desenvolvidos. É a caridade além-túmulo, pré-natal.
Enquanto a explicação cristã evidencia o papel da própria divindade na criação da desigualdade, isto é, deus teria criado os homens iguais (à sua imagem e semelhança), mas os teria colocado na Terra em situações de desigualdade em função de um plano individual que tem para cada um; a explicação kardecista retira o protagonismo divino e coloca-o novamente em cada indivíduo (ainda que, em última instância, acabará por recair na divindade quando da criação inicial dos espíritos. Estes, por sua vez, criados todos igualmente inferiores para que possam se desenvolver, mais ou menos rapidamente, através das inúmeras vidas sucessivas nos diferentes planos).
Por fim, para não deixar o fio solto, o que pensar do tal João de Deus? Se antes ele era um ser de luz, encarnado em missão para ajudar na evolução espiritual da humanidade, e agora? O que pensar dessa figura sinistra após a descoberta de seus abusos e falcatruas? Te convence a ideia de que ele voltará em próximas vidas como um ser doente, tetraplégico ou com câncer infantil? É tudo tão simples e tão raso assim? Ainda que a Federação Espírita Brasileira (FeB) negue a vinculação de João de Deus aos quadros do espiritismo, tanto o charlatão quanto a Federação se beneficiaram, durante anos, das promessas de curas espirituais que o “falso médico” realizava através de suas pseudo-cirurgias. Antes de ser descoberto em suas inúmeras falcatruas, a FeB não parece ter se importado em divulgar que ela não tinha ligação nenhuma com o dito patife. Pelo contrário. Me lembro de ter sido informado de que alguns centros espíritas de São Paulo promoviam excursões aos que se interessassem nas alegadas curas espirituais do médium de Abadiânia.
A quem possa interessar, deixo, aqui, um vídeo do doutor Dráuzio Varella tratando da questão dos charlatães, em especial, o de João de Deus, e suas promessas de curas espirituais.
Rogério Beier é doutorando em História Econômica (FFLCH-USP) e mestre em História Social (FFLCH-USP). Entre 1998-2001 estudou o kardecismo em centos-espíritas na cidade de São Paulo e fez um curso de pós-graduação em teologia em instituição ligada aos jesuítas.