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A sexta extinção: decepcionante!

Capa de A Sexta Extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert.

Depois de receber a indicação de muitos colegas, fui ler A sexta extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert. Sendo bem sincero, achei a obra bastante decepcionante. Daria apenas 3 de 5 estrelinhas, sendo bastante generoso.

O livro é bem escrito, a autora domina muito bem o assunto e faz bem o trabalho de divulgação científica. Pra quem não trabalha ou estuda no campo das ciências biológicas, ciências da terra e história das ciências é uma excelente leitura, pois oferece diversos momentos de aprendizagem. O principal problema deste livro, porém, é que a autora se nega a tocar naquela que deveria ser a questão central de sua obra: o que está por trás da sexta extinção em massa que estamos testemunhando, sobretudo, nos últimos duzentos e cinquenta anos? O que podemos fazer para evitá-la ou, dito de forma krenakiana, quais são nossas ideias para adiar o fim do mundo?

Oras, nas mais de trezentas páginas da obra, Kolbert não relaciona, em momento algum, os diferentes processos de extinção em massa que ela descreve tão bem com o desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, em toda a obra ela não usa a palavra capitalismo. Nesse sentido, para continuarmos a comparação da obra dela com a de Krenak, esta última nos dá uma noção muito mais acurada do problema em que nos temos e de como nós mesmos poderíamos nos encaminhar para resolvê-lo do que o esforçado, mas decepcionante trabalho de Kolbert.

Para não me estender demais neste breve comentário, creio que o mais decepcionante é a visão limitada da autora de que a salvação dos humanos da extinção causada por si próprios não passa por uma outra forma de imaginar a humanidade, como diz Krenak. Não passa por novas formas de nos organizarmos socialmente ou de reproduzir os nossos meios de vida, mas sim pela engenhosidade de criar soluções para os problemas que nós mesmos criamos com a super-exploração dos homens e de toda a Terra (incluindo flora e fauna). Seria como se tivéssemos nossos pulmões tomados por uma doença causada pelo vício do tabagismo e, em vez de propor que parássemos imediatamente de fumar e pensássemos em outras formas de viver sem nos envenenarmos, ela propusesse que continuássemos fumando e esperássemos que os cientistas desenvolvessem medicamentos ou tratamentos invasivos que minorassem os efeitos nocivos dos cigarros. Não por outra razão, penso ser muito mais emancipador ler a obra de nosso Ailton Krenak do que os livros de Kolbert.

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Ray Bradbury e o retorno à oralidade em Fahrenheit 451

Capa da edição de luxo de Fahrenheit 451 lançado em 2020 pelo selo Biblioteca Azul da Globo.

Depois de mais de nove meses de quarentena por conta da pandemia da COVID-19, uma das atividades encontradas para manter a sanidade mental foi dedicar aproximadamente 60 a 90 minutos por dia à leitura de obras de literatura. Considerando minhas preferências literárias (e o próprio contexto em que estamos imersos), acabei lendo ou relendo muitas obras de ficção especulativa com distopias tenebrosas. Dentre elas quero destacar algumas bastante impactantes, todas mais do que recomendadas:

  • Nós, de Ievgeni Zamiátin (1920);
  • Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932);
  • Piano Mecânico, de Kurt Vonnegut (1952);
  • Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953);
  • Andróides sonham com ovelhas elétricas, de Philip K. Dick (1968);
  • O imitador de homens, de Walter Tevis (1980).

Quando se lê tanta distopia em um prazo tão curto de tempo (a maioria foi lida nos últimos três meses), logo vamos percebendo que os autores recorrem a algumas fórmulas, que buscam em seus antecessores, renovando-as sob formas e aspectos distintos, como os diferentes tipos de Estado totalitário; as muitas drogas empregadas como instrumento de controle social; as variadas formas de dar fim à família; os meios encontrados para controlar os corpos e, até mesmo, a atividade sexual de seus habitantes, dentre outros. Enfim, este longo preâmbulo serve para dizer que dentre todas as obras mencionadas acima aquela que mais me assustou foi a de Ray Bradbury. Talvez isso se dê porque identifico na sociedade atual muito daquilo que o autor imaginou como distópico em 1953:

  • uma sociedade em que os “bombeiros” incendiários são desnecessários, pois nós mesmos deixamos os livros de lado em troca de entretenimento fútil, em troca de likes e emoticons;
  • uma sociedade hedonista e ególatra em busca de felicidade a qualquer preço, mesmo que seja em troca da liberdade;
  • uma sociedade que ruma rapidamente a um totalitarismo no qual a indústria cultural e a sociedade de consumo são os poderosos ditadores;
  • uma sociedade composta por uma população cuja maioria se ressente de seus intelectuais e estes, por sua vez, desprezam esta população completamente por estarem engalfinhando-se uns contra os outros;
  • uma sociedade que menospreza as humanidades e vai extinguindo, um após outro, cursos de filosofia, de sociologia, de psicologia, de história, de geografia, de línguas e, até mesmo, de gramática e produção textual.
O escritor estadunidense Ray Bradbury (1920-2012), autor de Fahrenheit 451. Foto: V. Tony Hauser/Divulgação.

Cada nova leitura da obra de Bradbury provoca um novo assombro, um novo desespero e uma dúvida paralisante: o que devemos fazer?

Eu não sei! Não tenho a menor ideia! Do modo como caminhamos, parece-me que, tal como sucedeu a Guy Montag, nos restará apenas uma única solução: a de memorizarmos um ou alguns livros e convertermo-nos em obras ambulantes. O temor de Bradbury quanto ao futuro próximo não parece infundado, muito pelo contrário. Cada vez mais me convenço de que estamos caminhando a passos acelerados para um fim trágico e que, se tivermos alguma sorte, os remanescentes da hecatombe terão a oportunidade de um novo começo, qual Fêxix, renascendo das cinzas. No entanto, o conhecimento produzido pelos humanos nos últimos milênios seria transmitido de geração a geração tal como se fazia no período pré-homérico, isto é, através da tradição oral. Será? A ver o que o tempo nos diz, mas estou profundamente pessimista.

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Miguel não caiu, Miguel foi empurrado

por Caio Possati Campos
publicado originalmente no blog do Juca Kfouri em 5 jun. 2020

Se um coração bate aí dentro, não é pra você continuar bem ou indiferente depois de saber o que aconteceu com Miguel, menino de 5 anos que morreu ao cair do nono andar de um prédio no Recife,enquanto procurava pela sua mãe, Mirdes.

E já nem era pra estar depois das mortes de Ágatha e do João Pedro, também crianças que perderam a vida depois de serem atingidas por disparos de armas policiais, igualmente responsáveis por assassinarem o músico, Evaldo Souza, e o catador de material reciclado, Luciano Macedo, com “acidentais” 80 tiros no ano passado – pra não dizer tantos outros casos.

Só que Miguel não morreu pela brutalidade da força policial. E, acreditem, não foi pela negligência da patroa de sua mãe, Sari Côrte Real, que não teve a paciência para cuidar do filho de sua funcionária por alguns minutos e, assim, conduzi-lo para o caminho que destinou à morte da criança. Porque não foi um caso isolado. Foi uma coisa montada, construída. Miguel morreu pela existência de uma estrutura no Brasil que faz uma mulher negra, quase que na obrigatoriedade de uma lei, passear com o cachorro da patroa, enquanto a patroa livra-se da responsabilidade de cuidar filho da mulher negra com a mesma indiferença que descartamos um objeto no lixo.

Por uma estrutura que, mesmo em tempos de pandemia e isolamento social necessário, obrigou Mirdes a continuar limpando o chão dos patrões, mesmo depois do marido de Sari, o prefeito de Tamandaré, Sergio Hacker (PSB), ter afirmado que testara positivo para a Covid-19.

Por uma estrutura que obrigou Mirdes a levar o filho para o trabalho porque as creches e escolas estão fechadas e ela não teria com quem deixá-lo.

Miguel morreu porque, no Brasil, 20 mil reais é o preço que uma pessoa rica paga para responder em liberdade depois de tirar o futuro de uma vida negra.

Miguel caiu do nono andar porque a burguesia despreza as classes pobres. Não as toca. É indiferente, tira sarro e é insensível às vidas que não pertencem ao mundo dela e que não circulam nos mesmos espaços, senão as que estão ali para servi-la.

Uma burguesia que ama se autopromover como humanitária com doações e trabalhos voluntários, mas que torce o nariz para programas sociais do Estado e não vota em governos que propõem planos para diminuir a miséria, a pobreza e a fome.

Não são todos assim, obviamente.

Mas sei que existem pessoas que funcionam desse jeito porque cresci, vivi, vivo e convivo nos biomas das classes média e rica. Já dei risada, joguei bola, estudei, trabalhei e sentei na mesma mesa que elas para comer, e conheci muita gente parecida com a Sardi que minha cabeça construiu.

Só que mesmo vivendo sempre nesse ambiente, não tenho todas as respostas para as perguntas que eu comecei a fazer de uns anos pra cá. E uma delas é: por que os ricos, no bálsamo de uma vida privilegiada e confortável, têm tanto ódio?

Ódio a quê? E ódio a quem?

Por uma criança de 5 anos que, dentro de um repertório de linguagem ainda em construção, só tentava expressar o desejo de estar perto de sua mãe?

Eu não sei.

E um, ou vários deles, empurrou Miguel.

Mas sei que esse ódio, racista e muito brasileiro, existe e tem muitos braços – na polícia, na presidência, na sociedade civil.

#JustiçaPorMiguel


*Caio Possati Campos é psicólogo pela USP e estudante jornalismo na PUC de Campinas.

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Kenneth Maxwell fala da importância de estudar e ensinar história

O Hum Historiador reproduz abaixo depoimento dado pelo historiador britânico Kenneth Maxwell ao portal Festival de História sobre a importância de se estudar e ensinar História.

POR QUE ENSINAR HISTÒRIA?
por Kenneth Maxwell | publicado originalmente no portal fHist

“Ouvimos com frequência que não conhecer o passado é arriscar repetir os mesmos erros de antes. Se ao menos isso fosse verdade… Nós conhecemos bem as consequências da ignorância da história. As evidências estão ao nosso redor. A invasão do Afeganistão, por exemplo, na qual a arrogância e o desconhecimento da história de George W. Bush (junto com Tony Blair) fizeram com que se repetisse o desastre das invasões britânicas do século XIX, assim como o da invasão soviética no século seguinte. O exemplo do Iraque chega a ser ainda pior.

Contudo, conhecer a história pode não ser de grande ajuda para alguns. Winston Churchill levou seu país à vitória na Segunda Guerra, e era um grande conhecedor de história. Mas também era um imperialista nostálgico, sendo rejeitado pelo eleitorado britânico depois do fim da guerra, e sucedido pelo líder nem um pouco carismático do reformista Labour Party, Clement Attlee. Minha avó, que era unitarista, socialista e uma pioneira na luta pelos direitos das mulheres, não se surpreendera com o resultado das eleições. Ela nunca perdoara Churchill pelos ataques às sufragistas que lutavam pelo direito ao voto antes da Primeira Guerra. Era um evento histórico bem vívido em sua memória, e que depunha contra os méritos de Churchill (ou a falta deles) nas discussões que travava com o meu pai, um conservador convicto.

No Brasil, a necessidade de conhecer a própria história é urgente. Mesmo com a interpretação de sua história sendo tão complexa, multifacetada e disputada. Muitos avanços foram feitos nesse quesito no anos 30 e 40 do século passado, quando Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Junior, todos de formas e perspectivas diferentes, buscaram interpretar as formações da sociedade, da cultura e da economia brasileiras. Os três souberam unir pesquisas de arquivo originais com geniais e criativas interpretações.

Os problemas com a interpretação tem se tornado mais complicados desde então. O Brasil de hoje é, definitivamente, mais urbano, mais desenvolvido e mais etnicamente diversificado. Um número grande de brasileiros, porém, continua racial, social e economicamente excluídos. As contradições de uma sociedade muito desigual ainda se fazem presentes. Reconhecer a complexidade do passado brasileiro é, por esse motivo, mais importante do que nunca, e esse é um desafio que os brasileiros ignoram a seu próprio risco”.

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Discutindo a Fundação Ford (Parte 3/4)

Continuando a repercutir o texto do amigo e historiador Marcus Correia, publicado originalmente no portal Esquerda Online.

Abaixo a terceira parte (de quatro) do texto que discute a Fundação Ford. Para ler o post anterior, com as partes 1 e 2 do texto, clique aqui.

DISCUTINDO A FUNDAÇÃO FORD (PARTE 3/4)
por Marcus Correia | publicado originalmente em 22 dez. 2016 | Esquerda Online

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No Brasil

Depois da Revolução Cubana, a política externa estadunidense voltou-se mais atentamente para a América Latina e, em particular, para o Brasil. A pretexto de conter a ameaça comunista internacional, o Departamento de Estado, a CIA, o Pentágono e grandes corporações patrocinaram uma série de regimes militares sanguinários por todo o continente. Foi nesse contexto que a Fundação Ford passou a atuar como organização “filantrópica” no Brasil, em 1961, abrindo um escritório no país ano seguinte, mesmo período em que também o fez no Chile e no México.

Dois elementos que foram abordados nas partes anteriores do artigo merecem atenção aqui. O primeiro deles é o fato de, à época, a Fundação Ford deter a maior parte das ações da Ford Motor Company, diferente do que comumente se pensa (Cf. Parte 1). Em 1962, por exemplo, a Fundação Ford era proprietária de mais de 50% das ações das indústrias Ford e sua principal controladora [1]. O segundo elemento refere-se à relação desenvolvida no pós-Guerra entre a Fundação e os órgãos de inteligência dos Estados Unidos. Como já foi mencionado, depois da Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos altos funcionários da entidade eram ou tinham sido agentes, tinham ligações com agentes ou trabalhavam em profunda conexão com os órgãos de inteligência, com o Departamento de Defesa, com o Departamento de Estado e com o complexo indutrial-militar privado dos Estados Unidos (Cf. Parte 2).

No Brasil, desde 1962, alguns executivos da Ford Motor do Brasil estiveram vinculados à conspiração civil-militar que levou ao golpe de Estado de 1964. Estavam ligados principalmente ao financiamento do chamado “complexo IPES/IBAD”, cujos recursos advinham, entre outras pessoas jurídicas, da Atlantic Community Development Group for Latin America (ADELA), da qual a Ford Motor era participante, e da American Chamber of Commerce, onde participavam vários diretores da Ford Motor do Brasil (Mario Bardella, Robert F. Carlson, Luiz B. Carneiro da Cunha, Joseph Radleigh Dent, H. H. Eichstaedt, John C. Goulden) [2]. Inclusive, em 1963, o Congresso brasileiro instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as atividades do IBAD no financiamento da campanha eleitoral anterior. O predidente da CPI foi o deputado federal Rubens Paiva.

Mas o principal nome vinculado à Ford Motor do Brasil com participação no golpe de 1964 foi Humberto Monteiro. Monteiro era membro-diretor da seção de São Paulo do IPES. Também integrava o Sindicato da Indústria de Aparelhos Elétricos, Eletrônicos e Similares do Estado de São Paulo, da American Chamber of Commerce. [3] Monteiro foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo no governo Ademar de Barros e presidente da União Cultural Brasil-Estados Unidos. [4]

Logo após o golpe, em setembro de 1964, chegou ao Brasil, Peter Dexter Bell, um dos mais importantes representantes da Fundação Ford para a área internacional e responsável pela distribuição dos recursos da entidade no país. Antes de ocupar tal posto, Peter Bell havia estagiado na área de Relações de Segurança Internacional do Pentágono. Meses depois da sua chegada ao Brasil, no início de 1965, ele fez sua primeira visita a uma instituição de ensino superior, a Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Lá, foi recebido com a explosão de uma bomba, detonada por estudantes a fim de que ele “mantivesse distância”. [5]

É importante relembrar (Cf. Parte 2) que, em 1964, McGeorge Bundy, que assumiria a presidência da Fundação Ford dois anos depois, era Assessor de Segurança Nacional do presidente Lyndon Johnson e uma das suas prerrogativas era monitorar e assessorar as atividades da CIA ao redor do mundo. McGeorge Bundy compôs, também em 1964, um comitê especial da Casa Branca, junto com outros membros do governo e das agências de inteligência, a fim de determinarem ações clandestinas no Chile para auxiliar na eleição de Eduardo Frei.[6] É provável também que, ocupando o cargo, tenha sido um dos formuladores da parceria golpista para o Brasil.

Na mesma época, o irmão de McGeorge, William Bundy, compunha o Comitê Nacional de Avaliação da CIA. Os irmãos Bundy são ainda apontados como os formuladores de falsos pretextos apresentados ao Congresso dos Estados Unidos para justificar a escalada militar do país na Guerra do Vietnã a partir de 1964. [7] McGeorge ficará na presidência da Fundação Ford entre 1966 e 1979, período de maior influência da entidade no Brasil. Portanto, Peter Bell foi o principal representante, no Brasil e na América Latina, da administração de McGeorge Bundy na Fundação Ford.

Seguindo as diretrizes de internacionalização da Fundação, formuladas por Horace Rowan Gaither Jr. depois da Segunda Guerra Mundial (Cf. Parte 2), a principal atividade de Peter Bell no Brasil era promover o financiamento de atividades nos campos social, acadêmico e cultural. No pós-guerra, uma série de colaborações diplomático-empresariais foram firmadas entre o Brasil e os Estados Unidos. Duas delas foram a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, criada em 1951, e ligada ao Ponto IV do Plano Marshall [8] e, em 1961, a Aliança para o Progresso. Ambas as parcerias, no entanto, destinavam-se sobretudo ao campo econômico-industrial. Logo, na estratégia da política externa dos Estados Unidos, um dos papéis a ser cumprido pela Fundação Ford no Brasil seria o de atuar em áreas que as iniciativas anteriores não abrangiam e essa foi a atuação de Bell.

Peter Bell ficou no Brasil entre 1964 e 1969 e ele próprio narra que encontrou-se com agentes da CIA por aqui, a pedido do embaixador dos Estados Unidos, a fim de conversarem sobre os financiamentos promovidos pela Fundação Ford. [9]

Em março de 1968, o presidente Arthur da Costa e Silva solicitou ao Congresso uma autorização, em caráter especial, para que a Fundação Ford fosse considerada de “utilidade pública”, o que era uma prerrogativa apenas de entidades nacionais. Na exposição de motivos formulada pelo ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva justifica-se para tal medida em “face aos relevantes serviços prestados pela entidade através da realização de intenso programa social objetivando o bem estar humano…” [10]. Em junho, o Senado aprovou a solicitação do general.

Seis meses depois dessa aprovação, tanto Costa e Silva, como o professor e ex-reitor da USP, Gama e Silva, foram signatários do Ato Institucional n. 5 (AI-5), expressando a preocupação de ambos com o “bem estar humano” no país, promovendo expurgos, torturas, assassinatos, perseguições e toda a sorte de barbárie contra a população organizada contra o regime.

Em 1 de julho de 1969, na esteira do AI-5, foi criada a Operação Bandeirantes e a Ford Motor Co., cuja maior acionista era a Fundação Ford, tornou-se uma das suas principais financiadoras [11]. O intuito central da operação era o extermínio dos militantes comunistas do país. A Ford Motor Co. dispendeu recursos também para a criação dos DOI-CODI, conforme, entre outras fontes, o depoimento à Comissão da Verdade do ex-agente da repressão Merival Chaves, do setor de inteligência do Exército [12]. É desnecessário mencionar aqui as atrocidades perpetradas pelo órgão contra os revolucionários brasileiros do período.

Entre as muitas iniciativas “filantrópicas” da Fundação Ford no Brasil, a mais conhecida foram os recursos que, também em 1969, a entidade destinou à criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), cujo principal pesquisador veio posteriormente a ser presidente do país, o procônsul do império Fernando Henrique Cardoso. O centro foi fundado por professores que haviam sido demitidos da universidade em razão do AI-5 e, no primeiro momento, a embaixada dos Estados Unidos e a CIA no Brasil, talvez um pouco desinformados, viram com preocupação o auxílio da Fundação Ford. Porém, segundo o próprio Peter Bell, depois que ele se reuniu com um agente da CIA no país, a preocupação se desfez e a entidade destinou recursos à criação do centro de pesquisa. [13]

Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo em 2012, Peter Bell afirmou, com toda razão: “No contexto do período, entendo que alguns brasileiros possam ter desconfiado de mim.” [14]

Conforme o processo de abertura política no país a partir de meados dos anos 1970, a Fundação Ford foi “camaleonicamente” adaptando-se ao novo ambiente e sua nova linha de atuação passou a ser os chamados “direitos humanos”. A quarta e última parte do artigo irá abordar alguns fatos relevantes da história da Fundação Ford dos anos 1970 até os dias atuais. É possível afirmar que também nesse período a promoção do “bem estar humano” e dos “direitos humanos” foi mais uma vez apenas uma cobertura na defesa dos interesses do imperialismo yankee.

NOTAS

[1] – O Estado de S. Paulo, 9 de março 1962

[2] – DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classes. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.

[3] Idem.

[4] – O Estado de S. Paulo,

[5] – CANEDO, Leticia Bicalho. A Fundação Ford e as Ciências Sociais no Brasil: o papel dos program officers e dos beneficiários brasileiros para a construção de novos modelos científicos.https://leticiabcanedo.wordpress.com/2016/04/25/a-fundacao-ford-e-as-ciencias-sociais-no-brasil-o-papel-dos-program-officers-e-dos-beneficiarios-brasileiros-para-a-construcao-de-novos-modelos-cientificos/ e Entrevista com Peter Bell. O Estado de S. Paulo, 16 set. 2012.http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,para-os-eua-brasil-era-campo-de-batalha-na-guerra-fria-imp-,931221

[6] – BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 259, 318, 772 ; MARCHETTI, Victor & MARKS, John D. The CIA and the cult of intelligence. [S.n.]: Langley, Virginia, 1974.

[7] – BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op.cit. p. 259, 318, 772.

[8] – CANEDO, Leticia Bicalho. Op. cit.

[9] – Entrevista com Peter Bell, em O Estado de S. Paulo, 16 set. 2012.http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,para-os-eua-brasil-era-campo-de-batalha-na-guerra-fria-imp-,931221

[10] – O Estado de S. Paulo, 23 mar. 1968

[11] – BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Vol. 1. e Vol. 2.

[12] – Comissão Nacional da Verdade. Tomada pública de depoimento de agentes da repressão: Merival Chaves. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pKcnTDCcDuw (a partir dos 21 minutos)

[13] – CANEDO, Leticia Bicalho. A Fundação Ford e as Ciências Sociais no Brasil: o papel dos program officers e dos beneficiários brasileiros para a construção de novos modelos científicos.https://leticiabcanedo.wordpress.com/2016/04/25/a-fundacao-ford-e-as-ciencias-sociais-no-brasil-o-papel-dos-program-officers-e-dos-beneficiarios-brasileiros-para-a-construcao-de-novos-modelos-cientificos/ ; E Entrevista com Peter Bell, em O Estado de S. Paulo, 16 set. 2012.http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,para-os-eua-brasil-era-campo-de-batalha-na-guerra-fria-imp-,931221

[14] – Entrevista com Peter Bell, em O Estado de S. Paulo, 16 set. 2012.http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,para-os-eua-brasil-era-campo-de-batalha-na-guerra-fria-imp-,931221

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[MILTON SANTOS] Ser negro no Brasil

Cristiano das Neves Bodart foi um dos muitos alunos que fez graduação em Geografia e que teve a oportunidade de cursar uma disciplina com o saudoso professor Milton Santos. O que faz dele especial para estarmos mencionando-o aqui é que. ao mexer em seus pertences da graduação, Cristiano encontrou uma fita contendo a gravação de uma palestra do professor Milton Santos na qual ele trata, brevemente, a questão de como é ser negro no Brasil.

Após ter encontrado a fita, Cristiano Bodart logo transcreveu seu conteúdo que, em seguida, foi publicado no portal Café com Sociologia. Por seu ineditismo e por abordar reflexões sobre diversas temáticas tratadas neste blog, entendi que valeria a pena repercutir o texto no Hum Historiador. Espero que aproveitem!

COMO É SER NEGRO NO BRASIL
por Milton Santos | publicado no portal Café com Sociologia em Fev.2016

Eu tive a sorte de ser negro em pelo menos quatro continentes e em cada um desses é diferente ser negro e; é diferente ser negro no Brasil. Evidente que a história de cada um de nós tem um papel haver com a maneira como cada um age como indivíduo, mas a maneira como a sociedade se organiza é que dá as condições objetivas para que a situação possa ser tratada analiticamente permitindo o consequente, um posterior tratamento político. Porque a política para ser eficaz depende de uma atividade acadêmica… acadêmica eficaz! A política funciona assim! A questão negra não escapa a essa condição. Ela é complicada porque os negros sempre foram tratados de forma muito ambígua. Essa ambiguidade com que a questão foi sempre tratada é o fato de que o brasileiro tem enorme dificuldade de exprimir o que ele realmente pensa da questão.

O professor Florestan Fernandes e o professor Otavio Ianni, escreveram, ambos, que os brasileiro, de um modo geral, não tem vergonha de ser racista, mas tem vergonha de se dizer racista. E acho que isso é algo permanente das relações inter-étnicas no Brasil e que traz uma dificuldade de aproximação da questão e da análise, inclusive dos próprios negros, que podem se deixar possuir por uma forma de reação puramente emocional diante da questão, dentro do problema, quando é necessário buscar, analisar, a condição do negro dentro da formação social brasileira. Porque a política não se faz no mundo, não é no mundo que dita as regras da política que se faz em cada país. E não é o outro continente. Não é o olhar para a África que vai ajudar na produção de uma política brasileira para o negro, nem um olhar para os Estados Unidos que vai também permitir essa produção de uma política. É o estudo do negro dentro da sociedade brasileira. É evidente que esse estudo passa pela categoria que se chama “formação socioeconômica”, a qual eu modifiquei propondo a categoria de “formação socioespacial”, porque eu creio que o território tem um papel muito grande na compreensão do que é uma nação.

A formação socioeconômica tem relações com todo o mundo. É evidente que o aporte africano no Brasil vai ter um papel na compreensão com o que se passa no Brasil, como o aporte europeu e hoje o aporte estadunidense. Mas isso resulta numa produção que se chama “o Brasil”. É nele que eu quero estar como brasileiro integral! É nele que devemos estar, todos, independente da nossas origens étnicas, como brasileiros integrais, sem sermos olhados vesgamente em função de nossa, repito, origem étnica. Por conseguinte é esse tipo de aproximação que eu privilegio naquilo que faço, e faço pouco porque não sou um especialista da questão negra. Eu sou apenas um negro a mais no Brasil que tem uma experiência de ser negro, mas que não sou especialista da questão negra. O meu trabalho, como todo mundo sabe, é outro, eu me especializei em outra coisa, é a minha história, mas não sou indiferente a essa questão, longe disto. Creio que as contribuições teóricas que por ventura tenha elaborado para o entendimento da sociedade possa ser de alguma valia no tratamento da questão do negro no Brasil; que não será resolvido se os negros forem sozinhos na luta. A luta dos negros só pode ter eficácia se envolver todos os brasileiros, inclusive os negros, mas não só os negros. Não cabe aos negros, aliás, fazer essa luta. Essa luta tem que ser feita sobretudo por todos. Creio que essa etapa seguinte, a de reclamar de todos que participem; e não só em um dia ou uma semana. Eu não tenho simpatia por treze de maio e nem semana do mês de novembro, porque tenho uma enorme dificuldade em aceitar que o país celebre uma semana, celebre um dia e os resto dos 357 dias se descuide da questão. Eu creio que é importante que haja esses dias no sentido de mobilização. Só que a mobilização não é obrigatoriamente aquilo que produz a consciência. Com frequência a mobilização cria um elã emocional e o que permite uma luta continuada é a produção da consciência que não pode ser, digamos, obtida em um dia, treze de maio, uma semana, semana da consciência negra, por que não é questão de consciência negra, é questão de consciência nacional; o negro sabe perfeitamente a sua situação. É por isso que eu me recuso a vir em reuniões como essa, ou quando me convidam na imprensa ou na televisão, a ficar choramingando, “ah nós somos assim, somos acolá, nós estamos em baixo”. Todo mundo sabe disso, então vamos usar o tempo para outro tipo de preocupação.

Inclusive como estava dizendo a meu colega da Bahia, da gloriosa universidade da Bahia, onde ele foi aluno do meu filho, o que para mim é uma grande satisfação intelectual e moral, que a questão passa por aí, da questão do negro brasileiro, porque assim que me intitulo, eu sou um negro brasileiro, não quero ser outra coisa se não um negro brasileiro, mas quero ser um brasileiro integral. A luta que tem que ser feita passa por criar uma consciência nacional e não por, digamos, nos limitarmos à produção de uma consciência negra, porque os negros já estão cansados de saber qual é sua condição na sociedade. Para isso é necessário preparar outro discurso.

Eu estou muito mal satisfeito com maior parte dos discursos dos movimentos negros porque são repetitivos esses discursos, são pobres e não são mobilizadores realmente, exceto para choramingas. De que adianta continuar dizendo que os negros ganham menos no mercado de trabalho? Muito pouco! Todo mundo já sabe disso. Com pequenas variações é a mesma coisa sempre. De que adianta sair dizendo que há um preconceito aberto ou larvar? Todo mundo sabe disso, inclusive aqueles que cometem sabem que estão fazendo preconceito; muitos não sabem. Ai entra o papel de outro discurso, que é o discurso da conscientização a partir de novas palavras de ordem.

Por exemplo, peço desculpa por falar de mim mesmo, mas quando nessa entrevista que tive o prazer de dar ao Roberto D’Ávila que me perguntou a respeito do ressentimento dos negros em relação a sociedade branca. Eu disse, não, ao contrário, são os brancos que têm o ressentimento com relação aos negros que conseguem ascender socialmente, que já era um ensaio de produzir um outro discurso. Eu não vou aceitar discutir que os negros tem ressentimento por uma razão muito simples: porque o nosso ressentimento, se existe, ele não é eficaz, ele não tem o poder! O ressentimento que tem eficácia é o de quem tem poder. Então quando eu falo que é o branco que tem ressentimento, e tem, em relação ao negro que triunfa, não digo o branco em geral, mas um bonito grupo de pessoas brancas (bonito no sentido de grande). É para exatamente reverter o discurso. É um exemplo de, como creio haveria que, digamos assim, trabalhar nessa coisa do discurso que acho muito importante, inclusive para a recriação daquilo que repetem com muita frequência, a questão da autoestima.

A autoestima ela pode ser parcialmente enfrentada a partir de outro discurso também. É por isso que, por exemplo, não perdoo o governo federal e aos governos estaduais. É que não ponham seus recursos jornalísticos a disposição da produção do discurso da autoestima, o que não custaria muito, mas que tem que ver com a condição de nosso tempo, que tem que ser analisada para entender o que está se passando e propor outra coisa. Eu paro por aqui e fico à sua disposição!


Palestra proferida pelo professor Milton Santos e transcrita por Cristiano das Neves Bodart a partir de um audio que guardava desde a época que cursava a graduação. Infelizmente não sabemos onde foi proferida essa palestra.


O Jornal GGN, do Luís Nassif, também publicou a transcrição da palestra e, mais do que isso, localizou um vídeo contendo essa fala do professor Milton Santos, a qual também repercuto abaixo com os leitores do Hum Historiador.

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É possível ensinar empatia?

Hoje, navegando pela Internet, descobri acidentalmente o blog Além do Roteiro, onde encontrei um post intitulado “A questão de prova que ensina empatia”. Achei o post tão instigante, que decidi repercuti-lo por aqui.

O texto descreve um experimento feito desde 2008 por Dylan Selterman, professor de psicologia na Universidade de Maryland. Segundo o post, esse professor aplica uma questão a todos os seus alunos, baseado na “Tragédia dos Comuns” ou “Dilema dos Comuns”, exercício usado em Teoria dos Jogos e em Psicologia há muitos anos, principalmente como analogia para solução de problemas de distribuição de recursos escassos, como comida, água ou terra.

Reproduzo a seguir a íntegra do post e gostaria de propor ao leitor que chegar até o fim desse texto, que fizesse um esforço de reflexão sobre o conteúdo discutido e a ideia do mérito individual, isto é, que refletissem como esse exercício proposto pelo professor da Universidade de Maryland toca na questão do mérito individual e de como isso pode (ou não) ser inconveniente se estivermos pensando no bem comum.

A QUESTÃO DE PROVA QUE ENSINA EMPATIA
publicado originalmente em Além do Roteiro | 21.jul.2015

No dia 1º de Julho, o usuário do Twitter @shaunhin postou a seguinte imagem:

Tweet 1
QUE TIPO DE PROFESSOR FAZ ISSO

Aqui você tem a oportunidade de ganhar um crédito extra em seu trabalho final. Escolha se quer adicionar 2 pontos ou 6 pontos em sua nota. No entanto, há uma pegadinha: se mais de 10% da classe escolher 6 pontos, então ninguém ganhará ponto algum. Suas respostas permanecerão anônimas para o resto da classe, somente eu verei suas respostas.

A questão é aplicada desde 2008 pelo professor Dylan Selterman para seus alunos de Psicologia na Universidade de Maryland. Tornou-se viral com o tweet, alcançando sites como o Buzzfeed, e a chuva de respostas que Dylan recebeu levou a um artigo seu no The Washing Post, onde reflete sobre o desafio.

A questão é modelada a partir da “tragédia dos comuns” (ou “dilema dos comuns”), exercício usado em Teoria dos Jogos e em Psicologia há muitos anos.

Em geral, é aplicada como analogia de um problema de distribuição de recursos escassos, como comida, água ou terra. O raciocínio padrão confronta a visão coletivista versus a visão individualista. O cenário onde todos os estudantes escolhem 2 pontos garante o aumento da nota para a classe inteira, sem ninguém obter um ganho máximo. Pensando nisso, um estudante pode escolher 6 pontos para maximizar seu benefício, acreditando na coletividade dos outros.

Porém, mais de um estudante procura maximizar seus ganhos, levando à tragédia: mais de 10% dos alunos escolhem 6 pontos, e assim a classe inteira fica de mãos vazias.

Portanto, melhor escolher 2 pontos e todos ganharem, deixando de lado possíveis ambições. Assim todos voltam felizes para casa e… espera, o Gilberto não passou na matéria mesmo com os dois pontos?

NECESSIDADE VERSUS GANÂNCIA

Primeiro, podemos reparar como os pontos da questão representam de fato um recurso escasso. Não sabemos o número de alunos da classe (que varia ano a ano), portanto vamos chamar de “y”.

Para que todos recebam pontos, o máximo de alunos que pode escolher a opção “gulosa” é de 10% de y, ou 0,1y. Com 6 pontos distribuídos para os 10%, e 2 pontos multiplicados pelos 90% restantes, chegamos à disponibilidade máxima de pontos, demonstrada na seguinte equação:

6 * 0,1y + 2 * 0,9y = P (pontos disponíveis)

Demonstrado que o número de pontos, ainda que variável, é escasso, fica a impressão anterior de que estamos no tal dilema da comunhão versus ganância. Não é simples assim.

Os problemas de Teoria dos Jogos costumam se basear na premissa de que os jogadores têm igual conhecimento das regras e contexto (mesmo que esse conhecimento seja zero, importa que seja igual). No caso dos alunos, não é igual.

A diferença reside no contexto individual. Se a média para passar na matéria do professor Dylan é 5 e eu estou com média 3.5, mais 2 pontos bastam para que eu seja aprovado. Já o Gilberto está com média 2, e só será aprovado conseguindo os 6 pontos extras. “Mas se o Gilberto, que tinha média menor que a sua, conseguir os 6 pontos, a média dele ficará maior que a sua!”. Sim. E daí? Fomos os dois aprovados, posso ficar bem com isso.

Mesmo que não saibamos nossa média ainda, em geral sabemos o nível da nossa necessidade. Não conhecemos de fato a necessidade dos outros, e é aí que entra a empatia (no caso, direcionada a todos os outros alunos).

Alguém pode estar precisando dos 6 pontos, quase como uma questão de sobrevivência. Se eu não estou, por que correr o risco de perder 2 pontos, mais os pontos da classe inteira, para não me sentir “passado para trás” pelo Gilberto?

Vamos voltar na equação, assumindo que temos 20 alunos (ou seja, y = 20). Podemos encontrar então aquele P, o número de pontos disponíveis:

6 * 0,1*20 + 2 * 0,9*20 = 12 + 36 = 48

Temos 48 pontos distribuíveis. Além do Gilberto, a Paloma também precisava dos 6 pontos, e os dois juntos configuram os 10%. Até que eu, rapaz esperto, escolho a opção dos 6 pontos, fazendo o número de alunos com essa resposta ultrapassarem os 10% (agora somos 15%). Minha decisão malandra não faz apenas com que eu perca 2 pontos. Fiz a turma perder até 48 pontos. Gilberto e Paloma não passaram na matéria, muitos alunos que precisavam dos meros dois pontos também não, e eu mesmo, se tinha média 3.5, me prejudiquei.

É como uma comunidade onde cada família têm 2 filhos, mas menos de 10% das famílias têm 6 filhos. Estas famílias precisam de 6 lotes de água, enquanto aquelas necessitam de apenas 2 lotes. Cada família de 6 filhos que escolher os 6 lotes está apenas sobrevivendo. Cada família de 2 filhos que escolher os 6 lotes prejudicará o grupo (daí a tragédia dos comuns), até o ponto em que o recurso acaba, e as próprias famílias gananciosas sofrerão da falta de água.

Os 2 pontos poderiam ser todos os direitos básicos que o governo deveria nos dar. Os 6 pontos seriam os direitos básicos + programas sociais pra os desprivilegiados.

Quantitativamente, os desprivilegiados no Brasil estão mais próximos de serem 90% do que 10%, mas se pensarmos na proporção de renda de cada grupo, a pirâmide se inverte.

EMPATIA VERSUS GANÂNCIA

Desde 2008, apenas uma turma do professor Dylan conseguiu os pontos. Todas as outras tiveram mais alunos escolhendo 6 pontos. Esse ano, foram cerca de 20%:

Tweet 2

Cerca de 20% da classe escolheu os 6 pontos, apesar de que muitas pessoas aleatórias responderam a pergunta após o seu post

 

Talvez isso ocorra por ganância demais dos alunos. Talvez a matéria seja tão difícil que mais de 10% acreditaram precisar dos 6 pontos. Ambas as opções podem ser verdade, contudo, ainda acredito que mais empatia ajudaria a todas as turmas.

Termino com o final do artigo do professor Dylan (tradução própria):

Eu não acredito que escolher os 6 pontos torna uma pessoa egoísta, imoral. Gosto de pensar neste exercício como similar à primeira tentativa de Neo de pular entre arranha-céus em Matrix. Os outros personagens explicam que todos falham no primeiro pulo. Claro, Neo falha previsivelmente. Todavia, no final do filme, ele voa. Pelo mesmo raciocínio, é duro fazer com que um grande grupo de jovens cooperem na primeira tentativa. Mas, mesmo que os alunos não ganhem pontos extras na nota desta vez, fico esperançoso de que cada estudante que assistiu minhas aulas estará mais hábil para navegar na sociedade e efetivamente colaborar com outros no futuro, graças às lições que aprenderam a partir de psicologia social. Como Morpheus, quero libertar a mente deles. Quando as pessoas saem da minha sala de aula, quero que elas percebam que têm as ferramentas para mudar o mundo para melhor, e que nos ajudem a buscar uma sociedade mais iluminada.

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O significado de Raízes do Brasil, por Antônio Cândido

Navegando pela internet encontrei um blog chamado Resumo da Obra que traz uma preciosidade que gostaria de compartilhar por aqui com meus leitores. Trata-se de um resumo do famoso prefácio que Antônio Cândido escreveu para a obra seminal Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, além de sintetizar os capítulos da obra e compará-la com outras sínteses explicativas do país produzidas na época, como Casa Grande & Senzala e Formação do Brasil Contemporâneo, Antônio Cândido vai além e explica o significado de Raízes do Brasil. Certamente essa é uma das razões pela qual o prefácio ficou tão clássico quanto o próprio livro.

A quem possa interessar, transcrevo a íntegra do post a seguir:

AntonioCandido

O SIGNIFICADO DE RAÍZES DO BRASIL
por Antônio Cândido

Raizes do BrasilEm meados do século XX, três livros levaram uma geração a refletir e se interessar pelo Brasil, obras que pareciam exprimir a mentalidade ligada ao “sopro” de radicalismo intelectual e análise social impulsionado após a Revolução de 1930.

A anticonvencional composição extremamente livre e franca de Casa Grande e Senzala, como no tratamento dado à vida sexual do patriarcalismo, e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do modo de ser do brasileiro causou forte impacto na época. Informações e dados que ensejavam noções e pontos de vistas inovadores no Brasil de então. Entretanto, a preocupação do autor com problemas de fundo biológico (raça, aspectos sexuais da vida familiar, equilíbrio ecológico alimentação) dialogava com o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio Romero,Euclides da Cunha e Oliveira Vianna.

Três anos depois aparecia Raízes do Brasil. Livro curto, de poucas citações, mas que, entre outras influências, fornecia indicações importantes para compreenderem o sentido de certas posições políticas daquele momento, em que se se buscava soluções novas, fosse à direita, no integralismo, fosse à esquerda, no socialismo e no comunismo.

Seis anos depois do livro de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. lançava Formação do Brasil Contemporâneo. Interpretação do passado em função das realidades básicas da produção, da distribuição e do consumo. Nele, o autor afasta-se do ensaísmo (marcante nos outros dois livros), prioriza dados e argumentos em detrimento de categorias qualitativas como “feudalismo” ou “família patriarcal”. O materialismo histórico aparecia como forma de captação e ordenação do real, desligado do compromisso partidário ou desígnio prático imediatista.

No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições. “Civilização e barbárie” formam o arcabouço do Facundo e de Os Sertões. O pensamento do autor não foge a esse modelo, se constitui pela abordagem dialética de conceitos polares, não como se eles fossem mutuamente excludentes. A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro. Sérgio Buarque aproveita o critério tipológico de Max Weber ao focar pares de tipos ao invés de pluralidades de tipos, para trata-los de maneira dinâmica e ressaltar a interação dentro do processo histórico. Com este instrumento, o autor analisa os fundamentos do nosso destino histórico e suas diversas manifestações: trabalho e aventura, método e capricho, rural e urbano, burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo – são pares destacados na estrutura social e política pelos quais é possível analisar e compreender o Brasil e os brasileiros.

Em “Fronteiras da Europa”, o primeiro capítulo, Espanha e Portugal são o ponto de partida para tratar, por exemplo, das diversas formas de colonização da América, e de pontos que serão desenvolvidos ao longo da obra, como o tradicional personalismo e a consequente frouxidão das instituições e baixa coesão social.

A ausência do princípio de hierarquia e a exaltação do prestígio pessoal que implica em privilégio seria outra característica ibérica de grande impacto na colônia. Isso fez com que a nobreza permanecesse aberta ao mérito e ao êxito, o que favoreceu a mania de fidalguia, ou seja, a repulsa ao trabalho regular e às atividades utilitárias, de que decorre a falta de organização. O ibérico não renuncia às veleidades em benefício do grupo ou dos princípios. Aos preteridos de tal privilégio, cabe a obediência cega: “A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares [aos ibéricos]” (p. 39). A escravidão matou de uma vez a necessidade no homem livre de cooperar e organizar-se.

No capítulo seguinte, “Trabalho & aventura”, está a tipologia básica do livro, a distinção entre o trabalhador e o aventureiro e suas éticas opostas: a que busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar; e a que estima a segurança, o esforço e a compensação a longo prazo. O continente americano foi colonizado por homens mais próximos do primeiro tipo, o que foi positivo para o Brasil, pois o português manifestou uma adaptabilidade excepcional, ainda que “com desleixo e certo abandono”. Dada a diversidade reinante, o espírito de aventura foi o “elemento orquestrador por excelência” (p. 46). Assim, a lavoura de cana foi mais um aproveitamento de espaço do que ação de uma civilização agrícola.

“Herança rural” é o próximo capítulo que analisa o impacto da vida rural na sociedade brasileira, e suas diferenças em relação à mentalidade urbana.

A agricultura acompanhou a escravidão em seu declínio, promovido por políticos e intelectuais de família fazendeira. O capital ocioso migrou para as cidades, promovendo progresso social e investimento técnico. Isso não refletiu em um desenvolvimento coeso em função da “radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de ações socialmente mais avançadas, de um lado e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares” (p. 79).

“O semeador e o ladrilhador” é o quarto capítulo. A cidade é entendida como instrumento de dominação já a partir de sua concepção. Ladrilhador refere-se ao espanhol, que vê a cidade como empresa da razão, como as que fundou aqui, planejadas rigorosamente e contrárias à ordem natural; como se correspondessem a um prolongamento da metrópole. Os portugueses, agarrados ao litoral, foram “semeadores” de uma cidade irregular, cuja “silhueta se enlaça na linha da paisagem” (p. 110). O aparente desleixo corresponde a uma prudência condicionada por um realismo não imaginativo ou regido por regra, fruto de um desejo pela fortuna e ascensão social rápida que coíbe a formação de uma mentalidade específica, como em outros países.

O capítulo “Homem cordial” apresenta características do brasileiro resultantes do que foi tratado anteriormente. As “relações de simpatia” reinam, ou seja, as relações impessoais, características do Estado, são suscetíveis de serem levadas para o padrão pessoal e afetivo. Isso impede a formação de uma sociedade urbana moderna. O “homem cordial” pressupõe, de fato, o predomínio do comportamento de aparência afetiva, não necessariamente sincera.

O capítulo 6, “Novos tempos”, analisa o choque nos velhos padrões coloniais causado pela vinda da família real.

A sociabilidade é aparente, uma vez que não se impõe ao indivíduo, tampouco contribui para a estruturação de uma ordem coletiva. Encontra séria barreira na individualidade que emerge na relutância perante a lei que o contraria. A isso também está ligada a satisfação no saber aparente, cujo fim está em si mesmo e, por isso, deixa de ser aplicado em um objetivo concreto. A mudança de atividade torna-se constante, por buscar a satisfação pessoal. As profissões liberais se aproximam dessas características, tanto por permitirem a manifestação individual quanto por prestarem-se ao saber de fachada. É a opção dos membros da classe dominante em função da crise das velhas instituições agrárias, por prescindirem do trabalho direto sobre as coisas, que lembra a condição servil.

A força adquirida pelo positivismo também pode estar relacionada a esse contexto. Uma confiança consistente às ideias, mesmo quando inaplicáveis, ajuda a entender o liberalismo que, no Brasil, se constituía como uma oposição à autoridade incômoda. Da mesma forma, tratou-se de importar a democracia e acomodá-la aos privilégios aristocráticos, sendo que, em outros países, elas eram conflitantes.

O capítulo 7, “Nossa revolução”, mais compacto, sugere que a dissolução da ordem tradicional ocasiona contradições não resolvidas na estrutura social, que surtirão efeitos nas instituições e ideias políticas. A passagem do rural para o urbano representa a passagem da tradição ibérica, baseada em instituições agrárias, para um modo vida próprio, americano. Está ligada a esse momento a passagem da exploração da cana de açúcar, como produto principal de exportação, para o café. Os modelos políticos do passado se adaptam aos novos tempos. Isso é possível através da combinação não harmoniosa entre leis formalmente perfeitas e uma organização administrativa ideal com o mais extremo personalismo. A Abolição tornou inviável a velha sociedade agrária, o que foi o início da “nossa revolução”. Trata-se de superar o passado, adotar o ritmo urbano e propiciar, ao mesmo tempo, a ruptura do predomínio das oligarquias e a emergência das camadas oprimidas da população, únicas com capacidade para revitalizar a sociedade, tornando viável uma vida democrática no Brasil. Contra essa tendência, poderia surgir uma resistência saudosa do antigo modelo, que, de acordo com a intensidade de sua força, poderia se traduzir em formas que comprometam as esperanças de qualquer transformação profunda. O caudilhismo, expressão maior do personalismo que intervém no processo democrático, é um exemplo dessa resistência. A repulsa pela hierarquia e a relativa ausência dos preconceitos de raça e cor são elementos que permitem a convergência rumo à democracia.

Raízes do Brasil escapa ao dogmatismo e abre o campo para a meditação dialética. O autor baseou sua análise na psicologia e na história social, com um senso agudo de estruturas, vinculando dessa forma o conhecimento do passado aos problemas atuais. Propôs que a liquidação das raízes era um imperativo para o desenvolvimento histórico. Perder as características ibéricas era o caminho para a evolução moderna brasileira, cuja trajetória não incluiu um louvor ao autoritarismo, como solução para sua organização. Sérgio Buarque afirmou, em 1936, estar na fase aguda da decomposição da sociedade tradicional. Em 1937 veio o golpe de Estado e o advento da fórmula rígida e conciliatória, que encaminhou a transformação das estruturas econômicas pela industrialização. Era o primeiro passo para a modernização.

LINK PARA DOWNLOAD DO LIVRO:

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

BIBLIOGRAFIA: 

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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[Tim Vickery] O Brasil de 2015 e a Inglaterra dos anos 1960

O Hum Historiador repercute uma coluna escrita pelo correspondente e colunista da BBC no Brasil, Tim Vickery, sobre as semelhanças que ele vê no Brasil atual e a Inglaterra da década de 1960, onde ele viveu.

Acho interessante a percepção de Vickery a respeito da Classe Média na Inglaterra dos anos 60 e no Brasil, ano passado.

Eduardo Martino

MINHA PRIMEIRA GELADEIRA E POR QUE O BRASIL DE HOJE LEMBRA A INGLATERRA DOS ANOS 60
por Tim Vickery | publicado originalmente no portal da BBC | nov.2015

Acho que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de sorte. Que momento! The Rolling Stones cantavam I Can’t Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma música do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.

Na minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem geladeira, televisão ou máquina de lavar. Mas eram apenas limitações, e não o medo e a pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.

Tive saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de Londres, um apartamento com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade além dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor ainda, o Estado me bancava.

Olhando para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro. O curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores. Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.

Será que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Não tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da Inglaterra da minha infância.

Por lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular (1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan, que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: “nunca foi tão bom para você” (“you’ve never had it so good”, em inglês).

É a versão britânica do “nunca antes na história desse país”. Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas palavras, comemorando um “estado de prosperidade como nunca tivemos na história deste país” (“a state of prosperity such as we have never had in the history of this country”, em inglês).

Macmillan, “Supermac” na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.

Em 1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou “a raiva da classe média” e temeu uma “luta de classes”. Quatro anos mais tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como resultado da “revolta da classe média e da classe média baixa”, que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da chamada “classe trabalhadora” (“working class”, em inglês) na Inglaterra.

Em outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.

Mais uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Alguns anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava ganhando demais.

No Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de trabalhadores em setores menos “nobres”? Me despedi do elemento com a mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a distribuição de renda.

Mais tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam intactas.

Agora, não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação. Essa história se aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma reação.

No cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.

A revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos. Mas tem um outro fator muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o progresso popular. Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem mais humilde. Firme e forte é a mentalidade do: “de que adianta ir a Paris para cruzar com o meu porteiro?”.

Harold Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos. Consumo não é tudo, mas tem seu valor. Sei por experiência própria que a primeira geladeira a gente nunca esquece.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick

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Biografia de Milton Santos será lançada hoje na cidade de Salvador

Como belo presente de fim de ano, acabo de saber que a biografia oficial do geógrafo Milton Santos será lançada nesta segunda-feira, 28/12, na cidade de Salvador-BA. Melhor ainda, com uma tiragem inicial de 5 mil exemplares, a obra será distribuída nacionalmente de forma gratuita.

O Hum Historiador repercute informações publicadas no blog de Fernando Conceição sobre o lançamento dessa biografia.

MILTON SANTOS, UMA BIOGRAFIA É LANÇADA
Do blog de Fernando Conceição | publicado originalmente 25.dez.2015

MS Capa

COM TIRAGEM de 5.000 exemplares a ser nacionalmente distribuída de graça pela Petrobras – que patrocina esta primeira versão do texto -, Milton Santos, uma biografia, está sendo apresentada ao país a partir deste 28 de dezembro de 2015.

O lançamento ocorre em Salvador da Bahia em mesa redonda intitulada “Intelectual, Negro e Geógrafo Mundial”, às 15h do dia 28, no Espaço Cultural Raul Seixas do Sindicato dos Bancários, localizado nas Mercês.

Outdoor nas ruas de Salvador divulga o lançamento

A mesa será coordenada por Danila de Jesus, presidente do Afirme-se – Centro de Práticas e de Estudos de Diversidades Culturais. Esta, a entidade proponente junto à Petrobras, cujo representante também participa, ao lado de representantes de outras instituições parceiras da atividade, familiares e outras autoridades.

A programação será aberta com a exibição de um videodocumentário de 27 minutos, em DVD encartado no livro, que foi editado pela jornalista Sueide Kinté. O vídeo foi feito a partir de material produzido durante o processo da pesquisa iniciada em 2007 pelo Grupo de Pesquisa Permanecer Milton Santos da Universidade Federal da Bahia.

Resumindo:

  • Apresentação da Biografia Autorizada de Milton Santos.
  • Data: Segunda-Feira. 28/12/2015. Às 15h.
  • Local: Espaço Cultural Raul Seixas, no Sindicato dos Bancários.
  • Endereço: Avenida Sete de Setembro, 1001, Mercês, Salvador-Bahia.
  • Mais informações: pelo e-mail afirme.se@gmail.com, ou também pelo telefone: (71) 9 9103-4578.

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