Arquivo do mês: março 2020

GMarx-USP: Crise e oportunidade

Por uma greve geral humanitária
por Lincoln Secco – publicado originalmente na página do GMarx (Facebook).

Nunca antes a classe trabalhadora brasileira enfrentou um dilema assim: optar por um emprego letal ou lutar pela vida e exigir do Estado a inversão de suas prioridades. O Governo apostou em mobilizar sua base social com um discurso arriscado, porém racional em sua irracionalidade genocida. A famiglia no poder sabe que não tem opção: se aceitar a união sagrada com partidos, congresso e mídia vai se tornar parte do establishment e perderá qualquer possibilidade de reeleição.

Em Movimento
O bolsonarismo só existe como mobilização permanente. A pandemia retirou os holofotes de suas performances bizarras. E por um motivo óbvio. Seu discurso sempre teve como base uma doença imaginária. O corpo nacional íntegro, são e masculino só poderia ser violado pela “ideologia” que é tão invisível quanto o covid 19. A “ideologia” não pode ser vista, mas suas manifestações são sentidas no modo de vida. Aquele que acredita no discurso (ideológico) contra a ideologia sabe que seu inimigo está enraizado no cotidiano. Por mais que deseje a submissão da mulher, a erradicação da homossexualidade, o controle da educação e o fim das artes, reconhece que isso não é possível e que o “vírus” ideológico pode estar dentro dele mesmo. O líder manipula exatamente esse sentimento para a mobilização perene. Promete repressão para os que já se reprimem.

A Novidade
Ora, diante de um vírus real a manipulação entrou num curto circuito. As pessoas passaram a temer uma ameaça verdadeira. Paradoxalmente, o chamamento de Bolsonaro foi para a morte. Isso não nos deve espantar: os alemães sitiados ainda acreditaram na arma secreta do Führer. Na atualidade os fascistas creem no sacrifício para que continuem a rodar as roletas dos cassinos financeiros. É claro que seu apoio popular se fundamenta em interesses reais. Ao contrapor os efeitos da pandemia aos custos econômicos do lockdown o governo reaviva suas redes sociais e dialoga com milhões de pequenos comerciantes que fecharam as portas, inquilinos sem renda para o aluguel, famílias endividadas, os que temem uma onda de saques…

A Saída
Até que haja um remédio eficaz e uma imunização massiva para o vírus real a classe trabalhadora só terá uma saída: recusar-se a trabalhar. Se for bem sucedida a conjuntura vai mudar radicalmente. Porque isso só acontece a partir da base produtiva e não de disputas parlamentares. As relações de produção são antes de tudo relações de força. As centrais sindicais estão emudecidas diante de uma oportunidade única. A perspectiva para uma classe que não pretende morrer é não se alistar nos exércitos suicidas que reabrirão as empresas e, se necessário, promover uma greve geral humanitária internacionalista. É preciso declarar isso desde já.


A imagem pode conter: 1 pessoa, óculos, atividades ao ar livre e close-upLincoln Secco é membro do GMarx – Grupo de Estudos de História e Economia Política – e professor de História Contemporânea na  Universidade de São Paulo.

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CORONA: O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro

As principais lideranças da esquerda no País se uniram para lançar uma nota pedindo a renúncia do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmando que ele [presidente] é o maior obstáculo para as medidas urgentes que o Brasil precisa tomar para salvar a população, a economia e o país.

Abaixo a íntegra da nota tal como publicado no portal do Partido dos Trabalhadores no dia 30 mar. 2020 às 12:25.

Foto: Ricardo Stuckert/Facebook

O BRASIL NÃO PODE SER DESTRUÍDO POR BOLSONARO

Brasil e o mundo enfrentam uma emergência sem precedentes na história moderna, a pandemia do coronavírus, de gravíssimas consequências para a vida humana, a saúde pública e a atividade econômica.

Em nosso país a emergência é agravada por um presidente da República irresponsável. Jair Bolsonaro é o maior obstáculo à tomada de decisões urgentes para reduzir a evolução do contágio, salvar vidas e garantir a renda das famílias, o emprego e as empresas. Atenta contra a saúde pública, desconsiderando determnações técnicas e as experiências de outros países. Antes mesmo da chegada do vírus, os serviços públicos e a economia brasileira já estavam dramaticamente debilitados pela agenda neoliberal que vem sendo imposta ao país. Neste momento é preciso mobilizar, sem limites, todos os recursos públicos necessários para salvar vidas.

Bolsonaro não tem  condições de seguir governando o Brasil e de enfrentar essa crise, que compromete a saúde e a economia. Comete crimes, frauda informações, mente e incentiva o caos, aproveitando-se do desespero da população mais vulnerável. Precisamos de união e entendimento para enfrentar a pandemia, não de um presidente que contraria as autoridades de Saúde Pública e submete a vida de todos aos seus interesses políticos autoritários. Basta! Bolsonaro é mais que um problema político, tornou-se um problema de saúde pública. Falta a Bolsonaro grandeza. Deveria renunciar, que seria o gesto menos custoso para permitir uma saída democrática ao país.  Ele precisa ser urgentemente contido e responder pelos crimes que está cometendo contra nosso povo.

Ao mesmo tempo, ao contrário de seu governo – que anuncia medidas tardias e erráticas –  temos compromisso com o Brasil. Por isso chamamos a unidade das forças políticas populares e democráticas em torno de um Plano de Emergência Nacional para implantar as seguintes ações:

-Manter e qualificar as medidas de redução do contato social enquanto forem necessárias, de acordo com critérios científicos;

-Criação de leitos de UTI provisórios e importação massiva de testes e equipamentos de proteção para profissionais e para a população;

-Implementação urgente da Renda Básica permanente para desempregados e trabalhadores informais, de acordo com o PL aprovado pela Câmara dos Deputados, e com olhar especial aos povos indígenas, quilombolas e aos sem-teto, que estão em maior vulnerabilidade;

-Suspensão da cobrança das tarifas de serviços básicos para os mais pobres enquanto dure a crise,

-Proibição de demissões, com auxílio do Estado no pagamento do salário aos setores mais afetados e socorro em forma de financiamento subsidiado, aos médios, pequenos e micro empresários;

-Regulamentação imediata de tributos  sobre grandes fortunas, lucros e dividendos; empréstimo compulsório a ser pago pelos bancos privados e utilização do Tesouro Nacional para arcar com os gastos de saúde e seguro social, além da previsão de revisão seletiva e criteriosa das renunciais fiscais, quando a economia for normalizada.

Frente a um governo que aposta irresponsavelmente no caos social, econômico e político, é obrigação do Congresso Nacional legislar na emergência, para proteger o povo e o país da pandemia. É dever de governadores e prefeitos zelarem pela saúde pública, atuando de forma coordenada, como muitos têm feito de forma louvável. É também obrigação do Ministério Público e do Judiciário deter prontamente as iniciativas criminosas de um Executivo que transgride as garantias constitucionais à vida humana. É dever de todos atuar com responsabilidade e patriotismo.

ASSINAM (em ordem alfabética):

Carlos Siqueira, presidente nacional do PSB.

Carlos Lupi, presidente nacional do PDT.

Ciro Gomes, ex-candidato a Presidência pelo PDT.

Edmilson Costa, presidente nacional do PCB.

Fernando Haddad, ex-candidato à Presidência pelo PT.

Flavio Dino, governador do estado do Maranhão.

Guilherme Boulos, ex-candidato a Presidência pelo PSOL.

Gleisi Hoffmann, presidenta nacional do PT.

Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL.

Luciana Santos, presidenta nacional do PC do B.

Manuela D’Avila, ex-candidata a Vice-presidência (PC do B).

Roberto Requião, ex-governador do Paraná.

Sonia Guajajara, ex-candidata à Vide-presidência (PSOL)

Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul

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Biroliro tem um fuzil carregado em suas mãos: o que será de nós?

MACACO ATIRA COM UM FUZIL AK 47 - YouTube

Hoje decidi tentar escrever um post em forma de alegoria para representar esse nosso Brasil governado por Bolsonaro diante da grande crise da COVID-19, que se alastra por nossas terras como formiga.

Imaginem que vocês estão em uma reunião familiar, bem cheia mesmo, com toda a família e amigos presentes. Crianças de colo, criancinhas, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Todos à beira da piscina, desfrutando de um ótimo domingo de sol, com churrasco, cerveja e refrescos à vontade. Pois bem, Biroliro, o pet da família, também está presente. É um Chimpanzé brincalhão, normalmente inofensivo e que faz a alegria de todos da casa. As vezes joga fezes em visitas estranhas, mas isso faz parte do show de Biroliro.

Acontece que lá pro fim da tarde, depois de beberem muitas caipirinhas e cervejas, algumas pessoas tiveram uma ideia estranha de diversão. Decidiram pegar um fuzil automático carregado e dá-lo nas mãos de Biroliro para ver o que ocorria. Muitas pessoas logo protestaram. Avisaram que isso não ia terminar bem, pois Biroliro era um animal inconsequente. Certamente iria atirar à esmo e alguém poderia sair ferido. As demais pessoas que estavam na casa não se pronunciaram. Tanto faz. Assim, aqueles que tiveram a ideia de dar a arma a Biroliro eram maioria e acabaram colocando a ideia em prática. Chamaram o animalzinho, passaram a arma carregada e destravada pelo pescoço dele e a colocaram nas mãos da criatura.

Segundos depois, como se imaginava, começou a correria, os gritos, o choro e o ranger de dentes. Crianças, mulheres e idosos foram alvejados por não conseguirem se proteger a tempo das múltiplas balas que voavam para todos os lados. Biroliro atirava e sorria, feliz com a brincadeira, sem entender o que estava fazendo. Era muito melhor do que as costumeiras sessões de atirar fezes.

Entre mortos e feridos contavam-se alguns daqueles que tiveram a ideia de armar Biroliro. Pior ainda, filhos, pais e avós morreram cravejados de balas, enquanto os responsáveis pela tragédia choravam e se desesperavam. As pessoas mais sensatas, que haviam avisado que a ideia não iria terminar bem, sobreviveram. Antes mesmo de que Biroliro tomasse posse da arma, eles se retiraram para um ponto distante e observaram. Perguntados o que sentiam diante daquela verdadeira tragédia e se iriam ajudar, tinham dificuldade em decidir o que fazer. Não conseguiam ter empatia com os responsáveis pela tragédia que agora choravam e se desesperavam. Lembravam que haviam avisado insistentemente, e que tentaram de todos os modos dissuadi-los daquela louca ideia. Mas foram voto vencido. Agora que o pior havia ocorrido, o que podiam fazer de melhor era deixar que os causadores de tudo aquilo fossem responsabilizados pela tragédia e sofressem as consequências de suas escolhas. Quem sabe assim poderiam aprender algo disso. Não havia nada mais a fazer, a não ser lamentar pela estupidez dos responsáveis e pelo fim trágico de quase toda a família.

Pois bem, meus camaradas, nessa breve alegoria o Brasil é o fuzil carregado, Biroliro é o presidente Jair Bolsonaro e os brilhantes idealizadores da brincadeira de colocar o Brasil sob o comando de Bolsonaro, isto é, de dar a arma nas mãos do chimpanzé, são os eleitores de Bolsonaro e todos aqueles que se abstiveram de votar contra ele. Estamos diante de um momento em que, se a tragédia total ainda não aconteceu, ela já está bem à nossa vista. Sinto muito por tudo o que nos está ocorrendo. Sinto pela tragédia que se anuncia. No entanto, não tenho nenhuma empatia com eleitor de Bolsonaro e com quem se absteve nas eleições. Espero que todos tiremos lições dessa verdadeira tragédia que é e será o Brasil de 2019-2022. Eu não tenho boas expectativas e sou profundamente pessimista. Afinal de contas, o que devo esperar de 57 milhões de pessoas que acharam uma boa ideia dar um fuzil carregado nas mãos de um chimpanzé e outras 31 milhões que se colocaram indiferentes diante dessa verdadeira hecatombe?

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[Esquerda online] Qual o futuro depois da pandemia?

Publicado originalmente no portal Esquerda online, 16 mar. 2020.
Por Henrique Carneiro

Vivemos uma mudança de era. Em menos de três meses e o mundo está vivendo uma crise cujas consequências são de mudança de uma era. O ano de 2020 não será conhecido apenas como o ano da pandemia e da pior crise econômica, mas como o da mudança de muitos paradigmas. Como historiadores, devemos todos refletir sobre isso.

Qual será o futuro a partir dessa crise? De imediato, isso vai fortalecer a direita ou a esquerda? O coronavírus reelege Trump ou muda o governo nos EUA? A hegemonia estadunidense será fortalecida ou enfraquecida diante da China?

O papel do estado na economia, especialmente na área social, será revalorizado numa perspectiva de esquerda, coincidente com um dos pontos centrais do programa de Bernie Sanders, ou haverá um ainda maior crescimento do capital privado da indústria médica e farmacêutica?

A quarentena será uma forma hipertrofiada de poder biopolítico dos estados, com capacidade para proibir até festas de aniversário ou funerais, separar pacientes em agonia de qualquer contato com parentes e entes queridos, que irá contaminar a cultura global com um ainda maior tabu no contato intercorporal?

O encapsulamento em vivências virtuais com interações sociais apenas por meio de telas será ainda mais reforçado intensificando de forma paroxística a condição contemporânea já patológica de compulsividade na digitação contínua na economia da atenção capturada?

Ou haverá uma rearticulação das esferas públicas por meios digitais, inclusive na perspectiva de expansão da participação democrática em sociabilidades e meios de pressão pela internet?

A cultura burocrática ritualística das reuniões presenciais será substituída por uma interação totalmente descorporificada. Por email, zap e vídeo-conferência se poderá mudar as práticas de gestão administrativa em todas as esferas?

O dinheiro em papel, infecto veículo de micróbios, será totalmente abolido e tudo se poderá pagar por celular?

O colapso financeiro levará ao império das moedas eletrônicas?

Será um cenário como em 2008, com os estados conseguindo salvar bancos e empresas com o comprometimento de recursos públicos que levaram depois à diminuição do poder de compra e aumento da miséria?

E, depois, teremos como a partir de 2011, uma reação social de revoltas de massas, com primaveras dos povos tornando a revolução o novo contágio, ainda mais epidêmico?
E as forças do fascismo, serão reforçadas, com imposição de controles totais de fronteiras, xenofobia oficial e proibição de estrangeiros, com poderes políticos sanitários absolutistas, impondo um neo-higienismo racista e militarista?

Ainda não se sabe se os EUA e, principalmente, o sul pobre do globo, vão repetir os cenários chinês e europeu. Ainda não se deu um cenário catastrófico num país pobre e densamente povoado. Mas, as perspectivas da nova era estão traçadas, falta definir em qual intensidade isso ocorrerá.



Henrique Carneiro é ativista Antiproibicionista e professor de História da Universidade de São Paulo (USP)

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Um mundo às avessas: Dr. Drauzio Varella e seu abraço “criminoso”

Antes de escrever qualquer coisa sobre o tema desta postagem, entendo ser necessário fazer alguns esclarecimentos àqueles que não me conhecem ou jamais tenham acompanhado as postagens deste meu (abandonado) blog:

  1. Sou ateu;
  2. Racionalmente, defendo que devemos tratar todo e qualquer ser humano, independente do que este tenha feito em seu passado, com humanidade;
    • Logo, um tratamento humanitário a quem quer que seja, inclusive encarcerados, é dever de todos aqueles que se entendem como pertencentes ao gênero humano.
  3. Tratar com humanidade significa respeitar uma série de direitos básicos assegurados a todo e qualquer ser humano independente de sua classe social, etnia, nacionalidade, cultura, religião, profissão, gênero, orientação sexual ou qualquer outra variante que possa diferenciar os seres humanos.
    • Dito de outra forma, tratar o outro com humanidade significa, minimamente, respeitar os Direitos Humanos.

Isso posto, vamos direto ao tema! Me parece uma grande estupidez que alguém tenha esperado que o Dr. Drauzio Varella fosse reagir de outra forma ao ser informado que Suzy de Oliveira, a detenta que ele apresentou ao Brasil no programa Fantástico (01 mar. 2020), encontra-se detida na penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos (SP), por ter estuprado e matado uma criança de 9 anos em 2010. Segundo nota divulgada pelo médico:

Em todos os lugares em que pratico a medicina, seja no meu consultório ou nas penitenciárias, não pergunto sobre o que meus pacientes possam ter feito de errado. Sigo essa conduta para que meu julgamento pessoal me impeça de cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico. […[ Sou médico, não juiz.

Ao ler a enxurrada de editoriais, postagens e comentários que inundou as redes sociais em resposta à nota do Dr Drauzio Varella, fica-se com a clara sensação de que boa parte dos brasileiros esperava uma retratação do médico. Uma nota, um vídeo ou mesmo um espaço em seu quadro no Fantástico no qual ele apareceria pedindo desculpas pelo “crime” de ter abraçado uma homicida em rede nacional. Pior, os comentários são tão cheios de ódio que chegam mesmo a defender como justificáveis as violências, a tortura, o estupro e a solidão sofridas por Suzy de Oliveira dentro da penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos (SP). Para muitos dos que deixaram suas opiniões nas redes sociais, Suzy não deveria sequer ter sido presa, mas sim morta com requintes de crueldade. O Dr Drauzio Varella, portanto, errou ao se comover com a série de violências e abandono sofrido por Suzy. Nessa forma torta de ver o mundo, o abraço oferecido por Drauzio à detenta é tão criminoso e ofensivo como ela própria.

Drauzio Varella abraça a detenta Suzy em reportagem do Fantástico - Reprodução

Dr. Dráuzio Varella abraça a detenta Suzy de Oliveira em reportagem do Fantástico. Imagem: reprodução.

Diante desse cenário é difícil não chegar à conclusão de que vivemos em uma sociedade hipócrita. Uma sociedade que fala muito de amor, cuja divindade insiste na prática do perdão e da empatia, mas que, ao contrário, pratica somente o ódio e a vingança. Se não é assim, como entender o modo como essa sociedade vem a público cobrar o arrependimento de um médico pela forma humana como ele tratou uma detenta? Como compreender o ódio que um simples abraço, fruto da compaixão que o Dr. Drauzio sentiu pelo sofrimento daquela detenta, despertou em milhares de brasileiros? Um crime hediondo, como o cometido por Suzy, deve tirar de cada um de nós a capacidade de nos sensibilizar com o fato de ela ter sido estuprada? De ela ter se prostituído por um sabonete ou uma pasta de dentes? De ela ter contraído AIDS na penitenciária? De ela não ter recebido uma única visita de parentes e amigos em mais de oito anos?  Não teria sido a própria divindade cristã aquela a ensinar o amor e o perdão em lugar da vingança, do olho por olho e dente por dente?

Em uma sociedade democrática, que preza por valores republicanos e signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nenhum presidiário, por pior que tenha sido seu crime, deveria ser submetido à violências de qualquer natureza, tortura, estupro, prostituição e descaso, quer do Estado, quer de sua família. Ao contrário, todos merecem ser tratados, minimamente, como seres humanos. O Estado, por sua vez, não pode ser criminoso ou sequer conivente com crimes cometidos contra pessoas que estão sob sua custódia. A integridade física de seus detentos, bem como o respeito aos Direitos Humanos, é o mínimo que o Estado deve garantir a seus cidadãos. Fora disso é a barbárie!

Nesse sentido, o Dr. Drauzio Varella, muito mais do que um profissional exemplar, nos oferece uma lição de humanidade. Sendo ateu declarado, com um único abraço relembrou a imagem do Cristo crucificado em meio a dois criminosos. Sem se importar com o crime de Suzy, a deu um tratamento humano e digno. Ofereceu-lhe o que há de melhor em nós, humanos: amor incondicional. Essa, aliás, é também a última lição do Cristo na cruz. A Bíblia nos conta que Jesus jamais perguntou a Dimas qual fora o seu crime antes de lhe assegurar-lhe o perdão e uma passagem direta para o Paraíso. É realmente de se lamentar que boa parte do “Brasil cristão” não veja no abraço apertado dado pelo Dr Drauzio Varella em Suzy de Oliveira o exemplo máximo daquela que seria sua própria divindade.

Charge_Latuff_CristoCrucificado

Charge: Carlos Latuff (2020)

Por fim, queria apenas registrar minha tristeza ao constatar que estamos vivendo, há muitos anos já, em um mundo às avessas. Um mundo no qual um ateu parece ser mais cristão que muitos dos que se denominam seguidores de Jesus. Um mundo em que um simples abraço pode provocar tanto ódio. Pobre Jesus, cujo exemplo não floresce no coração de pedra de seus seguidores. Pobre Brasil, hipócrita até a medula. Pobre humanidade, que sonha com o amor, mas vive do ódio.

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09/03/2020 · 15:34