Há alguns dias eu conversava com minha esposa sobre as mortes causadas pela COVID-19 e ela levantou algumas questões que ainda vejo ter pouca repercussão nas mídias: como é que a humanidade ainda sofre com infecções como as pneumonias em pleno século XXI? Mais ainda, como é que tal patologia pode ser tão letal e por que não conseguimos desenvolver tratamentos muito mais eficazes do que o de submeter os pacientes mais graves a ventiladores artificiais em centros de terapia intensiva? Será que isso é o melhor que podemos oferecer?
O desenvolvimento tecnológico nas mais diversas áreas foi capaz de nos levar a lugares inimagináveis. Fomos à Lua; nos tornamos ubíquos com a Internet; buscamos petróleo a profundidades incríveis e, no entanto, ainda somos duramente afligidos por diferentes tipos de pneumonia. Mesmo no campo da medicina já desenvolvemos curas para doenças que achávamos impossíveis, como alguns tipos de câncer; tornamos o convívio com o HIV menos letal, prolongando a vida dos soropositivos; deciframos e, até mesmo, já falamos em editar o DNA, mas ainda pouco avançamos no combate a essas doenças respiratórias. Por quê? Como compreender tamanha impotência diante de doenças que não são nenhuma novidade, mas com as quais os humanos convivem desde que se tem memória? Sim, porque embora o coronavírus seja algo bastante recente, suas vítimas fatais são acometidas de uma grave crise respiratória e perdem suas vidas sufocadas em líquidos decorrentes da inflamação dos alvéolos pulmonares. Em outras palavras, uma pneumonia viral. Assim, por mais que sejamos capazes de compreender a dificuldade de se encontrar curas ou produzir vacinas contra os vírus, o que nos deixa intrigados é como ainda não fomos capazes de desenvolver tratamentos menos complexos e dispendiosos do que os respiradores artificiais para os casos mais graves. Vale lembrar que cerca de 450 milhões de pessoas ao redor do mundo são afetadas pelas pneumonias anualmente, das quais aproximadamente 1% falecem desse mal.
Tais questões nos levam a refletir nas imbricações entre a medicina a indústria farmacêutica e a economia ou, melhor dizendo, a suspeitar que a referida impotência no tratamento das pneumonias relaciona-se diretamente à falta de investimentos em pesquisa e desenvolvimento na área. Nesse sentido, se pararmos para pensar que o motor que move a indústria farmacêutica – tal como todas as outras – é a capacidade de gerar lucros e dividendos maiores à cada ano para seus acionistas, passamos a entender porque se investe muito mais no desenvolvimento de novos cremes estéticos do que em meios mais eficientes de se tratarem as pneumonias. Qualquer investimento nessa direção parece antieconômico, uma vez que o número total daqueles que necessitarão de tratamentos mais complexos não se comparam com o mercado dos produtos ligados à estética ou tratamentos para o aumento da libido, por exemplo. Além disso, ganha-se muito mais dinheiro no desenvolvimento de atenuantes dos sintomas, que servem não só para as pneumonias, mas ainda para as diversas cepas de gripe e, também, resfriados, atingindo um público bem amplo. Assim, aqueles 4 milhões de casos graves anuais espalhados pelo mundo – sobretudo nos países em desenvolvimento – podem muito bem ser atendidos, quando muito, por leitos de UTI com respiradores mecânicos.
Para o linguista estadunidense Noam Chomsky, em entrevista concedida ao portal Diálogos do Sul em fins de março, nosso destino foi entregue a “tiranias privadas, corporações”, também conhecida como “o Big Farma”. Chomsky também chama atenção para o fato de ser mais lucrativo a produção de cremes corporais em vez de vacinas que protejam as pessoas da destruição total. Como saída, aponta para o papel do Estado, que deve voltar às “mobilizações dos tempos de guerra”, tal como ocorreu com a pólio durante a II Guerra Mundial, quando instituições estatais estadunidenses desenvolveram a vacina Salk, sem patentes, disponível a todos. O que estaria impedindo isso? Para Chomsky é a “praga neoliberal”, uma “ideologia para a qual os economistas tem uma boa parte de responsabilidade, que vem do setor corporativo”. Segundo essa ideologia:
[…] o governo é o problema. Vamos nos livrar do governo que quer dizer “vamos deixar as decisões nas mãos das tiranias privadas que não tem responsabilidade com o público”.
Isso, pelo menos, era o que vigia até janeiro deste ano, quando fomos “surpreendidos” pela crise sanitária mundial por COVID-19. Agora, no meio dessa profunda crise, vê-se grandes somas de recursos estatais e da iniciativa privada sendo carreados para pesquisas na área e, vejam só, trazendo alguns resultados positivos em vários países. Ainda que positiva, tal situação nos deixa perplexos diante da constatação de que, tal como a fome, a morte por diversas doenças que assolam a humanidade é uma mera questão de escolha e, ao fim, quem toma essas decisões de vida ou morte é o mercado. Ainda assim, convém lembrar que essa urgência no desenvolvimento de tratamentos mais eficazes para crises agudas respiratórias só se deu porque a velocidade de transmissão do coronavírus coloca em risco de colapso os sistemas de saúde ao redor do mundo e não pela morbidade da doença. E é aí, sobretudo, que vemos o quanto o Estado tem um papel fundamental a desempenhar. Somente o fomento público à pesquisa é capaz de investir a quantidade de recursos necessária em áreas independentemente do lucro que estas possam lhe dar. As universidades e os institutos de pesquisa, portanto, ganham protagonismo, pois são os lugares de pesquisa por excelência. Diante desse cenário de crise, temos uma grande oportunidade de chamar atenção da sociedade para reforçarmos nossos sistemas de saúde e educação pública, sucateadas pela falta de investimento durante os últimos governos neoliberais.
A pergunta que fica disso tudo é, quando os efeitos de mais essa crise sanitária começarem a se atenuar, e os corpos se contarem aos milhões ao redor do mundo, como o mercado irá reagir? Nos casos anteriores (SARS, gripe suína, etc.), vimos que a indústria farmacêutica pouco se moveu no sentido de se preparar para novas pandemias que, sabia-se desde 2002, poderiam surgir a qualquer momento, como de fato acabou acontecendo. Continuaremos a depender apenas dos investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento e a morrer afogados pelas novas pneumonias que surgirem? Seguiremos com tecnologias capazes de nos levar à Lua ou à colonizar Marte, mas insuficientes para drenarem nossos pulmões porque nos recusamos a fortalecer nossos sistemas de saúde e educação públicas? Ficam aí todas essas questões para a reflexão, enquanto seguimos a quarentena.