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Hebe Mattos convida Demétrio Magnoli a dançar a quadrilha da democracia

Repercutimos neste espaço a resposta que a historiadora Hebe Mattos deu a texto do geógrafo Demétrio Magnoli, publicado no último dia 25 pela Folha de S.Paulo, no qual este acusa Mattos e outros proeminentes historiadores brasileiros, integrantes do movimento Historiadores pela Democracia, de formarem quadrilha, de terem vocação totalitária e de quererem escrever uma versão da história útil para o Partido.

Sem mais delongas, segue a íntegra do texto da professora Hebe Mattos.

CONVIDAMOS MAGNOLI A VIR DANÇAR A QUADRILHA DA DEMOCRACIA
por Hebe Mattos | Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 27 jun. 2016

Hebe Mattos é professora titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense

Em tempos de festa junina, Demétrio Magnoli acusa o movimento Historiadores Pela Democracia de “formação de quadrilha”, em texto publicado na Folha em 25/6.

O artigo começa com o meu nome, honrando-me com a companhia de renomadíssimos colegas de ofício que, estando no exterior, só puderam participar da iniciativa com depoimentos em vídeo ou por escrito.

Esses e outros depoimentos e vídeos podem ser consultados no tumblr “Historiadores pela Democracia”. Convido todos a fazerem isso.

Como não é historiador, Demétrio Magnoli não consultou tais documentos. Se o fez, omite isso, mas ainda assim afirma que nossa iniciativa “viola os princípios que regem o ofício do historiador”, que temos “vocação totalitária” e que queremos escrever versão da história útil para o “Partido”, com P maiúsculo.

Como já tive oportunidade de escrever no blog “Conversa de historiadoras”, sobre editorial de teor semelhante publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, a utilização desse tipo de lógica maniqueísta por órgãos de imprensa é surpreendente e muito preocupante.

Os depoimentos individuais foram feitos por alguns dos mais importantes historiadores do país, mas também por jovens profissionais e estudantes de história, englobando uma enorme diversidade de orientações políticas, bem como de escolas historiográficas e teóricas.

Juntos, formam uma narrativa polifônica e plural, que vem se somar ao alentado movimento da sociedade civil em defesa da Constituição de 1988 e de resistência ao governo interino, ao programa que tem desenvolvido sem o amparo das urnas e à forma como chegou ao poder.

Em comum, têm a preocupação com os sentidos republicanos e democráticos da ordem política brasileira, ameaçados desde a votação da Câmara dos Deputados de 17 de abril, de triste memória.

“A Força do Passado” é o título do arquivo de textos do tumblr, com exercícios de história imediata publicados ao longo dos últimos meses, que servirão de base para a organização de um livro.

A tese de que há um golpe branco em andamento, como reação conservadora às mudanças da sociedade brasileira produzidas desde a adoção da Constituição de 1988, é hipótese que defendo, junto a outros colegas e, por enquanto, inspirou o título da coletânea.

Para os que discordam que um golpe branco à democracia brasileira está em curso, basta escolher dialogar com alguns dos muitos e diferenciados argumentos dos depoimentos e textos arquivados no tumblr “Historiadores pela Democracia”. As autorias individuais estão bem assinaladas e os autores têm tradição democrática.

Por fim, para não parecer que só tenho discordância com o artigo de Magnoli, gostaria de me solidarizar com a sua defesa dos cinco jornalistas da “Gazeta do Povo” processados por juízes paranaenses.

Quanto ao título do seu artigo, não pretendemos processá-lo, e aqui falo pelos colegas citados. Temos certeza de que eram as festas juninas que Magnoli tinha em mente quando falou em formação de quadrilha.

Nós o convidamos a deixar de lado o maniqueísmo e o discurso de intolerância e a vir dançar conosco a quadrilha da democracia.


Textos de outros historiadores em resposta a Demétrio Magnoli:

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Contra as milícias marinistas: Rogério Cézar de Cerqueira Leite

O professor emérito da Unicamp, Rogério Cézar de Cerqueira Leite, publicou hoje (9) na sessão Tendências/Debates, da Folha de S. Paulo, uma resposta aos inúmeros textos que o atacaram após ele ter publicado texto na mesma Folha (Desvendando Marina), onde se dizia:

“desconfortável em ter como presidente uma pessoa que acredita concretamente que o Universo foi criado em sete dias há apenas 4.000 anos, aproximadamente”.

Ok, vá lá, se formos justos a gritaria das “milícias marinistas”, como bem as caracterizou hoje o professor, se deu muito mais pelo fato de ele haver qualificado Marina como fundamentalista. Evangélicos e intelectuais se levantaram contra Cerqueira Leite havia quando este disse que “percebia no fundamentalista cristão uma arrogância incomensurável, que apenas pode ser entendida como uma perversão intelectual”. Imagino que pior devem ter se sentido os “milicianos” quando o autor arrematou seu texto afirmando que “o fundamentalismo de Marina Silva não decorre da ignorância, mas de um defeito de percepção”, que os especialistas chamam de desordem do desenvolvimento neural.

Parece que foi um “deus nos acuda” (perdoem o trocadilho). Segundo Cerqueira Leite, mais de 50 blogs reproduziram sue texto, quatro colunistas da Folha o comentaram e houve até um artigo publicado como direito de resposta na mesma seção Tendências/Debates. Ao que parece, o professor botou mesmo o dedo na ferida.

O Hum Historiador repercute abaixo a íntegra da excelente resposta dada por Rogério Cézar de Cerqueira Leite às “milícias marinistas” e chama atenção especial para a maneira como o professor qualifica Demétrio Magnoli, o queridinho da extrema direita brasileira. Para vocês verem como estou em boa companhia quando critico as diatribes de Magnoli, Villa e companhia limitada.

DESVENDANDO AS MILÍCIAS MARINISTAS
por Rogério Cézar de Cerqueira Leite | Folha de S. Paulo em 09.set.2014

Acreditar em Deus é uma coisa. Ser fundamentalista é outra. Equacionar coisas tão distintas ou é profunda ignorância, ou é má-fé

Rogério Cézar de Cerqueira Leite, 83, é professor emérito de física da Unicamp.

Em artigo publicado nesta Folha, revelo minha preocupação em ter como presidente da República Marina Silva, uma missionária de igreja pentecostal que, consequentemente, é fundamentalista (e criacionista) cristã. Um maremoto adveio. Mais de 50 blogs reproduziram o texto. Pelo menos quatro colunistas deste jornal o comentaram, além de um artigo publicado como direito de resposta nesta seção.

Milhares de comentários surgiram na internet. Até um desses partidos de aluguel, caudatário do PSB, me agrediu. Ora, se o que foi dito em meu artigo fosse algum absurdo ou irrelevante, ninguém lhe teria dado atenção. Parece que, como escreveu Hélio Schwartsman, botei o dedo na ferida.

No que segue, respondo aos principais argumentos dos marinistas. Comecemos pela primeira dessas manifestações. Aparentemente falando em nome do comitê de campanha de Marina Silva, Edson Barbosa entrega a candidata. Se a finalidade do artigo era convencer o leitor de que Marina não é criacionista, então falhou. Ele afirma que “Marina não está entre aqueles que acreditam que os seres vivos vieram de uma ameba, de uma gosma, de uma seleção natural”. Pois não é por aí que começa o criacionismo?

Em seguida, vêm aqueles que procuram confundir o leitor com um sofisma elementar equacionando a crença em um Deus com o fundamentalismo. O pedante e ávido candidato a ministro de qualquer coisa e colunista desta Folha Eduardo Giannetti (Ciência e Fé) conclui sua diatribe com um exemplo de três cientistas que acreditavam em Deus.

Mais uma vez, a falácia. Acreditar em Deus é uma coisa, ser criacionista, fundamentalista, é outra. Equacionar coisas tão distintas ou é ignorância, ou é má-fé. Aliás, parece que o colunista não tem a mínima percepção da história do pensamento. Newton viveu na primeira metade do século 17 e começo do 18. O próprio Darwin, tendo vivido no século 19, não foi exposto à montanha de dados, acumulados principalmente no século 20, que comprovam inequivocamente a evolução, a própria teoria de Darwin.

Como descobriu o marinista que Einstein era deísta? Einstein disse uma vez que não acreditava que Deus jogasse dados. Uma metáfora contra a interpretação prevalecente à época e ainda hoje de que a variável fundamental da mecânica quântica expressaria uma probabilidade, e não uma certeza.

Não conheço nenhum testemunho de que Einstein acreditasse em Deus. Cerca de 30% dos físicos americanos dizem que acreditam em Deus, mas não conheço nenhum que seja fundamentalista.

A mais fantástica das interpretações de meu texto vem da extrema direita. Demétrio Magnoli (Fogueiras da Razão) inventa uma definição de fundamentalismo que não é senão uma consequência extrema do caso do fundamentalismo islâmico. Tudo para concluir que ele próprio, narcisista e pretensioso, é agnóstico. Quem se interessaria? Agnóstico é aquele que fica em cima do muro. Já foi moda.

Para não perder a oportunidade, os professores da Unicamp Alcir Pécora e Francisco Foot Hardman (0,1% do corpo docente da universidade), legítimos representantes da mediocridade que se instalou na Unicamp, concluem que minhas desconfianças em relação à maturidade de Marina Silva dão “ao racismo uma máscara pseudocientífica”. Repetem o besteirol fascistoide de Demétrio Magnoli. Que falta de imaginação! Que vergonha para a Unicamp!

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Demétrio Magnoli é chamado de racista em debate na Bahia

O portal Diário do Centro do Mundo informou neste último sábado (26), que o sociólogo Demétrio Magnoli foi chamado de racista, por um grupo de jovens, enquanto participava de um debate na Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na Bahia.

Segundo o portal, dois estudantes seminus pintaram-se na frente do sociólogo, que se posiciona contra as cotas raciais; Magnoli, que estreou hoje coluna na Folha, comparou os manifestantes aos fascistas de Mussolini e arrematou: “No poder, esse grupo fuzilaria os seus opositores”.

Abaixo, segue notícia tal como publicada originalmente no Diário do Centro do Mundo no dia 26/10.

Colunista Demétrio Magnoli é chamado de “racista” por estudantes em debate na Bahia

Na manhã deste sábado (26), enquanto o geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli debatia na Flica, um grupo de estudantes deu início a um protesto sob brados de ‘racista’ e ‘fora, Magnoli!’. O ato foi pautado pelas opiniões desfavoráveis de Magnoli com relação às cotas raciais.

Dois estudantes, seminus, se pintaram na frente do professor, causando tumulto e interrompendo o debate. Uma faixa a favor das cotas também foi estendida.

“Estamos aqui fazendo este ato contra esse cara que é racista, é contra as cotas. E Cachoeira é terra de preto, remanescente de quilombo”, diz Amanda, estudante de jornalismo da UFRB.

A professora da UFBA, Maria Hilda Baqueiro Paraíso, que também compunha a mesa, tentou negociar com os estudantes, mas não obteve sucesso. Os seguranças presentes no evento não conseguiram conter o tumulto, que só se dispersou quando a produção do evento propôs uma reunião com representantes do movimento. A pauta será uma possível mudança do tema da mesa, de preferência para um que contemple a questão racial no Brasil.

Magnoli comparou os manifestantes aos fascistas de Mussolini e arrematou: “No poder, esse grupo fuzilaria os seus opositores”. Encerrada, a mesa deve retornar às 13h30, a portas fechadas.

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As Leis e o Preconceito: mais algumas considerações a respeito das cotas raciais

Neste domingo, o Estado de S. Paulo publicou matéria sobre pesquisa do Ibope que aponta apoio de quase dois em cada três brasileiros às cotas em universidades públicas tanto para negros quanto para pobres como para alunos da escola pública. Posto em números, a pesquisa revelou que nada menos do que 62% da população apoia a implementação dos três tipos de cotas.

Segundo a reportagem, o número dos que mais se opõem às cotas para pobres, negros e alunos da rede pública é maior entre brancos, entre brasileiros das classes de consumo A e B, entre pessoas que cursaram faculdade e entre os moradores das capitais e das Regiões Norte e Centro-Oeste.

Já o apoio à política de cotas nas universidades públicas é proporcionalmente mais alto entre quem estudou da 5.ª à 8.ª série, entre os emergentes da classe C, entre nordestinos e moradores de cidades do interior do País.

DIFICULDADE DE AUTO-CLASSIFICAÇÃO EM TERMOS RACIAIS

Na contramão do que revela a pesquisa Ibope, o cientista social Demétrio Magnoli acredita que a inexistência de leis raciais no Brasil teria levado o brasileiro a ter uma certa dificuldade em se auto-classificar em termos raciais e, por isso, acabou levando à criação de uma categoria de classificação denominada “pardos” que agrupa todos os indivíduos que se identificavam como “moreninho”, “queimadinho”, “açúcar queimado” ou “marronzinho” nos censos nacionais.

Como já destacamos em outros posts, Demétrio Magnoli faz questão de falar das leis raciais e destacar da histórica inexistência dessas leis no Brasil, pois defende que a implementação de cotas raciais em nosso país é um retrocesso nesse sentido. Para Magnoli, a sanção de uma lei instituindo as cotas pode levar a uma divisão racial do país, o que, em sua perspectiva, inexiste em nosso país.

Durante entrevista ao Programa do Jô, Magnoli tentava explicar como teria surgido a categoria pardo no Brasil, afirmando que esta seria fruto da inexistência de leis raciais no país, quando Jô o interrompe para relembrar que, embora a regra da gota de sangue única jamais tenha existido no Brasil, o racismo sempre existiu e de forma bastante pronunciada. Magnoli concordou com Jô, mas imediatamente reafirmou que a inexistência de leis raciais acabou fazendo com que as pessoas passassem a se definir de modos não raciais durante os recenseamentos, isto é, definiam-se como moreninhos, queimadinhos, marronzinhos, etc. Novamente Jô Soares interrompe seu convidado para dizer que, embora as auto-definições sejam não raciais, elas revelam certa dose de preconceito, o que Magnoli imediatamente relativizou ao afirmar que, nesses casos sempre se tratará de preconceitos e de que, as vezes pode ser preconceito, as vezes não, já que os brasileiros possuem essa “certa dificuldade em se auto-classificar em termos raciais”.

Abaixo segue o trecho da entrevista de Demétrio Magnoli ao Programa do Jô ao qual me refiro.

É certo que as respostas dadas por indivíduos que se auto-classificam nos recenseamentos como sendo moreninhos, queimadinhos ou marronzinhos podem até, em alguma medida, estarem relacionadas com uma certa dificuldade na hora de promoverem essa auto-classificação, mas cabe aqui levantar algumas perguntas que julgo serem pertinentes a essa discussão:

  1. O que causaria essa dificuldade na cabeça do indivíduo na hora em que ele vai se auto-classificar em um dos grupos étnicos previstos no formulário do recenseador?
  2. Somente a ausência de leis raciais no Brasil dá conta de explicar por que indivíduos mestiços se auto-classificam como “moreninhos, queimadinhos ou marronzinhos”?
  3. Será que o racismo e o preconceito, arraigados na sociedade brasileira, não desempenham nenhum papel na hora do indivíduo proceder com esta auto-classificação? 
  4. Em um país marcado por mais de três séculos de escravismo [e por políticas de branqueamento], não é possível de se imaginar a existência de um forte desejo dos mestiços de não se associarem com a cor estigmatizada pela escravidão, que ainda hoje faz milhões de vítimas do preconceito e do racismo no Brasil?

Oras, entendo que muito mais forte do que as leis raciais, o preconceito e o racismo da sociedade desempenham um papel muito mais importante (ainda hoje) na hora em que um indivíduo se auto-classifica como moreninho em um censo. Se é a cor da pele a principal característica a determinar se uma pessoa será vítima do preconceito e do racismo em uma sociedade, me parece bastante evidente que as pessoas evitem se identificar como pertencentes ao grupo cuja cor da pele é estigmatizada por essa sociedade. Ou não?

Tal fenômeno não é novo e não aconteceu apenas com negros. No final do século XVIII, por exemplo, um militar paulista de nome José Arouche de Toledo Rendon, escreve uma memória sobre as aldeias de índios na Província de São Paulo, segundo observações que ele mesmo realizou ainda no ano de 1798, quando ainda era Diretor Geral de todas as aldeias da Província. Nessa memória, ao falar das estatísticas da Província de São Paulo Rendon nos revela o seguinte:

“Vendo-se os mapas estatísticos da província de São Paulo, encontra-se um grande número de brancos. Mas não é assim; a maior parte é gente mestiça, oriunda do grande número de gentio, que povoou aquela província, e que não teve a infelicidade de ficar em aldeias. Eles já têm sentimentos, e quando na fatura das listas são perguntados pelo cabo e oficiais de ordenanças, declaram que são brancos.” (1)

Aqui o fenômeno observado por Rendon é bastante semelhante ao que vínhamos discutindo anteriormente. Os mestiços de índios, buscando uma forma de evitar toda sorte de preconceitos sofrida pelos índios, quando perguntados pelos oficiais do recenseamento da época sobre sua “raça”, declaravam ser brancos. Será que aqui também Magnoli enxergaria uma “certa dificuldade de auto-classificação” dos indígenas pela inexistência de leis raciais no país?

A LEI E O PRECONCEITO SEGUNDO SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Relendo alguns textos clássicos da História do Brasil, encontrei um precioso trecho em texto escrito por Sérgio Buarque de Holanda (A Herança Colonial – Sua Desagregação), que foi publicado no primeiro volume do Brasil Monárquico da História Geral da Civilização Brasileira.

No trecho que destacaremos a seguir, ao citar um francês que escrevia sobre o Brasil em 1864, Sérgio Buarque de Holanda chama atenção para o fato de que este estrangeiro conseguiu observar nossos costumes e instituições sem a generosa simpatia que às vezes pode dissolver a acuidade da observação”. Mais ainda, para Buarque de Holanda Charles Expilly “assume a respeito uma posição bastante diversa da que hoje [1965] adotam os crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial””.

Acredito que, tal como Buarque de Holanda aponta, a generosa simpatia ao observar costumes e instituições brasileiras acabou mesmo dissolvendo a acuidade de observação de alguns intelectuais e, embora o texto tenha sido escrito por Sérgio Buarque na década de 1960, sua crítica ainda é bastante atual aos “crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial”, categoria em que parece se enquadrar o Sr. Demétrio Magnoli.

IGUALDADE DE DIREITOS E “ARISTOCRACIA DA PELE”

Também esta idéia da libertação dos nasciturnos, que será vitoriosa em 1871, ou outras que visassem à melhoria na sorte dos cativos, não andaram longe de ser abraçadas por alguns espíritos mais lúcidos dos primeiros decênios que se seguem à Independência, mesmo quando professavam, como José Bonifácio, opiniões moderadas. Só depois, com a grande expansão da lavoura do café no centro-sul do país, mormente na província fluminense, é que tendem a ser postergadas quaisquer medidas em prol da emancipação dos escravos, ao mesmo tempo em que, por isso mesmo, passam a ganhar nova base econômica os esforços no sentido de uma acentuada centralização administrativa. De outro lado, êsse desenvolvimento da escravatura irá ser obstáculo à expansão, entre brasileiros, de uma autêntica burguesia. O que teremos aqui, além de senhores e de escravos, e sem contar os mercadores e mecânicos, muitos dêstes estrangeiros, ou os negros e mestiços livres, é uma população branca, em grande parte supostamente branca, formada, quase tôda, de possíveis candidatos à classe dominante.

Desde os graus inferiores dessa classe, que em dado momento podem aachar acolhida no oficialato da guarda nacional, empolga-se vivamente o empenho de destacar-se por todos os modos, esquivando-se, para começar, aos trabalhos que sujam as mãos, da massa de negros, escravos, à qual são relegados êsses trabalhos. Acima da raia divisória que forçosamente separa livres de escravos, pode-se talvez dizer que prevalece uma continuidade social isenta de intransponíveis barreiras. A menos que se admita a presença, talvez, de barreiras entre indivíduos legalmente livres e que só se distinguiriam pela côr da pele ou por outros traços físicos mais ou menos pronunciados: tenaz sobrevivência da separação entre os prêtos escravos e os brancos europeus ou crioulos. Uma color line? Certo francês que escreveu nos anos em que no norte do hemisfério se travava a Guerra de Secessão [1861-1865] e que via os nossos costumes e instituições sem a generosa simpatia que às vezes pode dissolver a acuidade da observação, assume a respeito uma posição bastante diversa da que hoje adotam os crentes mais fervorosos em nossa democracia social e “racial”.

No Brasil, escreve, com efeito, Charles Expilly, a linha de demarcação é tão rigorosa quanto em Richmond ou em Nova Orléans. A lei “reconhece que os homens de côr são aptos ao exercício de empregos públicos. Nos postos mais elevados acham-se mulatos. E no entanto a lei e o preconceito são podêres distintos, que é mister não confundir”. “Pouco importa”, escreve ainda, “que a Constituição proclame a igualdade dos cidadãos; mais forte do que a Constituição, o preconceito erige uma barreira invencível – ao menos até aos dias de hoje [1864] – entre pessoas separadas pelos matizes da pele. Oferecem-se galões, condecorações ou títulos aos homens de côr, mas ninguém concerta aliança com êles”.

Logo adiante acrescenta o mesmo autor: “O operário mais pobre não trocaria a côr de seu rosto, se fôr branca, pela de algum mestiço, ainda que a troca lhe devesse render milhões. De fato êle é Ilustríssimo Senhor, tanto quanto o advogado, o deputado, o negociante, e embora despojado dos bens da fortuna, considera-os de igual para igual. O mulato mais opulento, e os há senhores de riquezas principescas, é seu inferior; êle bem o sabe, e não duvidará em chamar-lhe a atenção para êste ponto se o julgar necessário. Por miserável que seja, arrima-se da convicção de que pertence à aristocracia do país, a única aristocracia que conhece, a única de que verdadeiramente se gaba: a aristocracia da “pele” (2).

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(1) José Arouche de Toledo Rendon. Obras. São Paulo, 1978, p. 40.

(2) Charles Expilly, Les Femmes et les Moeurs du Brésil, Paris, 1864, págs. 253 e segs.

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Não existe racismo no Brasil?

O jornal Diário de S. Paulo publicou hoje (23/01/2013), no caderno dia-a-dia, uma notícia que revela claramente como o racismo, além de existir, está institucionalizado no Brasil.

Assinada por Thaís Nunes, notícia da conta de que comandante do batalhão instruiu policiais militares do bairro Taquaral, dos mais nobres de Campinas, a “abordar indivíduos em atitude suspeita, em especial os de cor parda e negra”. Segundo a reportagem, a ordem foi assinada pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, mas o Comando da PM nega teor racista na instrução dada pelo oficial.

Vejam abaixo a íntegra da notícia, tal como publicada no Diário de S. Paulo de 23 de janeiro de 2013, junto com foto da edição impressa do jornal que já está circulando nas redes sociais.

PM DÁ ORDEM PARA ABORDAR NEGROS E PARDOS

Instrução de comandante do batalhão se baseou na descrição de vítima de assalto em bairro luxuoso

Desde o dia 21 de dezembro do ano passado, policiais militares do bairro Taquaral, um dos mais nobres de Campinas, cumprem a ordem de abordar “indivíduos em atitude suspeita, em especial os de cor parda e negra”. A orientação foi dada pelo oficial que chefia a companhia responsável pela região, mas o Comando da PM nega teor racista na determinação.

O documento assinado pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci orienta a tropa a agir com rigor, caso se depare com jovens de 18 a 25 anos, que estejam em grupos de três a cinco pessoas e tenham a pele escura. Essas seriam as características de um suposto grupo que comete assaltos a residências no bairro.

A ordem do oficial foi motivada por uma carta de dois moradores. Um deles foi vítima de um roubo e descreveu os criminosos dessa maneira. Nenhum deles, entretanto, foi identificado pela Polícia Militar para que as abordagens fossem direcionadas nesse sentido.

Para o frei Galvão, da Educafro, a ordem de serviço dá a entender que, caso os policiais cruzem com um grupo de brancos, não há perigo. Na manhã de hoje, ele pretende enviar um pedido de explicações ao governador Geraldo Alckmin e ao secretário da Segurança Pública, Fernando Grella.

O DIÁRIO solicitou entrevista com o capitão Beneducci, sem sucesso. A reportagem também  pediu outro ofício semelhante, em que o alvo das abordagens fosse um grupo de jovens brancos, mas não obteve resposta até o fim desta edição.

Oficial da PM dá ordem para abordar negros e pardos

Foto de matéria assinada por Thais Nunes, publicada na edição de 23/01/2013 do jornal Diário de S. Paulo.

Tal notícia demonstra cabalmente como o racismo é uma prática institucionalizada no Brasil há tempos, ao  contrário do que defendem os paladinos do ideário de uma nação que não é racista, Ali Kamel, Demétrio Magnoli e Renata Kauffman. Para estes, políticas afirmativas como as cotas em universidades para afro-brasileiros, por exemplo, instituiriam o racismo que, na opinião deles, é inexistente no Brasil. Uma vez mais cabe a pergunta: a quem estas pessoas servem ao querer tampar a crua realidade de nossa sociedade? Talvez parte da resposta venha ao olharmos quem assina os contracheques que eles recebem.

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O ódio na mídia conservadora brasileira

O portal Pragmatismo Político publicou texto sobre o ódio presente na mídia conservadora brasileira e de como esta tem a clara intenção de inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva.

O Hum Historiador abre espaço para repercutir o texto de Jaime Amparo Alves, chamado atenção para o time de intelectuais e artistas escolhidos a dedo por esta mídia com o fim de amedrontar a população e, em especial, a classe média. Para Jaime Amparo Alves, as análises de Demétrio Magnoli são exemplares quando se trata desse assunto. Especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.

Sem mais delongas, segue o texto de Jaime Amparo Alves na íntegra.

NUNCA HOUVE TANTO ÓDIO NA MÍDIA CONSERVADORA DO BRASIL
por Jaime Amparo Alves – Publicado originalmente no portal Pragmatismo Político em 30/10/2012

Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro pela internet têm a impressão de que o país nunca esteve tão mal. Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação está de volta, e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio – São Paulo. Com seus gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S. Paulo, Estadão, Veja e O Globo investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva. Até aí nada novo.

Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua, embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação e redistribua as verbas para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia Globo/Veja celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O PT sofre da síndrome de Estocolmo (aquela na qual o sequestrado se apaixona pelo sequestrador) e o exemplo mais emblemático disso é a posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido o linchamento e a inviabilização política das duas administrações petistas em São Paulo.

O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.

Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro. A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral, com o fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinguido para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.

Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu também tenho -, o discurso político que emana dos colunistas dos jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais sofisticados sugerem que a exemplo de Getúlio Vargas, o ex-presidente Lula cometa suicídio; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro, celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.

Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no jornalismo lombrosiano?

Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli , Marco Antonio Villa, Ricardo Noblat , Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, além dos que agora se somam a eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus textos serão utilizados nas disciplinas de ontologia jornalística não apenas com o exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui, mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.

O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem! Tamanha diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação empreendidos no governo do presidente sociólogo! A verdade é que o “mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite ‘sudestina’ ao Palácio do Planalto.

Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país abandonadas com o acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a corroborar com o lobby da Folha de S. Paulo pela lei dos direitos autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da mídia.

Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas, e, incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de Justiça do país. Na última sessão do julgamento da ação penal 470, por exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.

Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na cobertura jornalística por aqui. Informei-lhes que o protagonismo político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que boicotado na mídia nacional. Informei-lhes que acompanhei daqui o presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em instituições européias, e avisei-lhes que por causa da política soberana do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa estratégia de uma America Latina soberana.

Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de aprovação popular, e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua covardia.Terá a Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de e(i)mprensa?

* Jaime Amparo Alves é jornalista, doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas em Austin

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