Neste mês de outubro, trechos de um documentário produzido em 2010 voltaram a circular vivamente nas redes sociais . Trata-se de trechos do documentário Hakani, de David Cunningham, produzido por uma organização estadunidense chamada Youth with a Mission, atuante no Brasil desde 1975 e mais conhecida aqui no Brasil pelo nome de Jocum.
Hakani foi produzido por um grupo de missionários protestantes que explorou a prática do infanticídio entre algumas tribos indígenas, não tão difundida entre os distintos grupos étnicos brasileiros, como instrumento para arrecadar fundos para a missão evangélica e aumentar a capacidade de disseminar sua crença religiosa na região, visando substituir não apenas esse aspecto da cultura dos grupos indígenas sob sua influência, mas praticamente toda a cultura ancestral dessas sociedades.
Ao deparar-me com tal notícia, foi impossível não recordar do livro magistral do nigeriano Chinua Achebe, O Mundo se Despedaça, publicado originalmente em 1958, e reeditado mais recentemente no Brasil pela Companhia das Letras (2009).
O objetivo desse post é, portanto, dar um pouco mais de detalhes sobre a repercussão do vídeo Hakani para, em seguida, destacar trechos da obra de Achebe visando promover uma reflexão sobre as culturas indígenas (a partir da cultura das tribos africanas) e de como esta última acabou substituída a partir da catequização promovida pelos missionários cristãos que, a partir da religião, introduziram os valores da cultura ocidental implementando nas localidades em que chegavam, além da própria instituição religiosa, as jurídico-administrativas.
O CASO HAKANI
O trecho do vídeo mostra índios enterrando crianças de sua própria tribo com problemas mentais ou físicos ainda vivas. As cenas mostram um índio adulto pegando uma criança, aparentemente portadora de uma deficiência física nas mãos, e atirando-a em uma vala recém-cavada. Após deixar a criança desacordada, o adulto joga terra sobre o corpo e o rosto da criança inconsciente até que ela esteja completamente enterrada.
O vídeo em questão trata-se de uma farsa. Hakani foi um filme produzido com indígenas de verdade, porém, pagos para atuarem no filme. Segundo o site do projeto Hakani, a terra utilizada para enterrar a criança que atuou no documentário é, na verdade, bolo de chocolate.
Embora o filme tenha sido encenado, a prática do infanticídio em comunidades indígenas ainda é uma realidade, cada vez menos comum, mais ainda realizada. O filme recebeu esse nome em função de uma pequena índio da tribo Suruwaha adotada por missionários evangélicos. Segundo os pais adotivos de Hakani, membros de sua própria tribo tentaram matá-la enterrando-a viva aos dois anos de idade, porque ela ainda não havia começado a andar e falar àquela época.
Apesar da afirmação da família, o jornal USA Today reportou que embora a família adotiva possua os registros hospitalares e fotos do estado debilitado de saúde na qual encontraram a garotinha, não há como verificar se o que dizem a respeito da tribo é verdade ou não.
Após adotar Hakani, a família decidiu juntar-se ao diretor David Cunningham para a produção do filme com o objetivo de recriar uma “tentativa de assassinato” de uma criança para ilustrar como o infanticídio é uma prática recorrente entre as tribos indígenas do Brasil.
Segundo noticiou o site e-farsas.com, o documentário foi exibido em diversas igrejas nos Estados Unidos para arrecadar fundos e chamar atenção para o infanticídio no Brasil. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), por sua vez, teria considerado “escusa” a origem do filme e teme a generalização inadequada de uma tradição indígena e garante que o assassinato de crianças com deficiência não é comum a todas as etnias. Mesmo entre as tribos que ainda tem esse costume, já existem alternativas de adoção das crianças doentes por outras famílias para evitar as mortes, afirma a fundação.
Ainda de acordo com a notícia do e-farsas.com, a ONG Survival International afirma que:
“Há décadas que os missionários evangélicos escondem seu trabalho, especialmente em lugares como América do Sul, que tem uma tradição católica muito forte. A Jocum foi expulsa de certas áreas do Brasil, mas continua lá ilegalmente.”
Essa mesma organização acusa o filme de ser “uma ferramenta feita para grupos cristãos evangélicos aumentarem a sua capacidade de espalhar a sua crença religiosa, apesar das preocupações do governo brasileiro sobre os seus métodos!”. A ONG afirma ainda que a questão do infanticídio amazônico tem sido distorcida e inflada e, por isso, as pessoas pensam que a matança de bebês é comum entre os índios, enquanto que na prática isso é raro de acontecer. Segundo a Survival International:
“enquanto que as tribos indígenas do Brasil estão sendo expulsas de suas terras ou mortas por fazendeiros, mineradores e madeireiros… A questão do infanticídio é apenas uma distração destrutiva”.
CHINUA ACHEBE: O MUNDO SE DESPEDAÇA
Neste livro, Achebe descreve como era a sociedade dos ibos, a economia, seus líderes e, como não poderia deixar de ser, suas crenças mitológicas. Descreve como eram os deuses, os rituais de purificação, as festas, a plantação, a colheita, as interdições, o casamento, os chefes espirituais e muitos outros aspectos da vida daquela tribo. Como analisa Lucas Deschain, o mundo descrito por Achebe era “um mundo em que a sociedade ibo ainda mantinha-se “intocada” pela colonização europeia, de modo que havia uma preservação muito forte e socialmente endossada das tradições dos antepassados. Aquele arranjo social e histórico, que era mantido por gerações e gerações, havia se estabelecido e se arraigado fortemente nos corações e nas mentes de seus habitantes e cultivadores”. Contudo, mais marcante para este post é a descrição que Achebe faz da chegada do “homem branco” tal como observada pelos ibos. De princípio, os brancos se disseminaram através dos missionários cristãos e suas tentativas de catequização dos indivíduos mais fracos, rejeitados por doenças e/ou proscritos da tribo por alguma violação dos costumes.
Abaixo destacamos alguns trechos de como Achebe descreve a cultura de uma das vilas do povo ibo, na Nigéria, e de como os grupos de missionários ingleses conseguiram se infiltrar no meio deles, disseminando sua fé e, aos poucos, transformando a cultura dos ibos.
O COSTUME DE ABANDONAR OS GÊMEOS NA FLORESTA À PRÓPRIA SORTE
Voltavam para a casa com as cestas dos inhames desenterrados de uma roça distante, na outra margem do rio, quando ouviram uma criança chorando na densa floresta. Fizera-se um súbito silêncio entre as mulheres que vinham a conversar, e elas apressaram o passo. Nwoye tinha ouvido contar que os gêmeos eram colocados em potes de barro e atirados bem longe, na floresta, mas nunca lhe acontecera de encontrá-los no caminho. (p. 81).
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Obirieka era um homem que costumava refletir sobre as coisas. Após a vontade da deusa da terra ter sido cumprida, sentou-se em seu obi e pôs-se a lamentar a desgraça do amigo. Por que alguém deveria passar por tamanho sofrimento por causa de uma ofensa cometida inadvertidamente? Porém, embora pensasse longo tempo sobre isso, não encontrou resposta. Tais pensamentos o levaram a refletir sobre problemas ainda mais complexos. Lembrou-se dos filhos gêmeos que sua mulher tivera e que ele jogara no mato. Que crime eles tinham cometido? A terra decretava que os gêmeos constituíam uma ofensa ao mundo e que precisavam ser destruídos. E se, por acaso, a tribo não punisse rigorosamente qualquer ultraje à poderosa deusa, sua ira cairia sobre toda a região, e não apenas sobre o ofensor, pois, como diziam os anciãos, se um dedo estiver sujo de óleo, manchará os demais. (pp. 144-145).
A CHEGADA DO HOMEM BRANCO
– Durante a última estação de plantio, um homem branco apareceu na terra deles.
– Um albino – sugeriu Okokwo.
– Não, não era um albino. Era um homem completamente diferente. – Bebericou o vinho. – E chegou montado num cavalo de ferro. (p. 158).
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– Mas tudo isso me deixou receoso. Todos nós temos ouvido histórias sobre homens brancos que fazem espingardas poderosas e bebidas fortes, e que levam escravos para longe, através dos mares; mas nunca nenhum de nós pensou que fossem histórias verdadeiras. (p. 161).
CHEGADA DOS MISSIONÁRIOS EM UMUÓFIA
Os missionários tinham chegado a Umuófia. Ali construíram uma igreja, lograram algumas conversões e já começavam a enviar catequistas às cidades e aldeias vizinhas. Isso constituía motivo de grande pesar para os líderes do clã, embora muitos deles acreditassem que aquela estranha fé, bem como o deus do homem branco, não durariam. (…) Chielo, a sacerdotisa de Agbala, chamara os convertidos de excrementos da tribo, e a nova fé, para ela, era um cachorro raivoso que viera devorar os excrementos. (p. 163).
CATEQUIZANDO OS IBOS
A essa altura, um velho disse que tinha uma pergunta a fazer:
– Qual é esse deus de vocês? – indagou. – É a deusa da terra? O deus do céu? Amadiora, o do trovão? Qual é, afinal?
O intérprete transmitiu a pergunta ao homem branco, que imediatamente deu sua resposta.
Todos os deuses que o senhor citou não são deuses de forma alguma. São, isto sim, falsas divindades, que lhes ordenam que matem seus semelhantes e destruam crianças inocentes. Só existe um Deus verdadeiro, e Ele possui a terra, o céu, o senhor, eu e todos nós.
– Se abandonarmos os nossos deuses e resolvermos seguir o seu – indagou outro ouvinte -, quem vai nos proteger contra a ira dos nossos deuses abandonados e dos nossos ancestrais?
– Os deuses de vocês não existem e, portanto, não lhes podem causar nenhum mal – retrucou o homem branco. – São meros pedaços de madeira e de pedra.
Quando essas declarações foram traduzidas para os homens de Mbanta, eles se puseram a rir. Esses sujeitos devem ser doidos, pensaram. Caso contrário, como poderiam acreditar que Ani e Amadiora fossem inofensivos? E que também o fossem Idemili e Ogwugwu? E, assim pensando, alguns homens começaram a ir embora.
Então, os missionários puseram-se a cantar. Era uma dessas músicas alegres e animadas dos evangelistas, que têm o poder de tocar certas cordas mudas e empoeiradas do coração dos ibos. (pp. 166-167).
A INSTALAÇÃO DE IGREJAS E A CRISTIANIZAÇÃO DOS IBOS
– Agora, nós já construímos uma igreja – dizia o sr. Kiaga, o intérprete, que havia tomado a seu cargo a nascente congregação. O homem branco voltara para Umuófia, onde estabelecera seu quartel-general e de onde fazia visitas regulares à congregação de Kiaga, em Mbanta.
– Agora que já temos a nossa igreja – dizia o sr. Kiaga –, queremos que todos vocês venham para cá, de sete em sete dias, adorar o verdadeiro Deus. (p. 171).
OS IBOS QUE SE REFUGIAVAM ENTRE OS MISSIONÁRIOS
(…) Nneka engravidara quatro vezes anteriormente, e quatro vezes dera à luz. Em cada uma dessas vezes tivera gêmeos, e as crianças tinham sido jogadas fora logo após o nascimento. Tanto o marido quanto a família dele já começavam a olhar a mulher com desagrado e estranheza, e não ficaram nem um pouco perturbados ao descobrirem que ela havia fugido para juntar-se aos cristãos. Livraram-se de boa. (p. 172).
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O homem branco trouxera não apenas uma religião mas também um governo. Dizia-se que os missionários tinham construído um local de julgamento em Umuófia, a fim de proteger os prosélitos de sua religião. Dizia-se até mesmo que tinham enforcado um homem que matara um dos missionários. (…) Tais problemas tiveram início com a admissão de parias em seu seio.
Esses párias, ou osu, ao verem que a nova religião recebia gêmeos e outras abominações semelhantes, pensaram que também poderiam ser aceitos por ela. (…) Um osu era uma pessoa dedicada a um deus, uma coisa posta de lado – um tabu para sempre, assim como todos os filhos que viesse a ter. Jamais poderia se casar com um nascido-livre. Na realidade era um proscrito que vivia numa área especial da aldeia, próxima ao Grande Santuário. Aonde quer que fosse, levava em si a marca de sua casta marginalizada: cabelos longos, emaranhados e sujos. As navalhas eram-lhe proibidas. Um osu não podia assistir a uma assembleia dos nascidos-livres, e estes, por sua vez, jamais poderiam abrigar-se sob o teto de um osu. (…) Quando ele morria, era enterrado pelos de sua espécie na Floresta Maldita. Como poderia um homem semelhante tornar-se um dos prosélitos de Cristo?
– Ele precisa de Cristo muito mais do que você ou eu – retrucou o sr. Kiaga.
– Nesse caso, retornarei ao clã – declarou o convertido. E foi-se embora. O sr. Kiaga ficou firme, e foi essa sua firmeza que salvou a jovem igreja. Os convertidos hesitantes receberam inspiração e confiança dessa sua fé inquebrantável. (pp. 178-179).
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[Após sete anos] não apenas os de baixa extração ou os proscritos tinham aderido à nova fé, mas também alguns homes de valor. Um exemplo era Ogbuefi Ugonna, que recebera dois títulos e que, num ato de loucura, cortara a tornozeleira de seus títulos e a jogara fora para se juntar aos cristãos. O missionário branco orgulhava-se muito dele, que fora um dos primeiros homens em Umuófia a receber o sacramento da Sagrada Comunhão, ou Sagrada Festa, como se dizia em ibo. (p. 196).
A REAÇÃO DOS PAIS QUANDO OS FILHOS ABANDONAVAM AS TRIBOS E SE RECOLHIAM NAS IGREJAS
Agora que tinha tido tempo para pensar no caso, o crime do filho destacava-se ainda mais em sua rematada enormidade. Ter abandonado os deuses do próprio pai e sair por aí com um bando de sujeitos efeminados, a cacarejarem como galinhas velhas, era atingir as profundezas da abominação. E se quando ele, Okonkwo, morresse, todos os seus filhos machos resolvessem seguir os passos de Nwoye e abandonassem os ancestrais? Okonkwo sentiu um calafrio diante de tão terrível probabilidade, probabilidade que, para ele, significava uma total aniquilação. Via-se a si próprio e a seu pai, juntos, no santuário dos antepassados, a esperarem inutilmente pelo culto ou pelos sacrifícios de seus descendentes, nada restando ali senão as cinzas do passado, enquanto seus filhos rezavam ao deus do homem branco. Se tal coisa acontecesse, ele, Okonkwo, os faria desaparecer da face terrestre. (p. 174).
O TEMOR DOS MAIS VELHOS PELO DESTINO DOS IBOS
(…) Mas temo por vocês, os jovens, porque vocês não compreendem como são fortes os laços de família. Não sabem o que é falar com uma só voz. E qual é o resultado disso? Uma religião abominável instalou-se entre vocês. De acordo com essa religião, um homem pode abandonar o pai e os irmãos. Pode blasfemar contra os deuses de seus pais e contra os antepassados, como se fosse um cachorro de caça que de repente ficasse louco e se voltasse contra o dono. Temo por vocês e temo pelo nosso clã. (p. 189).
A IMPOSSIBILIDADE DE EXPULSAR O HOMEM BRANCO DEPOIS DE ALGUNS ANOS
(…) Os antepassados deles jamais ousaram enfrentar os nossos ancestrais. Precisamos lutar contra aqueles homens e expulsá-los de nossa terra.
– Acho que agora é tarde demais – referiu Obierika, tristemente. – Nossos prórios canaradas e nossos filhos já se juntaram às fileiras do forasteiro. Adotaram a religião dele e ajudam a apoiar o seu governo. Não será difícil tentar expulsar os homens brancos de Umuófia, pois só há dois deles. Mas que dizer da nossa própria gente, que segue o mesmo caminho e a quem eles deram poder? Iriam a Umuru e trariam soldados, e aconteceria conosco o mesmo que aconteceu em Abame. – Fez uma longa pausa e, depois, continuou: – Penso que já lhe contei, em minha última visita a Mbanta, como foi que enforcaram Aneto.
– O que aconteceu, afinal, com aquele pedaço de terra em disputa? – perguntou Okwonkwo.
– A corte do homem branco decidiu que deverá pertencer à família de Nnama, que tem dado muito dinheiro aos funcionários e ao intérprete do homem branco.
– Por acaso o homem branco entende os nossos costumes no que diz respeito à terra?
– Como é que ele pode entender, se nem sequer fala a nossa língua? Mas declara que nossos costumes são ruins; e nossos próprios irmãos, que adotaram a religião dele, também declaram que nossos costumes não prestam. De que maneira você pensa que poderemos lutar, se nossos próprios irmãos se voltaram contra nós? O homem branco é muito esperto. Chegou calma e pacificamente com sua religião. Nós achamos graça nas bobagens deles e permitimos que ficasse em nossa terra. Agora, ele conquistou até nossos irmãos, e o nosso clã já não pode atuar como tal. Ele cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos. (p. 198).
A HISTÓRIA DE UMUÓFIA CONTADA POR UM DOS COMISSÁRIOS INGLESES
(…) Durante os muitos anos em que arduamente vinha lutando para trazer a civilização a diversas regiões da África, tinha aprendido várias coisas. Uma deles era que um comissário distrital jamais deveria presenciar cenas pouco dignas, como, por exemplo, o ato de cortar a corda de um enforcado. Se o fizesse, os nativos teriam uma pobre opinião dele. No livro que planejava escrever, daria ênfase a esse ponto. Enquanto percorria o caminho de volta ao tribunal, ia pensando em seu livro. Cada dia que passava trazia-lhe um novo material. A história desse homem que matara um guarda e depois se enforcara daria um trecho bem interessante. Talvez rendesse até mesmo um capítulo inteiro. Ou, talvez, não um capítulo inteiro, mas, pelo menos, um parágrafo bastante razoável. Havia tantas coisas mais a serem incluídos, que era preciso ter firmeza e eliminar os pormenores.
O comissário, depois de muito pensar, já havia escolhido o título do livro: A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Prefiro deixar que os leitores façam suas próprias considerações finais [se é que chegaram até o fim do post] após comparar o caso Hakani com os trechos que destaquei do livro de Chinua Achebe. Acho que, de modo bastante claro, deixei minha opinião expressa no título deste post.
Entendo que não é fácil posicionar-se em uma situação como esta, pois há, aqui, uma sobreposição [ou um choque] de valores fundamentais. Se acreditamos que a vida é um valor universal e, ao mesmo tempo, entendemos que devemos respeitar as culturas e tradições de outras sociedades, isto é, ter respeito pela alteridade cultural, como devemos nos posicionar diante de uma situação em que a cultura do outro, em algumas situações específicas, atentará contra a vida de alguns entes de seu próprio corpo social? Isso é ou não é de nossa conta? Devemos interferir? Se sim, o que nos leva a crer que nossos valores são superiores ao do outro? Não teremos nós, em nosso meio, costumes ou práticas tão abomináveis quanto essa? O preço que o outro deve pagar pelo azar de ter encontrado a nossa sociedade é a submissão de seus valores e a transformação absoluta dos mesmos pela assimilação dos nossos valores até um ponto onde a sua cultura ancestral vire apenas uma longínqua lembrança, traços e reminiscências, como o nome de uma praça, uma dança típica ou um prato de comida?
Quaisquer que sejam as respostas a essas perguntas, não creio que passem por um grupo de missionários evangélicos. Aliás, essa é a pior forma e a que trará maiores prejuízos aos Suruwahas. Tão ou mais violento que as mortes provocadas pelo infanticídio, é o maldito proselitismo cristão que, ao desrespeitar a alteridade cultural dos povos, transforma-os ao ponto de seus próprios membros não mais se reconhecerem como tal e, com o tempo e a catequização dos infantes, simplesmente deixarem de ter uma existência física.