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[VERMELHO] José Mujica oferece saída ao mar para Bolívia e Paraguai

O presidente do Uruguai, José Mujica, pretende ajudar a Bolívia e o Paraguai a terem a tão almejada saída ao mar, para que estes países tenham a possibilidade de melhorar o escoamento de seus produtos. A ideia do mandatário uruguaio vai além: ele quer tornar o projeto do porto de águas profundas, no estado de Rocha, um espaço aberto para todos os países do Mercosul, como forma de integração regional. A informação foi publicada no início do mês pelo jornal El Observador.

Da redação do portal Vermelho
publicada originalmente em 24.dez.2013

José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai.

De acordo com Mujica, após uma reunião com a presidenta Dilma Rousseff, o Brasil irá financiar parte do porto. A proposta aos únicos países sem saída ao mar da América do Sul foi apresentada na semana passada pelo ministro de Transporte e Obras Públicas do Uruguai, Enrique Pintado. 

Paraguai e Bolívia são os maiores produtores de dormente (peças de madeira que formam parte do trilho do trem) da região. Portanto, o objetivo das autoridades uruguaias é realizar uma troca entre os países para que se criem rotas até o porto de Rocha, uma vez que a questão ferroviária será fundamental para a integração. 

“(Para isso) Temos de mudar a matriz da infraestrutura do Uruguai. Precisamos quebrar o desenho do inglês (ferroviário), por meio do qual as principais rotas convergentes de comunicação terrestre levam até o porto de Montevidéu”, afirmou Pintado em entrevista ao El Observador. 

“Precisamos substituir o modelo inglês por um modelo integracionista. Temos que dar prioridade à aproximação do rio Uruguai com a fronteira do Brasil, bem como priorizar o Uruguai transversal através do porto de águas profundas de Rocha”, agregou o ministro. Segundo ele, para que o porto seja a principal mudança estrutural dos próximos 200 anos, a infraestrutura deve ser planejada para tal.

Mujica, por sua vez, disse em seu programa de rádio desta segunda-feira (23) que deseja que o “Paraguai possa sair ao oceano Atlântico com a sua madeira, seus minerais e sua soja; e que a Bolívia possa fazer o mesmo. Isso significa desenvolvimento para a região e um trabalho logístico de mão de obra para o Uruguai”.

Para o presidente uruguaio, “integrar significa construir infraestrutura e oferecer com generosidade um porto que possa ser propriedade comum dos governos regionais”.

As autoridades uruguaias devem oficializar a obra do porto de águas profundas em 2014. A construção será iniciada ainda durante o mandato do presidente José Mujica. O cronograma oficial estima que a obra terá um custo inicial de US$ 1 bilhão.


Théa Rodrigues, da redação do VermelhoCom informações do El Observador

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[IGOR FUSER] A América do Sul em busca da riqueza energética

O portal Outras Palavras acaba de publicar um texto de Igor Fuser, doutor em ciência política e professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, analisando como os países sul americanos conseguiram, a partir da virada para o século XXI, reconquistar o controle da exploração de suas reservas de recursos energéticos, antes controlada por empresas estrangeiras.

O texto abaixo, cujo título original é “O nacionalismo de recursos no século 21”1, corresponde ao capítulo 10 do livro “Energia e Relações Internacionais” (Editora Saraiva, 2013), de Igor Fuser. O autor, que ofereceu o texto aos leitores de “Outras Palavras”, convidou a todos para o lançamento do livro, junto com debate de sua obra, realizado nesta quinta-feira (26), às 18h, no curso de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, Sala 117-A Prédio Novo (Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes – São Paulo.

Gasoduto boliviano: em 2006, país nacionalizou uma de suas riquezas naturais mais importantes.

O NACIONALISMO DE RECURSOS NO SÉCULO 21
por Igor Fuser | para o Outras Palavras

Como países da região reconquistaram, a partir da virada do século, petróleo, gás e eletricidade antes controlados por empresas estrangeiras

O papel do Estado na gestão dos recursos energéticos

Igor Fuser

Igor Fuser, doutor em Ciência Política pela USP e professor do curso de Relações Internacionais da UFABC.

No período que se inicia em 2000, a tendência de alta dos preços da energia inverteu a prolongada depreciação dos recursos energéticos ao longo das décadas de 1980 e 1990. No mundo inteiro, fortaleceu-se a posição das empresas estatais de hidrocarbonetos em sua relação com as transnacionais. Conforme já foi relatado no Capítulo 5, atualmente 77% das reservas mundiais de petróleo se encontram sob o controle de estatais ou semiestatais. Essas empresas – conhecidas pelo acrônimo em inglês NOCs, de National Oil Companies – administram seus recursos energéticos a partir de interesses que nem sempre coincidem com as prioridades do mercado internacional e dos países mais desenvolvidos2. As NOCs, como agentes das políticas públicas traçadas pelos respectivos governos, geralmente buscam outros objetivos além de maximizar a extração e os lucros, tais como a redistribuição da renda nacional, a geração de receitas fiscais e a promoção do desenvolvimento. Estimulados pela alta dos preços, os governos em todos os países produtores de hidrocarbonetos têm procurado reforçar o controle sobre esses recursos, adotando medidas voltadas para ampliar a sua participação na renda petroleira, ou seja, nos excedentes gerados pelas exportações de petróleo e gás natural.

No plano político, essa postura se traduz no chamado nacionalismo de recursos, ou seja, a gestão dos recursos energéticos – especialmente os hidrocarbonetos – pelos Estados proprietários das reservas a partir de critérios de “interesse nacional”, o que geralmente inclui a elevação das receitas fiscais até o máximo possível, o foco no desenvolvimento econômico e social e a preservação das reservas com vistas ao benefício das gerações futuras. A Rússia, para citar apenas um exemplo, adotou a partir da posse do presidente Vladimir Putin, em 2000, uma política de reestatização parcial das empresas de petróleo e gás que haviam sido privatizadas após a dissolução da União Soviética. Entre outras iniciativas que desagradaram os governantes ocidentais, Putin obrigou empresas estrangeiras, como a Shell e a BP, a vender à companhia semiestatal Gazprom grande parte das suas ações nos projetos de exploração de petróleo e gás na Sibéria3. Os críticos ocidentais argumentam que, ao agir dessa maneira, o governo russo bloqueia os investimentos necessários para ampliar a sua produção de combustíveis. A resposta de Moscou é que, enquanto os preços mundiais da energia estiverem em alta, não é preciso ter pressa em explorar as reservas do país.

Uma faceta importante na mudança do paradigma de governança energética diz respeito ao marco regulatório da exploração dos hidrocarbonetos. O modelo tradicional de concessão da propriedade das reservas está em declínio e só sobrevive nos EUA e em alguns países europeus, como Reino Unido e Noruega4. Para substituir as concessões, a fórmula adotada atualmente no mundo inteiro é do contrato de produção partilhada (Production Sharing Agreement, em inglês), pelo qual o Estado se associa a uma empresa estrangeira nos termos de um acordo que define as condições de prospecção, exploração e produção.

O contrato estabelece o prazo de duração da parceria e a área a ser explorada, definindo também um valor mínimo para os investimentos a serem feitos pela empresa estrangeira e o regime de cobrança de impostos e taxas. O investidor deposita uma quantia para ter acesso à área onde se imagina existirem hidrocarbonetos – o bônus. O investidor arca, sozinho, pelos riscos da empreitada, independentemente de encontrar ou não hidrocarbonetos a serem explorados. Em caso de sucesso, o valor da produção é dividido com o Estado, em termos previamente combinados. Todas as despesas com a exploração do campo ficam por conta da empresa contratante, que irá recuperar os seus gastos com os lucros da produção.

A reversão das políticas neoliberais na América Latina

Nos países latino-americanos, a alta dos preços no mercado global da energia trouxe um poderoso alento para a retomada da tendência histórica de políticas nacionalistas na exploração dos hidrocarbonetos. Ao longo de todo o século 20, a América Latina protagonizou episódios que se tornaram referência na disputa global entre os Estados nacionais e as empresas transnacionais pelo controle do petróleo. Na Argentina, em 1922, criou-se a primeira empresa estatal para a prospecção e produção de petróleo, a Yacimientos Petroliferos Fiscales (YPF). Em 1936, a Bolívia se tornou o primeiro país do mundo – depois da União Soviética – a expropriar uma empresa petrolífera estrangeira5. Dois anos depois, em 1938, o México deu um passo adiante e instaurou o monopólio estatal do petróleo pela primeira vez em um país capitalista, expropriando, a exemplo da Bolívia, as transnacionais que operavam em seu território. E a Venezuela, muito antes de nacionalizar o seu petróleo, em 1976, já exercia um papel de liderança na luta global pela apropriação da renda petroleira. Em 1948, inaugurou o movimento internacional pela repartição dos ganhos entre os Estados produtores e as empresas concessionárias na base de 50-50, adotando uma medida unilateral nesse sentido, imediatamente imitada pelos países do Oriente Médio6. Mais tarde, em 1960, o governo venezuelano voltou a se destacar como o autor da proposta de criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a OPEP. Este capítulo apresenta, a seguir, a retomada das políticas de nacionalismo de recursos em quatro países sul-americanos a partir do início da década de 2000.

Venezuela: recuperação da soberania petroleira

A Venezuela reassumiu seu papel de vanguarda no cenário global da energia no governo de Hugo Chávez, que chegou à presidência, em dezembro de 1998, com uma plataforma eleitoral em que se sobressaía a retomada do controle da riqueza petroleira pelo Estado a fim de utilizar as receitas dessa indústria em benefício da maioria da população, mergulhada na pobreza. Foi por iniciativa de Chávez que a OPEP, a partir de 2000, adotou uma política restritiva na oferta global de petróleo a fim de elevar os preços do produto. De fato, o preço do barril de petróleo, que era de US$ 16,2 no início de 1999, passou para pouco mais de US$ 20 às vésperas dos atentados de 11 de setembro de 20017. Essa mudança nas políticas da Opep deu o impulso inicial à tendência altista – por efeito de motivos estruturais e do crescimento acelerado da demanda – e se mantém até a atualidade. No plano doméstico, Chávez tomou uma série de medidas para recuperar o controle do Poder Executivo sobre a empresa estatal PdVSA, que passava por um processo de privatização indireta (a chamada “abertura petroleira”), e sobre as reservas petrolíferas do país, parcialmente entregues à exploração por empresas estrangeiras por meio de joint ventures com a PdVSA8.

Em novembro de 2001, um Congresso de maioria chavista aprovou a Ley Orgánica de Hidrocarburos, que aumentava os repasses de receitas da PdVSA para o orçamento federal e reduzia drasticamente a margem de autonomia da empresa estatal em relação ao poder público. Chávez passou a ser acusado pela grande mídia e pelos setores empresariais conservadores de dividir o país, de atentar contra a propriedade privada e de planejar a implantação de um regime político nos moldes cubanos. O descontentamento desses setores culminou com o golpe de Estado civil-militar de 11 de abril de 2002, que contou com a participação da maioria dos executivos da PdVSA. O golpe fracassou, mas os opositores de Chávez lançaram uma nova tentativa golpista com uma paralisação (locaute) deflagrada a partir da PdVSA, em dezembro de 2002, que levou a economia do país à beira do colapso. O movimento se desfez depois de três meses de intenso confronto social, sem atingir seu objetivo de depor o presidente. O governo demitiu 12 mil funcionários da PdVSA (o equivalente a 40% dos efetivos da estatal) por envolvimento na paralisação.

Fortalecido pelas desastradas tentativas golpistas e, mais ainda, pela vitória no referendo revogatório do mandato presidencial, realizado – por convocação das forças oposicionistas – em agosto de 2004, Chávez aprofundou o rumo nacionalista de sua política para os hidrocarbonetos. Em 2005, o governo venezuelano declarou ilegais os 32 convênios firmados com empresas petroleiras transnacionais, obrigando-as a migrar para empresas mistas sob o controle da PdVSA, que passou a ter uma participação mínima de 60% nas novas joint ventures. Os royalties cobrados sobre esses empreendimentos foram aumentados de 16,7% para 33,3%. A mudança na composição da receita fiscal, aumentando os royalties e reduzindo os impostos sobre os lucros, tinha o objetivo de restringir a margem para que as empresas pudessem evadir ou sonegar impostos por meio de manobras contábeis. Como explica o analista argentino Diego Mansilla, o governo venezuelano continuava a reconhecer a necessidade dos investimentos externos, mas passava a atribuir a eles um papel complementar aos aportes estatais – e instaurava a PdVSA como o ator dotado do poder de decisão9. No ano seguinte, 2006, as mesmas regras foram estendidas para as parcerias com as empresas estrangeiras na exploração do petróleo superpesado da Faixa do Orenoco. Em ambos os casos, a maioria das petroleiras transnacionais aceitou as novas condições do governo venezuelano. Das 22 transnacionais petroleiras que operavam no país, apenas quatro – a italiana ENI, a francesa Total e as estadunidenses ConocoPhillips e ExxonMobil – rejeitaram os novos contratos, encaminhando o litígio a tribunais internacionais.

As receitas adicionais obtidas graças à revisão das regras fiscais para o petróleo financiaram uma rede de programas sociais de amplo alcance, que permitiram ao governo venezuelano reduzir pela metade, em apenas cinco anos, a parcela da população vivendo em condições de pobreza – de 55,1% em 2002 para 27,5% em 200710. Os salários, a alimentação e o acesso ao estudo e aos serviços de saúde melhoraram intensamente, o que explica os altos índices de apoio popular obtidos por Chávez. Em contrapartida, a PdVSA diminuiu nesse período sua capacidade produtiva, em parte pela queda dos investimentos – já que a maior parte de sua receita passou a se destinar ao financiamento das políticas sociais do governo – e pela perda de um grande número de quadros qualificados em consequência dos conflitos do início da década.

Equador: o petróleo na “Revolução Cidadã”

Um dos principais exportadores regionais de petróleo, o Equador começou a aplicar medidas inspiradas pelo “nacionalismo de recursos” na gestão do presidente Alfredo Palacio, que assumiu o governo, em 2005, em substituição a Lucio Gutiérrez, derrubado em um levante popular de grandes proporções, conhecido como a “Revolução Cidadã”. Em maio de 2006, Palacio expulsou a empresa estadunidense Occidental Petroleum (Oxy), responsável por 20% da produção petroleira do Equador. A medida foi tomada porque a Oxy desrespeitou os termos do contrato assinado com o governo equatoriano ao vender 40% de suas ações à empresa canadense Encana, sem submeter essa transação à aprovação prévia das autoridades11. Em represália, o governo de George W. Bush suspendeu as conversações para a assinatura de um acordo bilateral de livre-comércio nos moldes da ALCA – uma medida de efeito punitivo discutível, já que o novo governo equatoriano vinha demonstrando pouco entusiasmo por esse projeto, iniciativa de seus antecessores. A Oxy, por sua vez, recorreu à arbitragem do Centro Internacional de Ajuste das Divergências sobre Investimentos (Ciadi), mas a decisão desse organismo foi favorável ao Equador.

Mais importante do que o confronto com os EUA no episódio da Oxy foi a decisão de Palacio, tomada um mês antes, em abril de 2006, de rever a repartição dos lucros do petróleo – o principal produto de exportação do país – entre o Estado equatoriano e as transnacionais petroleiras, de modo a ampliar significativamente a parcela arrecadada pelos cofres públicos. De acordo com a Lei de Hidrocarbonetos vigente na época, as empresas privadas que operam os campos petrolíferos equatorianos devem conceder ao Estado ao menos a metade dos chamados “ganhos extraordinários”, ou seja, aos ganhos obtidos pela diferença entre os preços efetivamente recebidos pelas exportações do petróleo e o preço da época da assinatura dos contratos. Ocorre que desde 2003, quando a maioria dos contratos foi assinada, os cálculos da repartição da renda vinham sendo feitos com base nos preços vigentes na ocasião, em torno de US$ 15 por barril de petróleo, quando em 2006 esses valores já ultrapassavam os US$ 70. Com isso, os ganhos das empresas estrangeiras se multiplicaram astronomicamente, enquanto a parcela destinada ao Equador tinha um aumento apenas marginal. A decisão de Palacio obrigou as empresas estrangeiras a ressarcir o Estado equatoriano no valor da diferença em relação aos preços reais, instituindo essa regra para os cálculos a serem feitos daquela data em diante12. Chávez elogiou a medida e, imediatamente depois, ofereceu ao governo de Palacio um acordo para refinar o petróleo equatoriano na Venezuela, com uma economia de US$ 300 milhões por ano13.

As políticas de “nacionalismo de recursos” no Equador se intensificaram a partir da posse, em janeiro de 2007, de Rafael Correa, eleito com o forte apoio dos movimentos sociais e dos setores de esquerda. Portador de um discurso crítico aos EUA e ao neoliberalismo, Correa defendeu em sua campanha um programa de transformações econômicas, políticas e sociais que o aproximou das perspectivas de Chávez e de Morales – com destaque para a proposta, comum aos três presidentes, de convocar uma Assembleia Constituinte encarregada de “refundar” a república. No campo petroleiro, deixou clara sua intenção de adotar um enfoque nacionalista, o que incluiria o regresso do Equador à OPEP, o que de fato se concretizou. Essas posições, que inevitavelmente alteraram o panorama petroleiro equatoriano em prejuízo do capital externo.

Bolívia: a defesa do gás natural

Ideias de soberania energética levaram centenas de milhares de bolivianos às ruas, na primeira década do século 21, para derrubar dois presidentes – Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, quase dois anos depois – e eleger um terceiro, Evo Morales. Na Bolívia, a revisão das regras neoliberais para a indústria do petróleo e do gás natural tem seu marco inicial na primeira “guerra do gás”, de outubro de 2003, quando uma insurreição popular derrubou Sánchez de Lozada (principal arquiteto das privatizações na década de 1990) e colocou no topo da agenda política a nacionalização dos hidrocarbonetos, que vinham sendo explorados em condições extremamente favoráveis pelas empresas transnacionais. Entre essas empresas se destacava a Petrobras, na dupla condição de operadora das principais reservas gasíferas da Bolívia e do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), por onde transitam as remessas de gás boliviano que abastecem importantes setores industriais no sudeste brasileiro. O presidente deposto foi substituído pelo seu vice, Carlos Mesa, que se manteve hesitante entre atender as demandas populares e se curvar às pressões das empresas estrangeiras, contrárias a qualquer alteração nas regras do jogo que garantiam a elas uma participação de até 82% na receita obtida com o gás natural. O impasse se resolveu com uma nova rebelião popular – a segunda “guerra do gás”, de julho de 2005 –, que provocou a renúncia de Mesa e a antecipação das eleições presidenciais, com a vitória do principal líder dos movimentos sociais bolivianos, Evo Morales, que assumiu o governo em janeiro de 2006.

Em cumprimento às suas promessas de campanha, Morales anunciou em 1º de maio de 2006 a nacionalização dos hidrocarbonetos, afetando os interesses da Petrobras e das demais transnacionais com negócios na Bolívia. A decisão do governo boliviano provocou uma crise diplomática com o Brasil, que recebia, na época, 50% do seu suprimento de gás natural por meio do Gasbol. A Petrobras protestou contra a “medida unilateral” dos bolivianos, mas o presidente Lula reconheceu a legitimidade de nacionalização com um “ato de soberania” e, contrariando os setores conservadores da sociedade brasileira que propunham represálias contra a Bolívia, trabalhou para desarmar as tensões e buscar uma solução negociada.

Diferentemente das experiências de nacionalização em outros países (e na própria Bolívia, onde medidas similares já tinham sido adotadas no passado), as novas regras adotadas pelo governo boliviano admitem a permanência das empresas estrangeiras na exploração do petróleo e do gás natural. O que mudou, no essencial, foi a divisão da receita obtida com esses recursos, com o aumento da parcela apropriada pelo Estado para até 70% do total, e a garantia do controle estatal sobre a cadeia produtiva dos hidrocarbonetos. Nesse episódio, os únicos ativos efetivamente nacionalizados foram as duas refinarias da Petrobras, que passaram para o governo boliviano, mediante o pagamento de uma indenização acertada entre as duas partes, depois que a empresa brasileira se recusou a permanecer no empreendimento como acionista minoritária. Os investidores estrangeiros acabaram por assinar novos contratos com as autoridades da Bolívia, assegurando assim a continuidade de seus negócios naquele país. Um fator que acabou contribuindo para um desenlace favorável à Bolívia foi a entrada em cena de um terceiro ator – o governo argentino, chefiado por Néstor Kirchner. No auge do conflito entre as autoridades bolivianas e a Petrobras, em setembro de 2006, Kirchner e Morales assinaram um contrato para o fornecimento de gás boliviano à Argentina em volumes similares aos remetidos ao Brasil, que perdeu assim sua condição de único cliente da Bolívia.

A substituição do modelo neoliberal na indústria dos hidrocarbonetos da Bolívia por uma política de soberania energética trouxe benefícios concretos ao país. Com o aumento da arrecadação fiscal sobre as exportações de petróleo e – principalmente – gás natural, a receita do Estado boliviano com esses recursos saltou de uma média de US$ 300 milhões no período anterior à nacionalização para US$ 1,6 bilhão em 2008, depois que os novos contratos já estavam em vigor. A participação da renda dos hidrocarbonetos no Produto Interno Bruto passou de 5,6% em 2004 para 21,9% em 2009, um avanço que se mostra ainda mais impressionante quanto se constata que, nesse mesmo período, o PIB boliviano duplicou, atingindo US$ 19 bilhões em 2009 – um aumento que se deve, em grande medida, aos efeitos do Decreto de Nacionalização14. Mais importante ainda é verificar que o bom desempenho econômico da Bolívia foi acompanhado por melhorias significativas na distribuição de renda, na redução da pobreza e na elevação do padrão de vida da população em geral.

Paraguai: o contencioso de Itaipu

Outro conflito energético entre o Brasil e um vizinho sul-americano — neste caso, o Paraguai – é o que o envolve a energia gerada pela usina hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo, inaugurada 1983, na fronteira entre os dois países. Embora o empreendimento seja compartilhado, formalmente, em partes iguais, por meio da Binacional Itaipu, as regras vigentes durante quase três décadas para o aproveitamento da eletricidade gerada pela usina beneficiavam claramente o Brasil, que até 2011 comprava a baixo preço a quase totalidade da energia destinada ao Paraguai, sem dar ao parceiro a possibilidade de vendê-la livremente no mercado.

O Tratado de Itaipu – assinado em 1973, quando o Brasil e o Paraguai se encontravam sob ditaduras militares – estabelece que cada um dos países tem direito a 50% da energia, sendo que a parte não utilizada deve ser vendida ao outro a preço de custo. Como o Paraguai abastece quase todas as suas necessidades com apenas 5% da eletricidade gerada por Itaipu, os 45% restantes são automaticamente comprados pela estatal brasileira Eletrobrás, que paga por essa energia apenas uma pequena fração dos preços no mercado global15.

A correção dos termos desiguais da parceria energética em Itaipu é uma antiga reivindicação da sociedade paraguaia, que alcançou o primeiro plano da agenda bilateral após a eleição de Fernando Lugo como presidente do Paraguai, em abril de 2008. Apoiado por uma aliança de movimentos sociais e de partidos de esquerda, Lugo apresentou a revisão do Tratado de Itaipu como um dos principais tópicos de sua plataforma eleitoral. Em julho do mesmo ano, Lugo e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fecharam um acordo pelo qual o Brasil praticamente triplica – de US$ 125 milhões anuais para US$ 360 milhões, em média – o valor do pagamento feito ao Paraguai por abrir mão de sua parte na energia de Itaipu. O acordo estabelece, ainda, que o Paraguai poderá comercializar livremente a sua parcela de energia no mercado elétrico brasileiro ou, ainda, vendê-la a um terceiro país.

Depois de aprovado pelos Congressos dos dois países, o acordo entrou em vigência em agosto de 2011, quando o Brasil efetuou a primeira parcela do pagamento calculado segundo as novas regras. Mas a discussão prossegue, agora em torno da reivindicação paraguaia de que seja feita uma auditoria da dívida do Paraguai para com o Brasil por conta do financiamento da obra.

1 Capítulo 10 do livro Energia e Relações Internacionais, Igor Fuser, Editora Saraiva, 2013.
2 MYERS, Amy; SOLIGO, Ronald. Militarization of Energy: Geopolitical Threats to the Global Energy System, Energy Forum – James A. Baker III Institute for Public Policy of Rice University, Houston (TX), 2008, p.44.
3 KLARE, Michael T.. Rising Powers, Shrinking Planet – The New Geopolitics of Energy. New York: Metropolitan Books, Henry Holt, 2008.
4 SÉRÉNI, Jean-Pierre. “Les Etats s’emparent de l’arme pétrolière”, Le Monde Diplomatique, Paris, Mars 2007, nº 636, p. 18-19.
5 PHILIP, George. Oil and Politics in Latin America: Nacionalist Movements and State Companies. Cambridge (Reino Unido): Cambridge University Press, 1982, p.193-198.
6 YERGIN, Daniel. O Petróleo, São Paulo: Scritta, 1993, p. 444-448.
7 BARROS, Pedro Silva. Venezuela: mudança e perspectivas – A razão chavista. In: CARMO, C.A.; BARROS, P.S.; MONTEIRO, L.V., Venezuela: Mudanças e Perspectiva. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p.88.
8 MOMMER, Bernard. Subversive Oil. In: ELLNER, Steve; HELLINGER, Daniel (eds.), Venezuelan Politics in the Chávez Era. Boulder (EUA), London: Lynne Rienner Publishers, 2003, p. 141.
9 MANSILLA, Diego. Petroleras Estatales en América Latina: entre la transnacionalización y la integración. La revista del CCC [revista virtual]. Enero/abril 2008, nº2. 2008.
10 WEISBROT, Mark. An Empty Research Agenda: The Creation of Myths About Contemporary Venezuela, Center for Economic and Policy Research (CEPR), Washington, Março 2008,
11 LE CALVEZ, Marc. El rediseño de los sistemas de governanza petrolera en el Ecuador y Venezuela. In: FONTAINE, Guillaume; PUYANA, Alicia. (coords.), La Guerra del Fuego – Políticas petroleras y crisis energética en América Latina. Quito: Flacso, 2008, p.61.
12 FONTAINE, Guillaume. Petropolítica – Una teoria de la gobernanza energética. Quito, Lima: Flacso, Abya Yala, Instituto de Estudios Peruanos (IEP), 2010, p.199.
13 WEISBROT, Mark. “Latin America: The End of An Era”. International Journal of Health Services, Vol. 36, No.4, 2006.
14 BARROS, Pedro Silva. “O êxito boliviano durante a crise mundial de 2008-2009”. Boletim de Economia & Política Internacional. Brasília: Instituto de Política Econômica Aplicada, 2010.
15 CANESE, Ricardo. A recuperação da soberania hidrelétrica do Paraguai. In: CODAS, Gustavo (org.), O Direito do Paraguai à Soberania – A questão da energia hidrelétrica, pp. 23-142. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

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XENOFOBIA e racismo: lugar-comum na cabeça da classe média brasileira

Voltando à questão da exploração do gás boliviano, recentemente tomei conhecimento de um texto que foi divulgado no Blog do Nassif, escrito por um certo André Araújo. Antes mesmo do pronunciamento da professora Maristela Basso, o texto é representante do pensamento racista e xenofóbico que habita a cabeça da classe média brasileira e influencia muitos trabalhadores que, por não terem acesso a outra fonte de informação, buscam suas fontes, majoritariamente, nos telejornais, onde a tal mentalidade racista e xenofóbica é um lugar-comum.

Antes de comentar o texto do Sr. Araújo, gostaria que vocês tivessem a oportunidade de lê-lo para que formem sua opinião antecipadamente, e somente depois vou tecer alguns poucos comentários.

Tomei a liberdade de deixar em negrito algumas passagens do texto, representantes do tal pensamento racista e xenofóbico do qual estava falando anteriormente (e aproveitei para colocar uma foto bastante interessante do presidente Evo Morales).

O JOGO DO GÁS BOLIVIANO
por André Araújo | publicado originalmente 24/08/2013

http://money.cnn.com/pf/features/lists/global_gasprices/

O JOGO RUIM DO GÁS BOLIVIANO – A Bolívia viveu no Seculo XX do estanho, metal cuja produção atingiu seu pico antes da Segunda Guerra e caiu muito após 1960. A Bolívia salvou-se com o gás, descoberto na província de Tajira por brasileiros, no começo o Grupo Soares Sampaio (União Brasil Bolívia de Petróleo S.A.) que desenvolveu a exploração com as economias de 10.000 brasileiros que compraram suas ações.

A UBBP foi comprada pela Petrobras, que herdou os campos de San Antonio e San Alberto e construiu um gasoduto de 3.500 quilômetros para trazer o gás para São Paulo, no conjunto um investimento de US$8 bilhões. Todos os governos bolivianos de 1960 até 2003 respeitaram os Acordos de Roboré que davam ao Brasil preferencia e garantia de fornecimento de gás.

Bolivian president Evo Morales

Foto: Martin Alipaz/EPA

Chega ao poder Evo Morales, um populista demagogo que foi eleito pela população aymará do Altiplano e contra o poder politico da região pós andina, a chamada Meia Lua, cinco províncias mais prosperas, desenvolvidas e exatamente onde estava o gás. Morales rompeu todos os acordos do gás, estatizou sem indenização os campos e investimentos da Petrobras,  simplesmente rasgou os tratados e triplicou os preços para o gás despachado ao Brasil.

Antes de Morales, a Petrobrás fez uma longa e cara campanha junto à indústria paulista para encontrar clientes para o gás boliviano que ela produzia. Ao fim dessa longa campanha, cerca de 1.500 industrias paulistas, especialmente de vidro, metais, cimento e cerâmica converteram suas caldeiras para gá, estava criado o mercado. MAS ESSE MERCADO DEPENDE DO PREÇO.

Os índios do altiplano tem merecida fama de teimosos. inconfiáveis e traiçoeiros. Morales, eleito com amplo apoio de seus companheiro ideológicos anti-americanos do Brasil, é hoje o maior inimigo do Brasil. Vai mandar uma delegação para ver se consegue arrancar mais preço do gás vendido ao Brasil. Os industriais de São Paulo tem reconvertido suas caldeiras para óleo combustível, o gás que era barato ficou muito caro e já não compensa.

Mas os preços do gás ESTÃO CAINDO no mundo inteiro pela entrada de Dubai como grande exportador e pela extração de gás de xisto nos EUA.

O Brasil já está pagando à Bolívia MAIS do que a Alemanha paga à Russia pelo gás. Morales não quer saber, com o risco de perder o mercado brasileiro, quer extorquis mais, afinal quanto mais o Brasil o alisa, mais ele despreza o Brasil.

Acaba de assinar um contrato com a GASPROM russa para explorar um novo campo perto dos brasileiros. Nem se dignou a oferece-lo à Petrobras, para que? Pode fazer o que quiser que o Governo do Brasil badala ele, não importa o que faça, afinal ele é companheiro.

O pior é que o Brasil hoje depende mais do gás do quem em 2003, por causa das usinas térmicas que estão operando 24 horas por dia por causa da estiagem nos reservatórios. A Bolívia despacha 29 milhões de BTU, poderia dobrar ou triplicar o despacho se fosse amiga do Brasil e o preço fosse razoável.

O preço do gás NÃO TEM A LOGICA do petróleo, este se venda na porta a quem der mais, o gás depende de um cano que o leve ao destino, Morales NÃO TEM A QUEM VENDER o gás que manda ao Brasil, o Brasil é o unico mercado a mão. Porque pagar mais, ele quer um novo aumento de 20%, já estamos pagando HOJE muito mais que os preços internacionais.

O Presidente Geisel foi premonitório quando no seu período presidencial parou investimentos na Bolívia, dizia que não confiava nos bolivianos, tinha suas razões.

O Brasil aparentemente prefere brigar com a Inglaterra por causa do Davi Miranda do que encarar Morales, é o retrato de nosso politica externa “”independente”.

Luís Nassif, jornalista e blogueiro.

Antes de mais nada, muito me surpreendeu ver tal post publicado no Blog do Nassif sem uma nota ou comentário sequer do dono do blogueiro. As ideias veiculadas no post são, aparentemente, incompatíveis (e até mesmo opostas) com as do autor do blog e, ao divulgar tal ideário, não é difícil que muita gente desavisada passe a associar as ideias racistas e xenofóbicas do post com as do próprio Nassif. Especialmente porque, ao que parece, o tal André Araújo é leitor assíduo do blog e, vez ou outra, tem alguns de seus textos publicados por ali.

Quanto ao texto propriamente dito, além do racismo explícito, percebe-se que o autor sai em uma clara defesa de grupos de industriais e empresários que, para Araújo, descobriram o gás na Bolívia e foram responsáveis pelos investimentos de infraestrutura que permitiram começar a exploração. A Petrobrás, ao ter comprado a UBPP, herdou a exploração nos campos que pertenciam àquele antigo grupo e investiu na construção daquele gasoduto de 3.500 km que destacamos em post anterior, ao trazer o mapa da região para localizá-lo. Após esses investimentos, portanto, Araújo considera que as medidas de Evo Morales, ao nacionalizar os campos em questão e rever os preços dos contratos firmados anteriormente para valores de acordo com os interesses nacionais da Bolívia, trata-se de uma verdadeira traição ao Brasil. Um tapa na cara, ou pior, uma cusparada desse representante dos indígenas do altiplano boliviano na cara de todos os brasileiros.

Ora, nada de novo na argumentação de Araújo. Muito pelo contrário, ele faz uso da mesma lógica que orientava os portugueses em suas pretensões de manter o monopólio da navegação no Atlântico, fechando a exploração do Novo Mundo à franceses, ingleses e holandeses ainda no século XVI (Mare Clausum). Segundo essa lógica, os descobridores, independente dos interesses de todos os demais na região, tem direito ao monopólio de exploração da região e faz de sua descoberta o que bem entender, não importando os outros interesses em jogo (muito menos o dos locais que, no caso em questão, frequentemente eram eliminados).

Como se sabe, os acordos que tiveram como base essa argumentação, dificilmente conseguiram se sustentar, uma vez que os outros interesses acabaram derrubando os monopolistas que, por sua vez, tentavam explorar o máximo que puderem enquanto detinham os recursos sob seu poder. Os exemplos no decorrer da história são inúmeros e aqui posso citar o dos próprios portugueses que perderam seu monopólio de navegação no Atlântico com o Mare Liberum; os bandeirantes (paulistas) que perderam o controle de “suas minas de ouro” para os portugueses através da Guerra dos Emboabas e novamente os portugueses, ao terem que aceitar a independência do Brasil, perdendo o controle de sua colônia num um momento de crise, no qual Portugal pretendia que o Brasil retornasse à sua condição de colônia antes da vinda da família real para o Rio de Janeiro.

Parentese histórico fechado e entrando mais especificamente no caso do gás boliviano, para os senhores como o tal André Araújo, que alegam “defender os interesses do Brasil” (entenda-se por Brasil os industriais paulistas que “descobriram” o gás boliviano e investiram na construção da infraestrutura de exploração do recurso na Bolívia), é inaceitável que, “depois de tudo o que fizemos”, a Bolívia (especialmente os índios do altiplano) tenha seus próprios interesses na exploração do recurso natural que, por acaso, encontra-se no subsolo de seu país. Para estes senhores, não importa sequer que a exploração do gás boliviano já tenha dado lucros exorbitantes, por mais de 30 anos, aos investidores que o exploraram nesse período. Do mesmo modo como os portugueses viam o Brasil antes de 1822, senhores com a mesma mentalidade desse André Araújo, acreditam que o Brasil precisa basear parte de seu crescimento e desenvolvimento na exploração predatória dos recursos bolivianos como se aquele país devesse, pelo fato de termos “descoberto” SUAS JAZIDAS de gás e montado a infraestrutura de exploração, fosse nossa colônia e tivesse que priorizar os interesses brasileiros em detrimento dos seus próprios.

Em suma, nada de novo debaixo do sol, apenas mais do mesmo que vem orientando os “exploradores” do século XVI, os facínoras do século XVII e os colonialistas e neocolonialistas do século XVIII e XIX. Com direito a uma saudade de Salazar que usava o mesmo argumento para defender porque Angola jamais poderia tornar-se independente de Portugal na década de 1960.

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Para professora da USP, a Bolívia é “insignificante” em todas as perspectivas.

Nessa última quinta-feira (29), a professora de direito internacional da USP, Maristela Basso, ao comentar notícia sobre o episódio da fuga do senador boliviano, Roger Pinto Molina, para a embaixada do Brasil em La Paz, criando uma crise diplomática nas relações entre Brasil e Bolívia, afirmou que:

“(…) a Bolívia é insignificante em todas as perspectivas, é um país, sim, que tem uma fronteira enorme com o Brasil, dos nossos vizinhos o que tem a maior fronteira terrestre, mas nós não temos nenhuma relação estratégica com a Bolívia, nós não temos nenhum interesse comercial com a Bolívia, os brasileiros não querem ir para a Bolívia, os bolivianos que vêm de lá, vêm tentar uma vida melhor aqui, não contribuem com o desenvolvimento tecnológico, cultural, social e desenvolvimentista do Brasil. Então, a Bolívia é um assunto menor! (…)”

Abaixo segue trecho do Jornal da Cultura no qual a professora Maristela Basso faz o comentário.

Depois de certa incredulidade ao ser informado de que a professora teria proferido tal comentário em rede nacional, fui verificar a edição do telejornal e, ainda embasbacado, não pude deixar de questionar como poderia ser que, uma pessoa na posição de Maristela Basso, tenha um pensamento tão equivocado em relação a um país extremamente estratégico para o Brasil no cenário regional – quer no presente, quer projetando para o futuro – como a Bolívia. Foi inevitável não indagar-me sobre como uma pessoa com pensamento tão medíocre poderia estar ocupando a cadeira de Direito Internacional de uma das mais renomadas universidades do país, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da manutenção de tal pessoa no cargo após tamanho disparate.

Embora a professora não tenha levado em consideração, atualmente a Bolívia é um dos principais fornecedores de gás natural para o Brasil, segundo uma apuração simples que pode ser feito na própria Internet, verifica-se que aproximadamente três quartos de todo o gás natural consumido pelas indústrias de São Paulo são provenientes da Bolívia. Na relação comercial estabelecida entre os países – que inclusive gerou uma polêmica quando Lula sentou com Evo Morales para rever os valores dos contratos – o gás chega ao Brasil através de um gasoduto de mais de 3000 quilômetros interligando a Bolívia (Rio Grande) ao Brasil, entrando no país através de Corumbá, passando por cidades como Campo Grande (MS), Três Lagoas (MS), Campinas (SP), São Paulo (SP), Curitiba (PR), Florianópolis (SC)  até chegar ao seu destino final, Porto Alegre (RS), sendo fundamental para todo o parque industrial da região sul-sudeste do país.

Abaixo segue mapa com o gasoduto Bolívia Brasil.

Gasoduto Bolivia Brasil

Gasoduto Bolívia-Brasil. Fonte: Maria de Fátima Salles Abreu Passos para a Revista Economia e Energia. Ano II, n. 10, 1998.

Ora, se eliminássemos o teor xenofóbico das declarações de Basso, o simples fato dela ter desconsiderado que atualmente a Bolívia é um parceiro comercial mais do que estratégico no fornecimento energético do Brasil, já seria uma declaração polêmica por revelar uma ignorância incompatível com a posição ocupada pela professora de Direito Internacional.

Se considerarmos a relação Brasil-Bolívia em uma projeção futura, a mesma segue sendo de fundamental importância estratégica na área do fornecimento energético, pela simples fato de a Bolívia ser a detentora da maior reserva mundial de Lítio, tal como já observado em post publicado neste blog: O lítio na América do Sul e o eixo da geopolítica energética mundial.

Reservas de lítio no mundo e a posição estratégica da Bolívia no setor.

Depois de ter passado muitos anos “amargando” com baixa demanda mundial, a situação do lítio mudou completamente quando cientistas descobriram sua enorme capacidade de armazenar energia elétrica. Logo passou a ser utilizado como matéria prima na produção de baterias de longa duração em aparelhos eletrônicos como celulares e notebooks e, posteriormente, verificou-se que sua capacidade de armazenamento era tão grande que o lítio acabou transformando os automóveis movidos à baterias elétricas na grande opção ecológica e sustentável em substituição aos veículos movidos à base de petróleo.

O fato do lítio ser um mineral que se concentra em região de salares, faz com que países como Bolívia (Uyuni), Chile (Atacama) e Argentina (Hombre Muerto) estejam situados entre os maiores detentores mundiais de reservas deste recurso. Se considerarmos somente a Bolívia, onde está localizado o Salar de Uyuni, veremos que aproximadamente 29% de toda a reserva mundial de lítio está concentrado nesta região, segundo tabela da United States Geological SurveySaindo da escala nacional para olhar os números continentais, as reservas sul americanas são mais expressivas e atingem um montante de 20,6 milhões de toneladas, ou 62,6% do total. Tais dados revelam, diferentemente do asseverado pela professora Basso, que a Bolívia se trata de um país com o qual o Brasil deve manter uma relação estreita nas próximas décadas, em função de uma estratégia da nova geopolítica energética que se formula com a substituição do petróleo por novas fontes de energia.

Aos que ficaram interessados em obter maiores informações sobre o papel do lítio na geopolítica energética mundial, recomendo a leitura do post em que trato sobre o assunto.

Por fim, há ainda o teor racista e xenofóbico empregado pela professora Maristela Bassos em sua declaração. A comunidade boliviana residente em São Paulo reagiu imediatamente às declarações divulgadas no Jornal da Cultura e, segundo matéria do portal R7, a comunidade “recebeu de forma indignada as declarações de Maristela Basso. Carmelo Muñoz Cardoso, presidente da ADRB (Associação de Residentes Bolivianos), que existe desde 1969, encaminhou pedido de direito de resposta à TV Cultura”.

Segundo a declaração de Carmelo Muñoz Cardoso:

“As declarações proferidas têm um alto grau ofensivo a toda comunidade boliviana. A afirmação de que a Bolívia é insignificante demonstra notório racismo, total xenofobia, absoluto preconceito e desrespeito pelo nosso país. Além das medidas legais, requeremos à TV Cultura o direito de resposta”.

Ao ver as declarações da professora, não há como negar o teor xenofóbico embutido no infeliz comentário. Ao proferi-lo, Basso parecia reproduzir comentários de alguns setores nacionalistas europeus ao se posicionarem a respeito dos imigrantes africanos em seus países. A relação de seu comentário com a posição de uma direita nacionalista racista e xenófoba é quase inescapável, ainda mais em um momento quando também circula imagens e campanhas em outros cantos do mundo como a reproduzida abaixo, feita pelo Partido do Povo da Suíça (SVP), à respeito dos imigrantes que vivem naquele país.

Fotos utilizadas pela campanha do partido SVP (Suíça) tentando mostrar um contraste entre “duas Suíças”. Fonte: Opera Mundi

Concluo o post, uma vez mais, estarrecido com a ignorância, o racismo e a xenofobia demonstrado pela professora em seu comentário. Incompatíveis com a posição da professora na cadeira de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP, entendo que os mesmos mereciam até um comunicado formal da Faculdade pedindo esclarecimentos da professora.

Declaro meu total repúdio às declarações de Maristela Basso e faço coro à comunidade boliviana que exige direito de resposta da TV Cultura e, mais do que isso, um pedido formal de desculpas da professora pelo comentário infeliz proferido nesta última quinta-feira.

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Governo brasileiro expressa repúdio ao constrangimento imposto ao presidente Evo Morales

Nesta quarta-feira (3) a presidenta Dilma Rousseff emitiu nota referente ao constrangimento imposto ao presidente da Bolívia, Evo Morales, que teve seu avião presidencial impedido de voar sobre  o espaço aéreo de alguns países europeus.

Presidenta Dilma Rousseff

Segundo a nota, o constrangimento não atinge somente a Bolívia, mas a toda América Latina, comprometendo o diálogo entre os continentes e possíveis negociações entre eles. Dilma ainda afirma que encaminhará iniciativas em todas as instâncias multilaterais para que situações como essa nunca se repitam.

Como noticiou nesta quarta-feira o jornal O Estado de S.Paulo, o chanceler boliviano, David Choquehuanca, afirmou que o avião de Morales foi proibido de aterrissar em Portugal para uma escala e impedido de entrar no espaço aéreo francês em razão da desconfiança de que o ex-agente americano Edward Snowden estivesse a bordo. O incidente ocorreu após Evo declarar, na Rússia, estar disposto a avaliar um pedido de asilo feito pelo fugitivo.

A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) deve fazer uma reunião extraordinária nesta quinta-feira, 4, para tratar do assunto.

Abaixo segue a íntegra da nota tal como divulgada pelo Blog do Planalto.

O governo brasileiro expressa sua indignação e repúdio ao constrangimento imposto ao presidente Evo Morales por alguns países europeus, que impediram o sobrevoo do avião presidencial boliviano por seu espaço aéreo, depois de haver autorizado seu trânsito.

O noticiado pretexto dessa atitude inaceitável – a suposta presença de Edward Snowden no avião do Presidente –, além de fantasiosa, é grave desrespeito ao Direito e às práticas internacionais e às normas civilizadas de convivência entre as nações. Acarretou, o que é mais grave, risco de vida para o dirigente boliviano e seus colaboradores.

Causa surpresa e espanto que a postura de certos governos europeus tenha sido adotada ao mesmo momento em que alguns desses mesmos governos denunciavam a espionagem de seus funcionários por parte dos Estados Unidos, chegando a afirmar que essas ações comprometiam um futuro acordo comercial entre este país e a União Europeia.

O constrangimento ao presidente Morales atinge não só à Bolívia, mas a toda América Latina. Compromete o diálogo entre os dois continentes e possíveis negociações entre eles. Exige pronta explicação e correspondentes escusas por parte dos países envolvidos nesta provocação.

O governo brasileiro expressa sua mais ampla solidariedade ao presidente Evo Morales e encaminhará iniciativas em todas instâncias multilaterais, especialmente em nosso continente, para que situações como essa nunca mais se repitam.

Dilma Rousseff
Presidenta da República Federativa do Brasil

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Bolívia promulga Lei Mãe Terra

O presidente da Bolívia, Evo Morales, ao lado do vice, Álvaro Garcia Linera, na promulgação da lei. Foto: ABI

Em 15 de outubro de 2012, o presidente da Bolívia, Evo Morales, promulgou a primeira legislação mundial dando à natureza direitos iguais aos dos humanos. A Lei da Mãe Terra, que conta com apoio de políticos e grupos sociais, é uma enorme redefinição de direitos. Ela qualifica os ricos depósitos minerais do país como “benção”, e espera-se que promova uma mudança importante na conservação e em medidas sociais para a redução da poluição e controle da indústria, em um país que tem sido destruído há anos por conta de seus recursos.

Como noticiou o jornal Brasil de Fato, quando a lei foi promulgada, o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera dizia que a nova legislação introduz os conceitos ancestrais de preservar a natureza porque é um ser vivo. Esta lei introduz a concepção indígena ancestral da natureza como ser vivo, no qual os seres humanos são uma criatura a mais, e não podem maltratar a natureza porque é mais importante do que nós, por isso tem direito à vida. Já o presidente da Assembleia Legislativa afirmou que é uma bonita lei que nasceu das organizações sociais para converter em lei dos bolivianos e bolivianas o modo de pensar e viver das nações primitivas.

García Linera recordou que atualmente existem interesses capitalistas que supostamente querem defender a natureza, mas, na realidade, o que objetivam é ganhar dinheiro com suas estratégias. Falou sobre o chamado capitalismo verde e destacou que muitos parques nacionais na Bolívia e na América Latina estão protegidos por empresas que recebem dinheiro para implementar tais políticas. “Eles tomaram nossa floresta, é outra forma de colonialismo, e queremos nos tornar guardiões da floresta”, destacou.

A Lei da Mãe Terra estabelece 11 direitos para a natureza, incluindo o direito à vida, o direito da continuação de ciclos e processos vitais livres de alteração humana, o direito a água e ar limpos, o direito ao equilíbrio, e o direito de não ter estruturas celulares modificadas ou alteradas geneticamente. Ela também vai assegurar o direito de o país “não ser afetado por megaestruturas e projetos de desenvolvimento que afetem o equilíbrio de ecossistemas e as comunidades locais”.

Artigos da Lei:

Notícias ao redor do mundo:

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O Lítio na América do Sul e o eixo da geopolítica energética mundial

Em junho de 2010, a edição 45 da Piauí trazia a matéria Sonhos de Lítio.

Não é de hoje que os veículos de comunicação, especialmente os especializados em política e economia, estão publicando notícias sobre as excelentes oportunidades de negócio oferecidas pela exploração do lítio na América Latina. Os destaques que aparecem nessas manchetes frequentemente tratam sobre a demanda cada vez maior do mercado mundial por este recurso e a atuação dos governos sul americanos (detentores das maiores reservas mundiais do metal) em suas relações com as grandes companhias estrangeiras de mineração.

Para quem não está muito a par do assunto e sequer tem ideia do que seja o lítio, quais suas principais aplicações e por que cargas d’água ele passou a ser tão importante a ponto de ser figura cada vez mais constante nos principais jornais e revistas ao redor do mundo, o Hum Historiador vai dedicar alguns parágrafos a este metal que poderá mudar o eixo da geopolítica energética mundial colocando a América do Sul, uma vez mais, no centro das atenções.

UM POUCO MAIS SOBRE O LÍTIO

Começando pelo começo, como sempre é recomendado, o lítio é um elemento químico cujo símbolo na tabela periódica é Li. Segundo diferentes enciclopédias, em sua forma pura, é um metal macio, de coloração branco-prateada, que se oxida rapidamente no ar ou na água. Quanto a suas aplicações, o lítio é utilizado na obtenção de ligas metálicas condutoras de calor (alumínio), no feitio de cerâmicas e lentes (telescópios), na produção de pilhas e baterias elétricas (celulares e notebooks) e até mesmo na medicina, onde seus sais são utilizados em medicamentos para o tratamento de depressão e do transtorno bipolar.

A edição eletrônica da Enciclopédia Britannica informa que trata-se de um metal escasso, encontrado-se disperso em certas rochas, em sais naturais, águas salgadas e águas minerais. Justamente por esta razão, suas principais reservas encontram-se em regiões de salares, isto é, regiões que há dezenas de milhares de anos eram cobertas por oceanos e, com a formação geológica dos continentes, acabaram por secar e formar grandes desertos de sal. O lítio se encontra dissolvido abaixo da grossa crosta, em uma camada de solução impregnada de sal.

Foto do Salar de Uyuni, Bolívia.

A IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA DO LÍTIO

Depois de ter passado muitos anos “amargando” com baixa demanda mundial, a situação do lítio mudou completamente quando cientistas descobriram sua enorme capacidade de armazenar energia elétrica. Logo passou a ser utilizado como matéria prima na produção de baterias de longa duração em aparelhos eletrônicos como celulares e notebooks e, posteriormente, verificou-se que sua capacidade de armazenamento era tão grande que o lítio acabou transformando os automóveis movidos à baterias elétricas na grande opção ecológica e sustentável em substituição aos veículos movidos à base de petróleo. Assim, o mundo todo espera que, a partir da terceira ou quarta década deste século, o lítio assuma o papel de substituto do petróleo como provedor de energia para mover o mundo.

Baterias de Lítio utilizadas em carros elétricos

Neste sentido, é bastante significativo que General Motors, Toyota, Volkwagen e Honda já entraram no mercado estadunidense com carros híbridos, ou totalmente elétricos, munidos de grandes baterias de compostos salinos, polímeros ou ligas contendo lítio. A Toyota anunciou o lançamento de um Prius com bateria de íons de lítio. A Nissan e a Mitsubishi também divulgaram planos de fabricar carros a bateria, assim como a Mercedes-Benz, a BMW e a Hyundai. A Ford planeja vender uma versão totalmente elétrica do Focus e a China afirmou que, em meados de 2011, já tinha a capacidade de construir meio milhão de carros híbridos e elétricos ao ano.

Assim, se o lítio se confirmar no papel de substituto do petróleo como fonte de energética conforme esperado, a América do Sul poderá assumir um papel de protagonismo no cenário geopolítico mundial, tal como tem ocorrido com o Oriente Médio nos últimos 50 ou 60 anos. Some-se a isso a importância estratégica das super abundantes fontes de água doce localizadas em nosso continente, e passaremos a compreender melhor a razão pela qual os olhos do mundo cada vez mais vão se voltando para a exploração de ambos recursos em nosso continente.

FONTES DE LÍTIO E A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS NATURAIS NA AMÉRICA LATINA

O fato do lítio ser um mineral que se concentra em região de salares, faz com que países como Bolívia (Uyuni), Chile (Atacama) e Argentina (Hombre Muerto) estejam situados entre os maiores detentores mundiais de reservas deste recurso. Se considerarmos somente a Bolívia, onde está localizado o Salar de Uyuni, veremos que aproximadamente 29% de toda a reserva mundial de lítio está concentrado nesta região, segundo tabela da United States Geological Survey. Saindo da escala nacional para olhar os números continentais, as reservas sul americanas são mais expressivas e atingem um montante de 20,6 milhões de toneladas, ou 62,6% do total.

Historicamente, em raríssimas ocasiões a exploração de recursos naturais na América Latina por potências estrangeiras beneficiou as populações locais de onde tais recursos eram extraídos. Foi assim durante os mais de três séculos em que a região foi colonizada por portugueses e espanhóis, que inundaram a Europa com o ouro e a prata extraído de suas colônias americanas. Nesse sentido, em matéria publicada na Piaui 45, o escritor Lawrence Wright trouxe o precioso exemplo de Potosí (atualmente na Bolívia),  que em 1611 era uma das maiores cidades do mundo, com 180 mil habitantes, de onde se extraíam enormes riquezas.

“No sul da Bolívia, há uma montanha chamada Cerro Rico. É uma rocha pálida e calva, riscada por caminhos de terra que se entrecruzam encosta acima como cadarços de sapato. Mais de 4 mil túneis de mina escavaram a tal ponto o interior da montanha que ela corre o risco de desabar. A base é rodeada de casebres que se espalham até a velha cidade de Potosí, um Patrimônio da Humanidade. Evo Morales, o presidente da Bolívia, disse-me há pouco tempo que, para ele e seus compatriotas, Potosí é “um símbolo de pilhagem, de exploração, de humilhação. […] De meados do século xvi a meados do xvii, metade da prata extraída no Novo Mundo vinha de Cerro Rico. Carlos Mesa, o historiador que ocupou a presidência da Bolívia de 2003 a 2005, contou-me que, “por todo o império espanhol dizia-se ‘Isto vale uma Potosí’, quando se falava de sorte ou riqueza”. Hoje Potosí é um dos lugares mais pobres daquele que é há muito tempo um dos países mais pobres da América do Sul.

O cenário pouco se alterou nos quase dois séculos que se passaram desde o processo de independência que acabou dando origem às muitas nações soberanas da América do Sul. Neste período pós-independência um bom exemplo de como a exploração de recursos naturais na América Latina por potências estrangeiras não só não beneficiou as populações locais, mas ainda por cima levou à morte milhares de pessoas e causou enormes prejuízos aos países envolvidos, foi a Guerra do Pacífico (1879-1883), também conhecida como Guerra do Salitre.

De modo bastante resumido, a origem do conflito está na disputa territorial entre Chile e Bolívia por uma região riquíssima em depósito de nitratos (guano e salitre), naquela época muito valorizados no mercado mundial para a produção de fertilizantes e explosivos (já enxergam a semelhança com as reservas de lítio?). Embora a área em disputa fosse uma região desértica, localizada no famoso Atacama, os depósitos de nitrato existentes no que então era a costa boliviana do Oceano Pacífico já estavam sendo explorados por empresas chilenas de capitais britânicos, tal como a Antofagasta Nitrate & Railway Company. O governo boliviano decidiu sobretaxar as empresas chilenas, que por sua vez não aceitavam pagar os impostos. A tensão diplomática entre os países foi aumentando cada vez mais, até que em 1879 duzentos soldados chilenos invadiram a cidade portuária de Antofagasta e, em 1 de abril daquele ano, a Bolívia declararia guerra ao Chile. O Peru tinha seus próprios interesses na região e acaba se aliando à Bolívia sob a alegação de um Tratado de Defesa que havia sido celebrado anos antes, em 1873.

Mapa da região em conflito antes da Guerra do Pacífico. Fonte: Wikimedia Commons

A guerra acaba se desenrolando por alguns anos e, ao final, o Chile sai como grande vencedor do conflito. Em consequencia dessa guerra, o Peru perdeu uma porção de território que se estende até a cidade de Arica; e a Bolívia, junto com o porto de Antofagasta, perdeu o acesso soberano ao Oceano Pacífico. O Chile, por sua vez, além dos depósitos de nitrato que deram origem à guerra, acabou se beneficiando de descobertas posteriores de grandes jazidas de cobre localizadas justamente nessa região conquistada pelo Chile e, mais recentemente, de suas grandes reservas de Lítio.

NACIONALIZAÇÕES DE COMPANHIAS ESTRANGEIRAS

O histórico de exploração dos recursos naturais na América do Sul por empresas estrangeiras continuou sem produzir grandes benefícios às comunidades locais ao longo de praticamente todo o século XX. Na Bolívia, por exemplo, Lawrence Wright informa, na já citada matéria da Revista Piauí, que no ano de 1990, “o então presidente da Bolívia, Jaime Paz Zamora, concordou a princípio com um contrato plurianual com a Lithium Corporation of America (hoje fmc Corporation). O contrato permitiria à empresa extrair todo o lítio que pudesse, destinando à Bolívia apenas 8% dos lucros”. O contrato só não foi adiante, como conta Wright, porque muitos bolivianos se indignaram com o negócio e os camponeses iniciaram uma campanha contra o acordo, fazendo com que a Lithium Corporation desistisse do negócio na Bolívia e transferisse suas operações para a Argentina.

Contudo, na primeira década do século XXI, algumas nações começaram a rever os antigos contratos de exploração de recursos naturais com companhias estrangeiras instaladas em seus territórios. Na Venezuela, por exemplo, após a ascensão de Hugo Chávez à presidência (1999), os contratos das grandes companhias de petróleo instaladas naquele país foram revistos em 2005, a partir de uma nova legislação de hidrocarbonetos que havia sido adotada em 2001.

Presidente da Bolívia, Evo MoralesNa Bolívia, após a eleição de Evo Morales à presidência, o governo promoveu a nacionalização da extração de recursos minerais em todo o país. Assim, para que empresas estrangeiras possam extrair lítio de reservas bolivianas, a nova legislação estabelece que o Estado seja sócio majoritário das companhias interessadas, de modo que este não tenha que abrir mão de sua soberania nacional e, ainda, através da cobrança de royalties e de imposto sobre os lucros, que se possa fomentar o desenvolvimento local das comunidades de onde o lítio será extraído.

Se, a longo prazo, a nova legislação boliviana poderia trazer prosperidade e desenvolvimento à sua população, o que acabou ocorrendo foi que, em uma repetição do que se passou na década de 1990, ela acabou afugentando o capital estrangeiro que, uma vez mais, preferiu as melhores oportunidades de exploração oferecidas pelas grandes reservas de lítio localizadas nos vizinhos Chile e Argentina, onde a legislação é mais favorável às empresas estrangeiras, impondo menos exigências quanto ao destino dos lucros obtidos com a exploração do lítio para a população local.

Nessa guerra da concorrência pela exploração do lítio há um outro fator importante, que é o não alinhamento político da Bolívia com os interesses das grandes potências do ocidente, nomeadamente os Estados Unidos. Muito embora a tabela apresentada pela United States Geological Survey informe que as reservas de lítio da Bolívia estejam por volta de nove milhões e meio de toneladas, a Direção Nacional de Recursos Evaporíticos da Bolívia, por sua vez, estimou em janeiro deste ano que o total dessas reservas localizadas no Salar de Uyuni estão estimadas, quando pouco, em dezoito milhões de toneladas. Como destaca Joel S. Padrón em seu artigo:

“Washington e outros centros de poder e propaganda mundial têm promovido ao Chile como o grande provedor de Lítio para o mundo, destacando sua legislação neoliberal mineira e o rígido alinhamento dos sucessivos governos do sul com os interesses estadunidenses na região”. A estratégia adotada por Washington é a de exaltar o Chile para desqualificar os esforços da Bolívia para tentar explorar sua riqueza litífera, processando-a em seu próprio território e beneficiando sua população. O objetivo é diminuir a importância dos depósitos bolivianos para debilitar sua capacidade de negociação frente às empresas e países com os quais o governo de Evo Morales negocia a industrialização do Lítio em seu próprio país”.

Do outro lado desta disputa, na Argentina, vemos pela reportagem de César Felício, veiculada no jornal Valor Econômico, que os detentores da quarta maior produção mundial de lítio também está desenvolvendo um programa para industrializar o metal dentro do próprio país e que a tendência é de crescimento da extração graças ao investimento das montadoras japonesas que não se entusiasmaram com o modelo de sociedade proposto pelo governo boliviano de Evo Morales. Assim, na Argentina, a Toyota se associou à australiana Orocobre para extrair lítio da área de Cachauri, entre as Províncias de Jujuy e Salta e a Mitsubishi atua com a canadense Lithium Americas na área de Olaroz, em Jujuy.

O governo argentino, interessado no investimento das empresas estrangeiras no país, tem promovido o avanço cada vez maior dos capitais de mineradoras estrangeiras para explorar suas enormes reservas de lítio. Apesar disso, tal como já havia ocorrido na Bolívia na década de 1990, é a população diretamente afetada pela ação dessas mineradoras no interior do país que impõem as maiores resistências ao projeto. Segundo a reportagem de Felício, 32 comunidades indígenas organizadas pedem pelo fim dos projetos e chegaram até mesmo, no ano passado, a bloquear as estradas para Salta e Jujuy. O centro da questão é o uso dos recursos hídricos utilizados para a purificação do minério em uma região árida, já que ambas Províncias argentinas estão muito próximas ao deserto de Atacama.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Indubitavelmente, as próximas décadas reservam a América do Sul o protagonismo no cenário geopolítico energético mundial. Seja com as novas tecnologias à base de lítio (Bolívia, Chile e Argentina), ou com as tradicionais tecnologias como o petróleo (Venezuela e Brasil) e os minerais nucleares (Brasil e Argentina). A questão que norteou a construção desse post foi: a América do Sul irá, uma vez mais, tendo em seu solo a fonte dos recursos que moverá o mundo, seguir com sua tradição secular de ser pilhada para servir de base para a riqueza de nações em outros continentes? Qual a melhor forma de explorar estes recursos para garantir a riqueza e bem estar da população e não apenas de quem explora estes recursos? O que queremos ser no futuro?

Não encontrei melhor forma de responder estas perguntas, do que através de um diálogo do presidente boliviano Evo Morales com o escritor Lawrence Wright:

“Quando o projeto-piloto do Salar começou [projeto de exploração de lítio levado adiante pelo próprio governo boliviano], muitas empresas manifestaram interesse em extrair o metal das planícies salgadas. Autoridades bolivianas tiveram conversas preliminares com representantes da LG, o conglomerado coreano que está construindo a bateria do Volt para a GM. Em 2006, Evo Morales visitou a França, onde o industrial Vincent Bolloré o levou para dar um passeio num BlueCar – um pequeno carro elétrico, em forma de bolha, que o bilionário planeja produzir em parceria com a estatal francesa de energia. Segundo Morales, Bolloré teria dito: “O senhor é quem controla a matéria-prima chave para os séculos xxi e xxii. A Bolívia é a Arábia Saudita.” Mas Morales não quer que seu país se torne a Arábia Saudita. Ele quer que a Bolívia se transforme na França, numa potência industrial.

Perguntei ao presidente de que maneira, dado o estado miserável da infraestrutura boliviana, tal transformação poderia ocorrer. “Organizamos uma comissão científica no Ministério das Minas para dirigir as pesquisas”, respondeu. A comissão reunirá “estrangeiros e bolivianos” para determinar a melhor maneira de extrair os recursos naturais e começar a industrialização. Morales disse que esperava ver a Bolívia fabricando baterias de íons de lítio até o final deste ano [2010]. A produção de automóveis, acrescentou em tom confidencial, ainda precisa esperar “mais cinco ou seis anos.”

Não há dúvidas que Evo Morales se mostra um tanto utópico ao revelar o sonho de ver a Bolívia produzindo, em um intervalo de poucos anos, não só as baterias de lítio que moverão os carros do futuro, mas os próprios carros em si. Contudo, o lugar da Bolívia no cenário da exploração do mineral que poderá mover o mundo nos próximos anos está bem claro em sua cabeça e, neste cenário, é a Bolívia e não a Europa ou os Estados Unidos quem está no centro dos beneficiários dos recursos disponíveis em seu próprio solo.

Infelizmente para ele, as nações vizinhas não compartilham com sua ideia e acabam minando as oportunidades de desenvolvimento sustentável da Bolívia na região, ao oferecer grandes quantidades de lítio às mineradoras estrangeiras a um custo bem mais baixo do que o boliviano, uma vez que a base do modelo de exploração do mineral que vigora no Chile e na Argentina, segue os velhos padrões já bastante conhecidos do capitalismo, no qual os lucros se acumulam nas mãos dos detentores do capital do outro lado do oceano, enquanto a região explorada é degradada, não se desenvolve e seus trabalhadores vivem na miséria absoluta.

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