Lula e o genocídio em Gaza

Foto: Ricardo Stuckert / Presidência do Brasil

Acompanho horrorizado a cobertura que parte da imprensa nacional tem dado ao posicionamento do presidente Luís Inácio Lula da Silva ao genocídio que está em curso na Palestina desde outubro de 2023. Horrorizado, pois tenho testemunhado distorções e exageros de toda espécie. Afirmam, sem a menor capacidade de comprovar tais afirmações, que Lula tenha falado de improviso; que sua posição é a de um líder despreparado e ignorante e que, como tal, se equivoca ao falar sobre o Holocausto; que Lula desrespeita os milhões de vítimas do nazismo e seus descendentes com sua fala, e daí por diante.

Para se fazer essa discussão é preciso ter claro o que Lula falou e em que contexto isso foi dito. Sua fala era uma resposta dirigida a um grupo de jornalistas que cobriam a Cúpula das Nações Africanas, em Adis Abeba, na Etiópia. A pergunta dirigida a Lula o indagava o posicionamento do Brasil em relação ao grupo de países que cortaram o envio de dinheiro para a ajuda humanitária aos palestinos em detrimento da denúncia de crimes cometidos por funcionários da ONU. Lula prontamente passou a chamar a atenção dos presentes e da comunidade internacional que o que está em curso em Gaza é mais do que uma tragédia ou uma catástrofe, mas sim um verdadeiro genocídio. Lula esclarece que a guerra movida pelo atual Estado de Israel não é a de um exército formal contra outro, mas sim contra uma população formada por civis, mulheres e crianças inocentes e que estas são as principais vítimas das incursões do exército israelenses. Por fim, Lula faz a afirmação que engendrou toda essa polêmica, segundo a qual não haveria na história algo similar ao que Netanyahu está promovendo com os palestinos a não ser quando Hitler decidiu matar os judeus.

Para começarmos, percebam que Lula não menciona o Holocausto, mas fala da decisão do chanceler alemão em assassinar os judeus. São coisas distintas. Lula compara a sanha assassina de Nentanyahu à de Hitler ou, dito de outra forma, Lula fala do atual governo do Estado de Israel e não do povo judeu. Portanto, a resposta do presidente brasileiro não trata do holocausto em si e nem é dirigida aos israelitas, mas aponta para o genocídio que está ocorrendo em Gaza e a necessidade de um cessar fogo imediato, pois trata-se de uma guerra injusta.

Sobre o genocídio, vale trazer para a discussão o que diz o Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional de Haia sobre este crime. No capítulo 2, artigo 6, o estatuto define genocídio da seguinte maneira:

Fonte: Ministério Público de Portugal. Disponível em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/estatuto_roma_tpi.pdf

Oras, se analisarmos os ataques que o governo do Estado de Israel vem perpetrando contra a Palestina desde outubro de 2023 sob a perspectiva dessa definição de genocídio, consensada no Estatuto de Roma, fica mais do que evidente que estamos testemunhando um verdadeiro genocídio do povo palestino. Se para qualificar como genocida, tal como define o Estatuto de Roma, bastaria que apenas um dos atos relacionados dentre os cinco descritos no artigo sexto estivessem ocorrendo, somos capazes de identificar imediatamente ao menos três (os primeiros) atos que o Estado de Israel vem cometendo contra os palestinos em Gaza, e há quem diga que todos os cinco estão ocorrendo enquanto você lê este post.

Além disso, a comparação do sionismo (do sionismo revisionista) com práticas nazi-fascistas não é novidade, como alguns comentadores políticos progressistas têm feito circular nas redes sociais. Albert Einstein e Hanna Arendt já denunciavam tal aproximação desde 1948, quando enviaram uma carta assinada juntamente com outros judeus estadunidenses ao editor do jornal The New York Times. Outro que faz tal aproximação é o historiador Norman G. Finkelstein, em seu A indústria do holocausto, onde defende que o sionismo fez uso do Holocausto a fim de potencializar a causa judaica e a criação de um estado para os judeus na Palestina.

Lula não improvisou e sua fala é certeira ao definir as práticas deste governo de Israel tais como elas de fato são, isto é, genocidas. Com esta fala, Lula expõe a posição brasileira (uma das dez principais economias do mundo) a seus pares, chamando atenção para a necessidade de um cessar fogo imediato. Trata-se de um posicionamento político internacional autônomo e altivo, não subserviente aos interesses de outras potências mundiais, especialmente os Estados Unidos. Ao fazer sua fala de forma tão corajosa, Lula deu nome e sobrenome ao monstro, colocando um espelho diante da fera. Por óbvio, esta parece não gostar do que vê ali refletido, pois faz e vende uma ideia muito diferente de si mesmo.

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Lula, a FISESP e a maldade sem fim

A Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP) afirmou em nota neste domingo (18/02) que “é uma maldade sem fim” acusar de genocida as práticas de Israel na Faixa de Gaza. Na avaliação dessa instituição, o assassinato indiscriminado de quase trinta mil pessoas, majoritariamente crianças e mulheres, trata-se de “legítima defesa do Estado de Israel”.

A nota foi publicada em reação a uma fala do presidente Luís Inácio Lula da Silva que, buscando a atenção da comunidade internacional para interrupção desse verdadeiro massacre que ocorre em Gaza, comparou as ações de Israel com as de Hitler, quando este decidiu assassinar os judeus.

Ainda que Lula possa ter exagerado em sua metáfora, acertou em acusar o atual governo do Estado de Israel de promover uma matança genocida contra os palestinos. Faz meses que Lula vem buscando mobilizar outros líderes internacionais a fim de forçar as negociações por um cessar fogo imediato. Este é mais um episódio nesse sentido, enfatizando a falta de justificativa para a carnificina de milhares de mulheres e crianças inocentes a não ser a vontade política dos tomadores de decisão de Israel e de seus aliados.

Não é demais recordar que o mesmo Brasil de Lula prontamente reconheceu como terroristas os atos praticados pelo Hamas, entretanto sua diplomacia tem reforçado a posição de que a resolução deste conflito não passa pelo morticínio dos palestinos, especialmente de suas crianças, maiores vítimas das ações israelenses. A via proposta pelo Itamaraty, portanto, é a da negociação e não a da guerra. Há autoridades jurídicas e analistas políticos, porém, que interpretam tal posição como o fim de uma política de neutralidade do Brasil. Ao contrário disso, parece-me que o Brasil volta ao curso de uma política externa altiva, assertiva e não subserviente aos interesses de grandes potências.

Neste tabuleiro macabro, contudo, o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, depende da extensão da guerra para permanecer no poder após uma gestão reconhecidamente fracassada pelos próprios israelenses, que já o acusaram como o principal responsável pelo sucesso da ação terrorista do Hamas em outubro do ano passado.

Dessa forma, se voltarmos à nota publicada pela FISESP neste domingo, observamos que o que ela acusa de “maldade sem fim” é, na verdade, o posicionamento de uma autoridade internacional em favor da interrupção de um massacre iniciado em outubro de 2023 que já ceifou a vida de quase trinta mil pessoas. Nessa mesma nota, entretanto, a FISESP justifica a sanha assassina (para não dizer genocida) promovida pelo Estado de Israel como uma reação legítima pautada em seu direito de auto-defesa. Olhando bem essas duas posições, a meu ver, não fica difícil identificar quem está praticando uma “maldade sem fim”, fica?

Por fim, cumpre observar que o posicionamento de Lula está alinhado com o de pensadores progressistas como o filósofo e sociólogo francês, de origem judaica, Edgar Morin (102), que em sua crítica contundente e corajosa nos chama a testemunhar contra o massacre israelense e o silêncio do mundo.

Edgar Morin, filósofo e sociólogo francês sobre o massacre israelense em Gaza

O Brasil de Lula, e de outras dezenas de milhões de progressistas, se recusa a silenciar diante do horror e da morte. Acusamos este governo do Estado de Israel de genocida!

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Sobre a naturalização da desigualdade social

Um muro separa a comunidade de Paraisópolis dos condomínios de luxo do bairro do Morumbi em São Paulo. Foto: Tuca Vieira / Reprodução

Dentre os discursos ideológicos encampados por liberais de todas as matizes um dos mais perversos é aquele que busca naturalizar a desigualdade social e, por conseguinte, a ocorrência da fome e da miséria neste mundo em que vivemos. O caso mais recente (e estarrecedor) deste discurso apareceu nas falas de uma DJ e comentarista da JP, no canal do Monark. A jovem, em questão, chama-se Pietra Bertolazzi, que foi acompanhada em sua perversão por um colega, comentarista da mesma rádio, que parece se chamar Marco Antônio, de codinome Superman. Abaixo um video contendo cortes do programa comentado pelo pessoal do Meteoro (Ana e Álvaro).

Ora, os cortes deixam claro que para Pietra e Superman a desigualdade social é algo natural, o que é prontamente aceito por Monark, que repete a sentença como se fosse um mantra ao longo de todo o vídeo. Para os três jovens, portanto, é possível encontrar, mesmo na natureza, a “desigualdade social”, o que explicaria a “diversidade de hierarquias” no mundo animal e vegetal, como pontuou Monark.

De cara, ao ovirmos os participantes do podcast, percebe-se claramente uma falha na formação de todas essas pessoas, que mal dominam conteúdos ministrados no Ensino Fundamental II e Médio da rede pública de ensino. Como professor, posso afirmar tranquilamente isso, pois já trabalhei com os currículos do 6 ao 9 ano do EF-II e dos três anos do EM.

Vejam bem, não é preciso ser nenhum gênio para saber que o termo “social” em “desigualde social” refere-se às sociedades humanas. Desde os tempos de Aristóteles, que já ensinava que o Homem é um animal social, não cabe espaço para dúvidas de que as sociedades são construções humanas, que as organizam segundo os critérios que melhor lhe convém nas distintas épocas. As sociedades, portanto, não são naturais, mas sim criaturas da humanidade. Se há desigualdade em uma sociedade, isto se dá em razão do modo como elas organizam os seus modos de produção e distribuição. A depender de como estes são organizados, haverá mais ou menos acúmulo nas mãos de algumas poucas pessoas em detrimento da grande maioria, como no caso do modo de produção capitalista. Enfim, logo se vê que bastaria essa base de conhecimento para não embarcar em toda a baboseira liberal que Bertolazzi e o Superman ficaram falando minutos a fio no programa do monarca não esclarecido.

Do lado contrário deste discurso ideológico, diversos pesquisadores no campo das Ciências Sociais, da Geografia, da Filosofia e da História vêm insistindo, desde o século XIX, em explicar a fome e a miséria como um produto do modo como nós organizamos o trabalho e, por fim, a sociedade. No documentário “Encontro com Milton Santos (Ou o mundo global do lado de cá)”, o professor afirma claramente, como se fosse uma questão de matemática, que a existência de famélicos e miseráveis neste planeta é, puramente, uma questão de escolha, uma vez que produzimos alimentos suficientes para sustentar toda a população mundial. A fome e a miséria, portanto, não vêm do céu, como castigo, e nem surge do nada. Elas são criações de uma humanidade perversa que busca, acima de tudo, o acúmulo individual de riquezas em um planeta com recursos finitos. Abaixo, trecho do documentário de Silvio Tendler, Encontro com Milton Santos (ou o mundo global visto do lado de cá), no qual ele trata do problema da fome mundial como uma questão de escolha.

Além de Milton Santos, gostaria de concluir esta postagem-desabafo relembrando o pensamento vivo de Ailton Krenak, no qual, com muita alegria, ele afirma a desigualdade social como o produto mais característico desta sociedade em que vivemos ao lembrar do exemplo vivo das muitas sociedades ao redor do planeta que se organizaram, e ainda se organizam, de modo em que simplesmente não há espaço para a fome e para a miséria entre os homens e mulheres. Bertolazzi, certamente, carece de conviver e aprender com os povos originários do Brasil e de outros lugares do mundo para, quem sabe assim, aprender uma lição de humanidade. Por enquanto ela tem dado razão ao epíteto que lhe deram de BertoNazi.

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O Jair que há em nós

por Ivann Lago, publicado originalmente em seu blog em 28 fev. 2020

BOLSONARO E O BOLSONARISMO COMO EXPRESSÃO DO BRASILEIRO MÉDIO

O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. (…)

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo?

Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política. É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo (RS). Atua nas áreas de Teoria Política, Instituições Políticas e Regimes de Governo, Cultura e Comportamento Político, Partidos e Eleições. É professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Políticas Públicas da UFFS. Possui experiência em Marketing Político e Eleitoral, Planejamento Governamental, Políticas Públicas e Desenvolvimento, tendo atuado com consultorias a diversos órgãos governamentais, partidos políticos e candidatos.

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HÁ UM HISTORICÍDIO EM CURSO NO PAÍS

Por diversos autores, ver lista no fim do post. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 03 set. 2022

Nos 200 anos da Independência, objetiva-se falsificar a história ou até mesmo expurgá-la

É comum que professores de história ouçam em conversas casuais frases como: “Eu gosto muito de história!”, “Os jovens precisam conhecer mais a nossa história!” ou “O brasileiro não tem memória!”… Quem nunca?

outros manifestam perplexidade ao lerem por aí que o nazismo era de esquerda ou que a ditadura militar brasileira foi uma “revolução democrática”(!). Eles, os perplexos, ainda lembrarão a importância de saber história “para que os erros não se repitam”. A verdade é que certas pessoas odeiam a história e o seu ensino. Fosse diferente, não estaríamos assistindo inertes ao “historicídio”, com o perdão do neologismo, que está em curso em São Paulo e no Brasil.

Recentemente esta Folha noticiou que “Aulas de história e geografia em SP poderão ter professor sem formação na área” (22/6). Nós, professores, pais e estudantes da rede pública estadual, fomos surpreendidos com essa resolução da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo que propõe resolver a falta de professores, diversas vezes denunciada pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu), com mais precarização.

Com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) homologada em 2018 no ensino médio, a história perdeu seu lugar como disciplina escolar no currículo, que ocupava desde a primeira metade do século 19!

A disciplina foi diluída em uma miscelânea “4 em 1” (história, geografia, sociologia e filosofia), que é de tudo um pouco, e de um pouco, nada. Como se todas essas disciplinas não tivessem suas especificidades e um único professor híbrido resolvesse a questão.

Destaque-se que esse agrupamento por área pasteurizou conteúdos e reduziu o número de professores, dando lugar para componentes curriculares alienígenas à cultura escolar, como “empreendedorismo e projeto de vida”, que não têm lastro acadêmico, pois não se constituem como cursos de graduação e, portanto, inexistem professores licenciados.

A lei 14.038/2020, que regulamenta a profissão de historiador, informa em seu artigo 4º que uma das atribuições desse profissional é exercer o “magistério da disciplina de história nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio”. Uma ilegalidade ronda a escola pública brasileira! Ou simplesmente a letra da lei garante um direito inócuo?

Como se não bastasse, através da resolução 02/2019, o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu uma mudança nos cursos de formação de professores que tem sido amplamente criticada.

Essa resolução propõe a diminuição da carga horária dos conteúdos específicos em favor de genéricos, formando professores num praticismo raso. Sua implantação despreza a autonomia universitária, inúmeras experiências curriculares em andamento e projetos de cursos consolidados.

É um desastre cognitivo o que está em curso, um verdadeiro “historicídio” promovido por negacionistas que desejam falsificar a história. Mas também produzido por aqueles que desejam, simplesmente, se livrar dela expurgando-a do seu estudo escolar. Excluir a história do currículo é apagar o passado e ameaçar o futuro. Precarizar a formação docente favorece a deformação e a desinformação. Não sendo revertidas essas medidas, a cidadania ficará privada do mais básico conhecimento de nossas histórias. Será esta a nossa contribuição ao futuro no bicentenário da Independência?

Antonio Simplicio de Almeida Neto
Departamento de História da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

Paulo Eduardo Mello
Departamento de História da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa)

Valdei Araujo
Associação Nacional de História – Brasil e Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto)

Paulo Eduardo Teixeira
Associação Nacional de História – São Paulo e Unesp (Universidade Estadual Paulista)

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Sobre o feminicídio e a violência contra a mulher em “Os sofrimentos do jovem Werther”

Contém spoilers

De princípio devo dizer que não gostei muito da história de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Johann Wolfgang Goethe (publicado originalmente em 1774). Antes de saírem atirando, percebam! Não falei que o livro não presta ou que não é bom, apenas afirmei que não gostei de sua história. Se fosse resumi-lo em uma única sentença, diria que o jovem Werther foi incapaz de sentir a dor de um não, para usar um trecho de uma música que gosto muito do GRAM (antes do fim).

Para irmos direto ao ponto, a trama do livro gira em torno de um amor não correspondido do jovem Werther que, após ser rejeitado por Charlotte, adoece de paixão e passa a persegui-la. Noiva de Albert, Lotte decide ser leal ao seu compromisso e acaba se casando, mas sem romper a amizade que cultivava com o jovem Werther. Cada vez mais obcecado por Lotte, e se aprofundando em uma crise, Werther continua a visitá-la, forçando uma relação que era claramente indesejada pela mulher. Em dado momento, se aproveita de uma situação para roubar alguns beijos de Lotte e, ao ser duramente repelido por esta, Wether se retira, humilhado, e decide suicidar-se. Para tanto, pede uma pistola emprestada ao marido de Lotte, Albert, e envia uma carta à sua amada responsabilizando-a pelo desfecho dessa trágica história.

Revelador de uma mente doentia – e de um ato de profunda covardia em relação a Lotte – o ato final deste livro retrata bem o comportamento abusivo de muitos homens que, inaptos para sentirem a dor de uma rejeição, revelam-se bastante capazes de matar e morrer. Não se pode esquecer que, antes de tirar sua própria vida, Werther se identificou com um homem preso em flagrante após cometer um homicídio passional, tentando livrá-lo da cadeia com toda sua força e às custas de sua reputação.

Por óbvio, denunciar o feminicídio ou a violência contra a mulher não eram preocupações que estavam na mente de Goethe ao escrever sua obra. Tais questões, como se sabe, são mais recentes e não devemos cobrá-las de um autor cujo texto foi concluído ainda no século XVIII. No entanto, nós, seus leitores do século XXI, devemos refleti-la à luz das questões e preocupações do presente. Não para julgar o autor e sua obra, mas para fazer uma leitura crítica desta última, buscando compreender suas implicações na sociedade desde que foi publicada pela primeira vez e como, desde então, ela ajudou a construir um repertório macabro usado para justificar ou reforçar práticas violentas de homens contra as mulheres e contra si mesmos. Esta reflexão, sim, me parece urgente, em um mundo onde a violência contra a mulher se mantém em níveis elevados.

Meu desencanto pela obra, portanto, diz respeito justamente à essa normalização da violência contra a mulher, tão presente em nossos dias. Penso que não pode haver beleza numa história cujo personagem principal é um homem obcecado por uma mulher e que, ao ser rejeitado por esta, decide tirar sua própria vida, responsabilizando-a por sua morte, numa tentativa doentia e covarde de causar-lhe um último sofrimento. Ainda que muito bem escrita, essa leitura me causou muito mais repulsa do que encantamento, se assemelhando mais ao subgênero do “terror psicológico”, pelo pavor em que me vi afligido no correr da leitura.

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[MILTON SANTOS] O tempo nas cidades

Este texto foi extraído a partir da transcrição da conferência do professor Milton Santos na mesa-redonda “O tempo na Filosofia e na História”, promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989.

A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001.


Milton Santos em frente ao prédio de Geografia/História na FFLCH-USP.

O texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar (espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós-graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da idéia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realização da História, de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.

A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se passa e eventualmente do vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.

O tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo convergem e divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.

Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação.

Nesse momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como seqüência – o transcurso – o tempo como raio de operações – o espaço – e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações, que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.

Na cidade atual, essa idéia de periodização é ainda presente; é presente nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que são também representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.

Ora, essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.

Esse momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Um sistema de cartas coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisão, permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.

Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e reapareceram agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.

Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço.

Essa temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível através desse trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do tempo, o que permite, por consegüinte, nesse espaço tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.

É esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam aos agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, criam-se condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.

Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.


Milton Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em 24 de junho de 2001.

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O feriado de 7 de setembro, dia da Independência do Brasil

Matéria jornalística produzida e divulgada pela Rede Brasil sobre o feriado do dia 7 de setembro, com participação do historiador Rogério Beier.

A reportagem é de Carla Mendrot, imagens de Roney Teminski, produção de Douglas Avenia e edição de Bruno Aguiar e Danilo Matos.

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A sexta extinção: decepcionante!

Capa de A Sexta Extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert.

Depois de receber a indicação de muitos colegas, fui ler A sexta extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert. Sendo bem sincero, achei a obra bastante decepcionante. Daria apenas 3 de 5 estrelinhas, sendo bastante generoso.

O livro é bem escrito, a autora domina muito bem o assunto e faz bem o trabalho de divulgação científica. Pra quem não trabalha ou estuda no campo das ciências biológicas, ciências da terra e história das ciências é uma excelente leitura, pois oferece diversos momentos de aprendizagem. O principal problema deste livro, porém, é que a autora se nega a tocar naquela que deveria ser a questão central de sua obra: o que está por trás da sexta extinção em massa que estamos testemunhando, sobretudo, nos últimos duzentos e cinquenta anos? O que podemos fazer para evitá-la ou, dito de forma krenakiana, quais são nossas ideias para adiar o fim do mundo?

Oras, nas mais de trezentas páginas da obra, Kolbert não relaciona, em momento algum, os diferentes processos de extinção em massa que ela descreve tão bem com o desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, em toda a obra ela não usa a palavra capitalismo. Nesse sentido, para continuarmos a comparação da obra dela com a de Krenak, esta última nos dá uma noção muito mais acurada do problema em que nos temos e de como nós mesmos poderíamos nos encaminhar para resolvê-lo do que o esforçado, mas decepcionante trabalho de Kolbert.

Para não me estender demais neste breve comentário, creio que o mais decepcionante é a visão limitada da autora de que a salvação dos humanos da extinção causada por si próprios não passa por uma outra forma de imaginar a humanidade, como diz Krenak. Não passa por novas formas de nos organizarmos socialmente ou de reproduzir os nossos meios de vida, mas sim pela engenhosidade de criar soluções para os problemas que nós mesmos criamos com a super-exploração dos homens e de toda a Terra (incluindo flora e fauna). Seria como se tivéssemos nossos pulmões tomados por uma doença causada pelo vício do tabagismo e, em vez de propor que parássemos imediatamente de fumar e pensássemos em outras formas de viver sem nos envenenarmos, ela propusesse que continuássemos fumando e esperássemos que os cientistas desenvolvessem medicamentos ou tratamentos invasivos que minorassem os efeitos nocivos dos cigarros. Não por outra razão, penso ser muito mais emancipador ler a obra de nosso Ailton Krenak do que os livros de Kolbert.

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Timothy Snyder: sobre a tirania. Um panfleto em favor do neoliberalismo.

Foto: Capa de Sobre a tirania, de Timothy Snyder.

Lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2017, Sobre a tirania veio à público como resultado de um angustiante desabafo feito nas redes sociais, pelo historiador Timothy Snyder, tão logo foi confirmada a vitória de Donald Trump à presidência dos EUA em novembro de 2016. Seu lançamento em versão impressa (com traduções para diversas línguas) seria, a princípio, uma iniciativa que busca explicar a um público muito mais amplo como até mesmo democracias mais estáveis, como os EUA, podem acabar descambando para aventuras autoritárias.

Com graduação em História pela Universidade de Brrown (EUA), Snyder doutorou-se em História Moderna na Universidade de Oxford (Reino Unido) e rapidamente se tornou acadêmico no Centro de Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior nos EUA. Atualmente é professor de história em Yale, onde se dedica, sobretudo, ao estudo da história contemporânea, com destaque para os países do leste europeu.

De início, pelo subtítulo da obra, nota-se que a iniciativa do autor remete à necessidade de buscarmos na história recente da humanidade, mais especificamente, aquela vivida durante o século XX, lições para um presente no qual a tirania se apresenta como uma ameaça real. O autor, portanto, adota como guia norteador de seu trabalho uma antiga ideia de história, tornada famosa pelo orador e político romano Cícero, segundo a qual a História é mestra da vida (historia est magistra vitae), ou seja, a História deve nos servir como guia para evitarmos os erros do passado. Tanto é assim que as primeiras palavras de seu livro são: “A história não se repete, mas ensina” (p. 11).

Ainda que há muitas décadas os historiadores já venham criticando amplamente esta concepção de história, já bastante arraigada ao senso comum, como bem apontou o historiador Leandro Karnal, o principal problema da obra de Snyder não é este. O que realmente coloca todo seu trabalho a perder é o modo alarmista como ele recorre ao passado a fim de aterrorizar seus leitores para, logo em seguida, apresentar uma solução: o mundo é um lugar muito melhor quando controlado por democracias liberais. Por democracias liberais, entendam: liberalismo de cunho conservador estadunidense (na linha do partido Republicano – não Trump, mas John McCain).

De modo geral, Timothy Snyder busca evidenciar que tudo aquilo que se afasta do centro vai se tornando pernicioso, autoritário e tirânico quanto mais vai se aproximando dos extremos, seja pela ala esquerda ou pela direita. Ao fim da leitura do prólogo, de quatro páginas, já é possível traçar um esquema nada animador do livro, representado na imagem abaixo:

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 15.

Segundo Snyder, a história política do século XX foi marcada, sobretudo, pelas ameaças totalitárias do comunismo, de um lado, e do nazifascismo, de outro. O autor não vê problema algum em correlacionar comunismo (um genérico empregado para se referir ao stalinismo) e nazifascismo. Ao contrário, a leitura de sua obra deixa claro como estes regimes compartilham a mesma natureza perniciosa e anti-democrática, estando separados, apenas, por sua posição no espectro político: um na extrema esquerda, outro na extrema direita. A ideia parece ser justamente reforçar que tudo vai ficando mais autoritário conforme se distancia do centro.

O professor de Yale faz questão de ressaltar, a cada capítulo de sua obra, como comunistas, nazistas e fascistas representaram uma grande ameaça à democracia liberal durante o século XX e, até mesmo, mantém a narrativa para o período que sucedeu o desmantelamento da URSS (1989-1992). Dessa forma, reforça o argumento de que as ideias autoritárias legadas ao século XXI, tanto pelo nazifascismo quanto pelo comunismo, seguem influenciando as pessoas, sobretudo a partir da virada do século, com o desenvolvimento tecnológico verificado desde então.

Para reforçar sua argumentação, vai lembrando no correr dos capítulos a ascensão de partidos, movimentos e, até mesmo, a chegada legítima ao poder de governos autoritários ao redor do mundo (Itália, Áustria, Ucrânia, Hungria, Polônia, Brexit, EUA, Brasil, etc.). Tais exemplos são poderosos aliados na busca de persuadir os leitores de que a a atual onda de autoritarismo vem, de fato, de partidos políticos da extrema direita europeia, mas que esta é decorrente da continuidade de práticas cujas origens remontam os regimes comunistas da URSS e de suas aliadas no leste europeu. Casos marcantes dos atuais governos de Hungria e Polônia, para não falar da própria Rússia.

A conclusão dessa ideia leva-o a propor que, se nem mesmo os EUA, a quem muitos têm como o “farol da liberdade”, estão livres da influência perniciosa de sucumbir ao autoritarismo que estamos vivenciando, da qual a eleição de Trump é mero reflexo, devemos, então, estar sempre atentos aos “exemplos da história”, como fizeram os “Pais Fundadores da democracia estadunidense”, para interromper o império da tirania. E o que a história do século XX tem a nos dizer, segundo Snyder, é que a democracia liberal está em risco e que devemos nos manter atentos o tempo todo para protegê-la.

Nesse sentido, a melhor forma de defender a democracia é retrocedermos uns passos para manter as coisas como eram antes do surgimento dessa onda autoritária, isto é, logo após o fim da Guerra Fria ou, se preferir, o desmantelamento da URSS. Proteger a democracia significa se afastar dos extremos no espectro político e manter o foco nas reformas que democratizaram o mundo ocidental, isto é, nas políticas liberais reformistas (entenda-se neoliberais) tocadas durante as últimas quatro décadas.

Portanto, as vinte lições oferecidas por Timothy Snyder em seu livrinho são, na verdade, um guia ao leitor para medir o autoritarismo no cotidiano, isto é, um manual que nos ajuda a identificar atitudes ou ações de grupos autoritários em nosso dia-a-dia e de como esses autoritarismo vai se infiltrando, pouco a pouco, e envenenando a vida política das sociedades no sentido de promover o ódio e a desconfiança mútua, polarizando as opiniões. A estrutura de cada capítulo é praticamente a mesma:

  1. Indicação de crueldades e vilanias realizadas por pessoas e/ou grupos ligados aos regimes nazifascistas ou com o stalinismo;
  2. Busca de similaridades desses comportamentos com contextos atuais nos EUA e na Europa;
  3. Exemplo ou pensamento de um intelectual ou político liberal-conservador (social-democrata, democrata cristão) como alternativa razoável para a manutenção da democracia.

Václav Havel, dissidente comunista e ex-presidente da antiga Tchecoslováquia, irá aparecer como a maior referência do livro, sendo citado em diversos capítulos. Hannah Arendt também aparece com alguma frequência, mas sempre deslocada dos bons exemplos. Referências importantes são outros dissidentes, intelectuais ou jornalistas nascidos na União Soviética, ou em ex-repúblicas socialistas do leste europeu, tais como Leônidas Donskis (Lituânia), Leszek Kolakowski (Polônia), Peter Pomerantsev (URSS).

Por fim, cumpre destacar o panfletarismo do autor, que chega a pontos realmente embaraçosos, como na lição do capítulo onze (investigue). Aqui o autor busca apontar a importância de que as pessoas sempre busquem investigar a informação que estão recebendo. Seria, de fato, de grande ajuda relembrar a importância da “investigação” e da veracidade dos fatos, entretanto Snyder o faz avalizando apenas a informação produzida e divulgada por jornalistas e seus meios de comunicações impressos (quanto maiores, melhores). Defende uma posição de que todo jornalismo de qualidade deve ser muito bem pago e de que não existe esse negócio de “informação gratuita”. Quem quiser informação de qualidade, deve estar disposto a financiá-la. Além disso, Snyder não trata da produção e disseminação do conhecimento científico e, pior, deixa evidente que a democratização dos meios de comunicação é, para ele, sinônimo de autoritarismo e perda de qualidade.

Outro exemplo que empobrece a obra se encontra na vigésima e última lição do livro, onde o Snyder se agarra a um clichê macabro para afirmar que alguns de nós devem estar dispostos a morrer pela liberdade para que todos não pereçam sob a tirania. Para além da miopia do autor de não conseguir enxergar outra forma de organização social não tirânica que não a democracia liberal, faltou também explicar a qual liberdade devemos estar dispostos a dar nossa vida: seria a liberdade de mercado? Se for, não contem comigo!

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 111.

Fica a triste sensação de um livro que poderia ter sido um melhor instrumento de reflexão sobre a ascensão do autoritarismo ao redor do mundo, mas que fracassou grandemente ao assumir a forma de um vergonhoso panfleto em favor do neoliberalismo. Talvez tenha sido esperar demais de um livro que nasceu de um mero desabafo nas redes sociais, fruto do ressentimento e da frustração de quem via, atônito, Donald Trump subir ao poder nos EUA. Realmente, dói muito quando acontece em nosso próprio quintal. Entretanto, é natural que tenhamos expectativas altas, mesmo em casos como estes, de desabafo e frustração, quando o autor é um intelectual tão bem formado e titular em uma universidade tão prestigiosa como Yale. Mas nem sempre, como no jornalismo, o tamanho e o prestígio das instituições conseguem dar garantias certas da qualidade de tudo aquilo que irá sair de suas prensas. Uma lástima!

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