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COVID-19: Por que temos tecnologia para ir ao espaço, mas ainda morremos de pneumonias?

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Há alguns dias eu conversava com minha esposa sobre as mortes causadas pela COVID-19 e ela levantou algumas questões que ainda vejo ter pouca repercussão nas mídias: como é que a humanidade ainda sofre com infecções como as pneumonias em pleno século XXI? Mais ainda, como é que tal patologia pode ser tão letal e por que não conseguimos desenvolver tratamentos muito mais eficazes do que o de submeter os pacientes mais graves a ventiladores artificiais em centros de terapia intensiva? Será que isso é o melhor que podemos oferecer?

O desenvolvimento tecnológico nas mais diversas áreas foi capaz de nos levar a lugares inimagináveis. Fomos à Lua; nos tornamos ubíquos com a Internet; buscamos petróleo a profundidades incríveis e, no entanto, ainda somos duramente afligidos por diferentes tipos de pneumonia. Mesmo no campo da medicina já desenvolvemos curas para doenças que achávamos impossíveis, como alguns tipos de câncer; tornamos o convívio com o HIV menos letal, prolongando a vida dos soropositivos; deciframos e, até mesmo, já falamos em editar o DNA, mas ainda pouco avançamos no combate a essas doenças respiratórias. Por quê? Como compreender tamanha impotência diante de doenças que não são nenhuma novidade, mas com as quais os humanos convivem desde que se tem memória? Sim, porque embora o coronavírus seja algo bastante recente, suas vítimas fatais são acometidas de uma grave crise respiratória e perdem suas vidas sufocadas em líquidos decorrentes da inflamação dos alvéolos pulmonares. Em outras palavras, uma pneumonia viral. Assim, por mais que sejamos capazes de compreender a dificuldade de se encontrar curas ou produzir vacinas contra os vírus,  o que nos deixa intrigados é como ainda não fomos capazes de desenvolver tratamentos menos complexos e dispendiosos do que os respiradores artificiais para os casos mais graves. Vale lembrar que cerca de 450 milhões de pessoas ao redor do mundo são afetadas pelas pneumonias anualmente, das quais aproximadamente 1% falecem desse mal.

Tais questões nos levam a refletir nas imbricações entre a medicina a indústria farmacêutica e a economia ou, melhor dizendo, a suspeitar que a referida impotência no tratamento das pneumonias relaciona-se diretamente à falta de investimentos em pesquisa e desenvolvimento na área. Nesse sentido, se pararmos para pensar que o motor que move a indústria farmacêutica – tal como todas as outras – é a capacidade de gerar lucros e dividendos maiores à cada ano para seus acionistas, passamos a entender porque se investe muito mais no desenvolvimento de novos cremes estéticos do que em meios mais eficientes de se tratarem as pneumonias. Qualquer investimento nessa direção parece antieconômico, uma vez que o número total daqueles que necessitarão de tratamentos mais complexos não se comparam com o mercado dos produtos ligados à estética ou tratamentos para o aumento da libido, por exemplo. Além disso, ganha-se muito mais dinheiro no desenvolvimento de atenuantes dos sintomas, que servem não só para as pneumonias, mas ainda para as diversas cepas de gripe e, também, resfriados, atingindo um público bem amplo. Assim, aqueles 4 milhões de casos graves anuais espalhados pelo mundo – sobretudo nos países em desenvolvimento – podem muito bem ser atendidos, quando muito, por leitos de UTI com respiradores mecânicos.

Para o linguista estadunidense Noam Chomsky, em entrevista concedida ao portal Diálogos do Sul em fins de março, nosso destino foi entregue a “tiranias privadas, corporações”, também conhecida como “o Big Farma”. Chomsky também chama atenção para o fato de ser mais lucrativo a produção de cremes corporais em vez de vacinas que protejam as pessoas da destruição total. Como saída, aponta para o papel do Estado, que deve voltar às “mobilizações dos tempos de guerra”, tal como ocorreu com a pólio durante a II Guerra Mundial, quando instituições estatais estadunidenses desenvolveram a vacina Salk, sem patentes, disponível a todos. O que estaria impedindo isso? Para Chomsky é a “praga neoliberal”, uma “ideologia para a qual os economistas tem uma boa parte de responsabilidade, que vem do setor corporativo”. Segundo essa ideologia:

[…] o governo é o problema. Vamos nos livrar do governo que quer dizer “vamos deixar as decisões nas mãos das tiranias privadas que não tem responsabilidade com o público”.

a praga neoliberal bloqueia isso. Estamos vivendo sobre uma ideologia para qual os economistas tem uma boa parte de responsabilidade, que vem do setor corporativo. Uma ideologia que é tipificada por aquilo que Ronald Reagan colocou no script, pelo seu Mestres corporativos com seus sorrisos reluzentes, dizendo que governo é o problema. Vamos nos livrar do governo que quer dizer "vamos deixar as decisões nas mãos das tiranias privadas que não tem responsabilidade com o público".
Foto: Reprodução Winkiemedia. Conferência magistral de Noam Chomsky.

Isso, pelo menos, era o que vigia até janeiro deste ano, quando fomos “surpreendidos” pela crise sanitária mundial por COVID-19. Agora, no meio dessa profunda crise, vê-se grandes somas de recursos estatais e da iniciativa privada sendo carreados para pesquisas na área e, vejam só, trazendo alguns resultados positivos em vários países. Ainda que positiva, tal situação nos deixa perplexos diante da constatação de que, tal como a fome, a morte por diversas doenças que assolam a humanidade é uma mera questão de escolha e, ao fim, quem toma essas decisões de vida ou morte é o mercado. Ainda assim, convém lembrar que essa urgência no desenvolvimento de tratamentos mais eficazes para crises agudas respiratórias só se deu porque a velocidade de transmissão do coronavírus coloca em risco de colapso os sistemas de saúde ao redor do mundo e não pela morbidade da doença. E é aí, sobretudo, que vemos o quanto o Estado tem um papel fundamental a desempenhar. Somente o fomento público à pesquisa é capaz de investir a quantidade de recursos necessária em áreas independentemente do lucro que estas possam lhe dar. As universidades e os institutos de pesquisa, portanto, ganham protagonismo, pois são os lugares de pesquisa por excelência. Diante desse cenário de crise, temos uma grande oportunidade de chamar atenção da sociedade para reforçarmos nossos sistemas de saúde e educação pública, sucateadas pela falta de investimento durante os últimos governos neoliberais.

A pergunta que fica disso tudo é, quando os efeitos de mais essa crise sanitária começarem a se atenuar, e os corpos se contarem aos milhões ao redor do mundo, como o mercado irá reagir? Nos casos anteriores (SARS, gripe suína, etc.), vimos que a indústria farmacêutica pouco se moveu no sentido de se preparar para novas pandemias que, sabia-se desde 2002, poderiam surgir a qualquer momento, como de fato acabou acontecendo. Continuaremos a depender apenas dos investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento e a morrer afogados pelas novas pneumonias que surgirem? Seguiremos com tecnologias capazes de nos levar à Lua ou à colonizar Marte, mas insuficientes para drenarem nossos pulmões porque nos recusamos a fortalecer nossos sistemas de saúde e educação públicas? Ficam aí todas essas questões para a reflexão, enquanto seguimos a quarentena.

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O NÓ: ato humano deliberado

Documentário por Dilson Araújo
70 minutos – 2012

A introdução criminosa da doença vassoura-de-bruxa nas plantações de cacau do sul da Bahia e o fracasso da intervenção do Governo brasileiro através do Programa de Recuperação da Lavoura ocasionaram um desastre socioeconômico e ecológico sem precedentes, que inviabilizou mais de seiscentos mil hectares da cultura, destruindo as vidas e os sonhos de milhares de famílias de trabalhadores rurais, cacauicultores e comerciantes. O evento extinguiu 250.000 postos de trabalho, provocou o êxodo de aproximadamente 800.000 homens, mulheres e crianças que moravam nas fazendas e ainda quebrou a economia de quase cem municípios. As conseqüências da catástrofe continuam repercutindo desde 1989 e afetam uma importante zona biogeográfica, onde vivem quase três milhões de pessoas. Esse filmem de Dilson Araújo, aborda o fato a partir das evidências e dos argumentos contidos nos relatos dos depoentes e em documentos oficiais.

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[Tim Vickery] O Brasil de 2015 e a Inglaterra dos anos 1960

O Hum Historiador repercute uma coluna escrita pelo correspondente e colunista da BBC no Brasil, Tim Vickery, sobre as semelhanças que ele vê no Brasil atual e a Inglaterra da década de 1960, onde ele viveu.

Acho interessante a percepção de Vickery a respeito da Classe Média na Inglaterra dos anos 60 e no Brasil, ano passado.

Eduardo Martino

MINHA PRIMEIRA GELADEIRA E POR QUE O BRASIL DE HOJE LEMBRA A INGLATERRA DOS ANOS 60
por Tim Vickery | publicado originalmente no portal da BBC | nov.2015

Acho que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de sorte. Que momento! The Rolling Stones cantavam I Can’t Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma música do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.

Na minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem geladeira, televisão ou máquina de lavar. Mas eram apenas limitações, e não o medo e a pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.

Tive saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de Londres, um apartamento com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade além dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor ainda, o Estado me bancava.

Olhando para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro. O curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores. Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.

Será que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Não tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da Inglaterra da minha infância.

Por lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular (1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan, que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: “nunca foi tão bom para você” (“you’ve never had it so good”, em inglês).

É a versão britânica do “nunca antes na história desse país”. Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas palavras, comemorando um “estado de prosperidade como nunca tivemos na história deste país” (“a state of prosperity such as we have never had in the history of this country”, em inglês).

Macmillan, “Supermac” na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.

Em 1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou “a raiva da classe média” e temeu uma “luta de classes”. Quatro anos mais tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como resultado da “revolta da classe média e da classe média baixa”, que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da chamada “classe trabalhadora” (“working class”, em inglês) na Inglaterra.

Em outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.

Mais uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Alguns anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava ganhando demais.

No Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de trabalhadores em setores menos “nobres”? Me despedi do elemento com a mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a distribuição de renda.

Mais tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam intactas.

Agora, não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação. Essa história se aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma reação.

No cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.

A revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos. Mas tem um outro fator muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o progresso popular. Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem mais humilde. Firme e forte é a mentalidade do: “de que adianta ir a Paris para cruzar com o meu porteiro?”.

Harold Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos. Consumo não é tudo, mas tem seu valor. Sei por experiência própria que a primeira geladeira a gente nunca esquece.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick

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A crise econômica no Brasil resulta do fracasso da estratégia liberal

Esta é a conclusão de Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e integrante da Plataforma Política Social.

O texto a seguir foi publicado no portal da Carta Maior e teve como base a entrevista concedida pelo professor à repórter Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual.

O Hum Historiador repercute o texto na íntegra a seguir. No site da Carta Maior é possível ouvir o áudio da entrevista concedida à Rádio Brasil Atual.

LIBERAIS SÃO HIPÓCRITAS QUANDO SE DIZEM ASSUSTADOS COM A CRISE

Peter Ilicciev

São Paulo – Em entrevista à repórter Marilu Cabañas da Rádio Brasil Atual, o economista Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp e integrante da Plataforma Política Social, considera hipocrisia sem tamanho a atitude de economistas liberais de se assustarem com a atual crise econômica no país. “O que foi feito nada mais é do que aquilo que eles sempre receitaram; acham amarga uma comida cuja receita eles elaboraram”, afirma.

Fagnani é um dos autores do documento “Por um Brasil Justo e Democrático”, lançado no ano passado e elaborado por economistas, advogados, urbanistas, outros profissionais e intelectuais de diversas universidades. Para o professor da Unicamp, a crise econômica no Brasil é o fracasso da estratégia liberal.

O professor lembra que economistas ligados ao pensamento progressista defenderam o programa econômico da candidata Dilma Rousseff, por ser um contraponto ao projeto elaborado pelos economistas liberais, ligados aos candidatos Aécio Neves e Marina Silva. De cunho claramente recessivo e com o único objetivo de colocar a inflação no centro da meta a qualquer preço, os programas dos candidatos de oposição seguiam a lógica liberal: a renda cai, a demanda diminui e os preços são derrubados, mesmo que isso gere desemprego. Mas com a recessão as receitas do governo despencam, o que agrava o desequilíbrio fiscal.

O economista lembra que a tese liberal voltou em 2015, já que a oposição defendeu a “revisão do pacto social da redemocratização”, porque entende que as despesas das políticas sociais asseguradas pela Constituição de 1988 cresceram muito, e isso, para eles, explica o problema fiscal. Não aprenderam com o fato de que as políticas de austeridade afundaram a Europa, que vive uma crise há dez anos que ampliou a desigualdade, a pobreza e o destruiu o mercado de trabalho.

Segundo ele, o dado mais inusitado é que após a vitória eleitoral, essas ideias foram acatadas pelo governo Dilma. “Em 2014, foi lançado um manifesto de diversos economistas, que diziam que era um erro de estratégia, que a recessão seria aprofundada, haveria consequências enormes à sociedade. E nós da Plataforma Política Social começamos algumas revistas eletrônicas, uma com o título A virada neoliberal de Dilma, e infelizmente muitos acertaram as previsões.”

Em 2014, o Brasil não vivia uma crise com a gravidade que a oposição fazia crer, ressalta o economista. Ele acrescenta que a situação não era confortável, era o fim do ciclo de crescimento, em parte sustentado pelo mercado interno e o cenário internacional era desfavorável com os desdobramentos da crise de 2008. O comércio internacional, que crescia 8% ao ano na década passada, passou a 2% ao ano.

“Além disso, foram cometidos erros domésticos, como a política de desonerações e o aumento da taxa de juros a partir do início de 2013, mas nem assim era possível você afirmar que o Brasil vivia uma crise terminal, como passou a ser dito. Qual foi o grande indicador que dizia que o Brasil estava em uma crise fiscal enorme? É que em 2014 tivemos um déficit primário de 0,6%, esse foi o indicador que deflagrou o terrorismo econômico.”

De 2009 a 2013, o Brasil foi um dos únicos países do mundo que conseguiu um superávit primário, mas para o professor da Unicamp, prevaleceu a narrativa da crise terminal, e o governo Dilma não desenvolveu uma estratégia de comunicação para contrapor as críticas.

“O governo abriu a mão da hegemonia do debate, a narrativa liberal foi vitoriosa e contou com a ampla divulgação dos meios de comunicação; e, como sabemos, os meios de comunicação erradicaram a pluralidade das ideias econômicas, isso é gravíssimo. O que nos deixa preocupados é a unanimidade rasteira, sem consistência, ideológica. E o mais grave é que não leva em conta a complexidade e a gravidade externa desde 2008. Atualmente, estamos vivendo o aumento da taxa de juros americana.”

“O pacote mercadológico é de que a economia mundial está bem, e o problema brasileiro, em 2014, era fruto exclusivo do excesso da intervenção do Estado. A crise fiscal é fruto de políticas ‘populistas’, que visam a enfrentar a desigualdade social. É isso que foi vendido. Era possível fazer um ajuste mais gradual, e que não perdesse a perspectiva do longo prazo: qual o problema de o Brasil ter um déficit primário de 1% durante três anos? Se fosse problema, o Japão já tinha sumido do mapa, pois já possui déficits primários de 8% há dez anos.”

Em 2015, o quadro muda, surge uma grave crise que tem nome e sobrenome, diz Eduardo. “Essa crise é fruto da implantação do receituário ortodoxo liberal, que tem sido defendido por economistas liberais. O ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy é formado em Chicago, representa essa corrente de pensamento, e ele fez o que os economistas diziam que deveria ser feito. O que é mais paradoxal é que hoje quando você lê os jornais, os economistas liberais ficam assustados com a crise econômica, mas esquecem que o que foi feito é o que sempre receitaram. Eles acham amarga uma comida cuja receita é deles. É uma hipocrisia.”

O professor prevê que em 2016 não será fácil alterar a expectativa negativa plantada na econômica brasileira pela oposição. Para ele, fator promissor é que o debate amadureceu, e os movimentos sociais incorporaram a discussão, defenderam mudanças na política econômica, e a pressão social chegou ao governo. A saída de Levy e entrada de Nelson Barbosa no Ministério da Fazenda é promissora.

“Acho um fato positivo a reativação do Conselho de Desenvolvimento Social, vi com bons olhos os anúncios dos jornais de que o ministro Nelson Barbosa irá apresentar o projeto que ele tem para reativar a econômica e irá discutir isso no conselho. Acredito que abre uma perspectiva para que 2016 seja melhor que 2015, e interrompa o processo de deterioração, para começar um processo de retomada em 2017. É difícil reverter, mas abre uma perspectiva favorável.”

 

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Elites brasileiras não evoluíram desde 1964, diz Maria Aparecida de Aquino

No aniversário de 51 anos do GOLPE MILITAR que derrubou João Goulart, em 1964, o site Brasil de Fato fez uma entrevista com a historiadora aposentada da USP, Maria Aparecida de Aquino, na qual ela considera que o comportamento das elites brasileiras não mudou muito desde 1964.

Abaixo segue a entrevista na íntegra tal como publicado no Brasil de Fato.

“AS ELITES NÃO EVOLUÍRAM. AINDA É MUITO PARECIDO COM 1964, AFIRMA HISTORIADORA”
por Rafael Tatemoto | publicado originalmente em Brasil de Fato em 01.abr.2015

Maria Aparecida de Aquino é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, colabora com o Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma instituição. Durante a carreira, se dedicou ao estudo da repressão política durante o período da ditadura civil-militar no Brasil, especialmente a censura exercida sobre os veículos de comunicação.

Nesta entrevista à Agência Brasil de Fato, ela aborda os motivos que levaram ao golpe de Estado, o papel exercido pela imprensa e faz comparações com o atual cenário da política nacional. Segundo a historiadora, há um elemento em comum entre passado e presente: “Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964.”

Brasil de Fato: Quais foram os motivos que levaram ao golpe de 1964?

A gente precisa levar em consideração que no golpe estão presentes diversas forças dentro do Brasil, bem como existiu apoio internacional – mais especificamente, apoio dos Estados Unidos. Quando a gente pensa quais seriam os motivos que levariam essas forças internas e externas a embarcarem numa aventura, que foi o golpe de 1964 – aventura essa ilegal e ilegítima sobre todos os aspectos – existem razões bastantes diversas. Se tivéssemos que centralizar essas razões eu diria que, basicamente, foi o programa de reformas, as chamadas reformas de base do então presidente João Goulart, o elemento detonador dessa questão. Essas reformas atingiriam todos os setores: penetrariam na educação, no mundo agrícola, na indústria. Era uma proposta para mudar o Brasil.

Mas não se tratavam de reformas feitas em outros países? Por que aqui não foram aceitas pela elite?

Sim, era um projeto reformista, não revolucionário, mas “há elites e há elites”. Ela não aceitou porque não suporta partilhar, essa é a característica da nossa elite. Não apenas da elite do nosso país. É uma marca das elites dos países que eram consideradas subdesenvolvidas.

Enquanto você tem nos países considerados avançados, como Inglaterra, França, Alemanha, uma determinada caracterização das elites, na medida em que não existe um distanciamento tão grande entre aquele que pertence à elite e aquele que está alijado na sociedade, no Brasil e em outras nações, você tem uma distância imensa. Existem nações em que o menor salário e o maior não ultrapassa dez vezes. Aqui não dá para mensurar quantas vezes ultrapassa. Consequentemente esse distanciamento tão grande faz com que essa elite nossa não seja tão permissiva.

Ela não admite, ela não é democrática. Ela é cruel, mesquinha. No momento em que ela diz “não podem se sentar à mesa”, ela está negando o próprio desenvolvimento. Porque é do acesso dessas pessoas a bens que elas não teriam, e a possibilidade que elas teriam que, inclusive, você tem o maior desenvolvimento do país. Quanto mais gente consumindo, partilhando, mais o país será desenvolvido. Nossa elite nega inclusive o desenvolvimento. O seu próprio desenvolvimento. É predatória, talvez seja o melhor adjetivo para ela.

Hoje se fala muito do papel de resistência à ditadura que os órgão de imprensa desempenharam. Como eles atuaram antes do golpe?

Têm um papel de protagonismo. Eles foram conspiradores. Toda a grande imprensa estava na conspiração contra a democracia. Vai ser uma das articuladoras mais importantes do golpe. O único veículo que não apoiou o golpe e se manteve ao lado do regime deposto foi o jornal “Última Hora”, do Samuel Wainer. Por conta disso, ele ganhou um inimigo total, que vai destruir o jornal. Demora pelo menos quatro anos até ele perder a posse do jornal em 1968, mas é destruído. Também ocorreu com o “Correio da Manhã”, que apoia o golpe, mas que dois dias depois já está contra, se colocando na oposição, já que percebeu o monstro que ajudou a criar. Por conta disso, também será destruído, pelo mesmo grupo que comprou o “Última Hora”.

Então como se explica que parte da grande impressa, após esse momento inicial, passa a resistir à ditadura?

A maior parte dos órgãos de divulgação de notícias tem um tendência absolutamente liberal. Faz parte dos objetivos do liberalismo a defesa da liberdade de expressão e de opinião. Então, a liberdade de imprensa é um elemento central no interior da plataforma liberal. A imprensa tem essa plataforma. Não é o tipo de coisa que eles queriam que acontecesse. Embarcou numa terrível aventura, descobriu que a canoa era furada, num determinado momento a canoa deles também fura. O exemplo lapidar é o jornal que eu estudei, “O Estado de S. Paulo”. Foi um grande conspirador. Os Mesquita [família dona do jornal] assumem que estavam na conspiração, dois anos antes do golpe eles já faziam parte das reuniões que discutiam como seriam o Brasil depois do apocalipse. Mas três anos depois do golpe já está na linha de tiro, tanto que vai receber a censura. Talvez o único, ao lado da revista “Veja” órgão da grande imprensa que tem censura prévia no interior da redação.

Com o fim da ditadura, é possível dizer que há uma contradição entre democratização política e a ausência de democratização da mídia?

Os grandes blocos de comunicação, o Brasil tem meia dúzia, se chegar a tanto, você observa que eles não tem como seu ideal a defesa da democratização das comunicações. Porque democratizar significa, ao fim, que você dará liberdade para as pessoas se organizarem em pequenos jornais que nasceriam, que passariam a ter direito à luz do sol. Para grande imprensa isso não interessa.

Quando você pega “o grande jornal A” versus “o grande jornal B” você vai ver manchetes idênticas, até a fotografia de capa muito parecida. O mesmo para as grandes revistas, parece tudo a mesma coisa. É bom esse mundo, né? Esse mundo entre “iguais” agrada a grande imprensa, o mundo da diversidade não.

Na realidade se está na defesa do oligopólio. Há grupos enormes que dominam fatias gigantescas do mercado das comunicações. É uma defesa cooperativista. Não quer que outros entrem. Para eles o “mesmismo” é bom. De forma alguma tem a ver com liberdade imprensa. Liberdade de imprensa, inclusive, seria lutar pela diversidade

Você vai em uma cidade do Acre, tem uma concessionária dos grandes veículos. É isso que está em jogo. Por isso que está jogo, a perda de domínio. No Brasil, antes mesmo de se colocar em pauta, se faz o discurso de dizer que está se ameaçando a liberdade de imprensa.

Nesse sentido, qual sua avaliação mais geral sobre o papel da imprensa no fortalecimento da democracia?

Fortalece enquanto defensora das liberdades democráticas, dentre elas a liberdade de expressão e imprensa. Tem um papel importante sim, mas não se pode dizer que ela seja fiel à democracia no sentido de que a democracia também significa conviver com o diferente, com o antagônico. O que se vê hoje é a incapacidade de viver com o antagônico. “Vocês estão de um lado, eu de outro, não quero diálogo”. Hoje cumpre um papel péssimo, nesse sentido

Eu fico muito chateada e entristecida quando eu comparo as manchetes que antecedem o golpe de 1964 e o que se faz hoje na grande imprensa. Só é comparável o que se faz hoje em relação ao governo. A grande imprensa está fazendo isso de novo, não aprendeu com a censura, com o fechamento com o empastelamento, não aprendeu nada, repete a mesma coisa. Só a semelhança com a destruição que hoje se faz do governo com o processo de destruição de que foi alvo o governo de João Goulart.

Quando você acompanha as manchetes, as primeiras páginas, os editoriais daquela época, eles são devastadores. Não é “queremos um Brasil melhor”, mas sim “o que está aí não nos serve”, independente de ser democrático ou não, então partiram pro ataque. Está acontecendo o pior que pode ocorrer, não se está dando possibilidade de defesa para alguém que você colocou no chão. Usa-se todo seu potencial e destrata cada um dos pontos do governo. “Nada é bom”.

“O Brasil teve coisas negativas, mas cresceu o nível de emprego”. O “mas cresceu o nível de emprego” é o mais importante, mas aparece no rodapé da página. É clara a iniciativa para quem quiser ver e estiver prestando atenção.

Na sua opinião o que permaneceu intocado mesmo com o fim da ditadura?

Hoje pouca coisa. Uma das coisas que persistem é o comportamento das elites. Ainda é muito parecido com o que era em 1964. As elites não evoluíram, não avançaram. Enquanto o Brasil mudou muito, para melhor, um país que inclui muito mais pessoas, e não só por causa dos últimos anos, vem num processo de inclusão muito importante. A realidade que vivemos hoje está a léguas de diferença da realidade de 50 anos atrás. Talvez a única que que persista é uma atitude semelhante das elites, infelizmente.

Então as elites ainda se comportam do mesmo jeito?

Quando você analisa as elites que estavam posicionadas em 1964 elas são claramente golpistas. Elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem, para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo.

Hoje você tem uma elite que tem um pouco de receio. Ela tem um pouco de receio de dizer “para nós acabou a brincadeira, a bola é minha e não brinco mais” e assumir uma caracterização abertamente golpista. Não que ela não flerte. Não que ela não seja capaz de embarcar em um aventura terrível, pela forma como age, pelas considerações que ela faz.

Um exemplo foi quando a presidenta Dilma se elegeu. Ela teve uma capacidade eleitoral bastante grande no Nordeste. Quando você olha as redes sociais falando dos nordestinos, você vai ver a cara dessa elite. Ela é exatamente aquilo. Ela começa a dizer: “é esse tipo de gente que elegeu, e nós somos melhores”. Ela tem condições, desejo e vontade de flertar abertamente [com o autoritarismo].

Ou seja, hoje você tem um processo ou uma proposta de inclusão social, que de uma maneira ou de outra dá o acesso às pessoas que não teriam a determinadas instâncias, desde a casa própria até o ensino universitário.

Essa proposta descontentava, como descontenta hoje. A proposta de inclusão. Se o Brasil vive um momento de crise, se é que existe a crise, se ela não é fabricada pelos meios de comunicação, essa crise se deve fundamentalmente a esse descontentamento. São os mesmos grupos, a mesma raiz, que não aceita que as pessoas que não têm nem acesso às migalhas passem a se sentar na mesa.

Como a senhora analisa os protestos pedindo impeachment, os “panelaços”?

Quem bateu panelas? Foi a grande elite? Eu sou capaz de entender o porquê. Tem o que perder, e é só por isso que está batendo panela. Eu não tenho dúvida que essa gente está em defesa de seus privilégios. Existiu a tentativa de puxar um fio de corrupção que envolveria o PSDB, mas foi engavetado. Então por que se diz que só existe um criminoso, o PT?

O Paulo Francis, há mais de vinte anos já falava de corrupção na Petrobras. Faleceu porque veio um processo judicial que ele não conseguiu arcar. A corrupção é exclusiva desse governo?

Mas o consevadorismo, atualmente, não se resume à elite…

Uma coisa é pensarmos no Brasil como um país jovem, que está vivendo um processo de ascensão das chamadas classes médias, quanto a isso não há dúvida, mas é um erro achar que nesse mesmo processo progressivo também terá o mesmo processo no sentido de qual leitura eles terão da realidade brasileira. Infelizmente, a leitura que se tem, na média, é conservadora.

Isso se deve à formação do Brasil, uma escolarização muito baixa. Teve o acesso das pessoas ao ensino, mas é um ensino transformador? Quando se pega a escola pública, que atende à vasta maioria, essa educação transforma sua mentalidade, prepara para os novos tempos? Se tivesse uma imprensa que fosse muito mais plural, também contribuiria para que tivéssemos esses debates ampliados.

O que você diria para alguém que defende o retorno da ditadura?

Pensa, raciocina e observa o que o regime militar produziu. Um mundo sem luz. A desigualdade se ampliou enormemente nesse período, os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. É isso que você quer para a sociedade brasileira? O remédio para a sociedade brasileira é uma aventura antidemocrática? Para combater a corrupção é necessário acabar com a democracia?

Para pessoas que pensam nisso, eu aconselharia a ver as contas da Transamazonica. Ou as contas nunca fechadas da Ponte Rio-Niterói. Ninguém falou, porque naquele momento não podia falar. Se você levantar, você vai trazer uma quantidade de coisas irregulares que arrepia os cabelos de qualquer um. Hoje, graças ao caminho que a sociedade brasileira trilhou, nós temos liberdade de falar. O autoritarismo corre ao lado da irregularidade, porque ele abafa a irregularidade.

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Racismo e capitalismo, tudo a ver…

Em visita ao Brasil, ator e ativista norte-americano falou ao portal Brasil de Fato sobre racismo, as condições dos trabalhadores nos Estados Unidos e o potencial do cinema para conscientizar o público.

por José Coutinho Júnior, de São Paulo (SP), publicado originalmente no Brasil de Fato em 17/04/2015

Danny Glover em viagem pelo Brasil. Foto: Rafael Stedile

Danny Glover ainda não sabia, mas na tarde daquela quarta-feira (15), estaria exausto. O ator, ativista e produtor norte-americano veio ao Brasil para participar de um congresso da CUT na terça-feira (14). No dia seguinte, acordou cedo, saiu de seu hotel próximo ao aeroporto de Guarulhos e foi, acompanhado de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conhecer a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

Tomou café, conversou com a coordenação da escola e conheceu mais de 60 estudantes do mundo inteiro, todos parte de um curso de teoria política e que não pouparam os flashes das câmeras.

“É incrível existir um local que prepara as pessoas para lutar por um mundo melhor. Isso é o que essa escola representa. Esse lugar é um sopro de ar fresco. É um presente estar aqui hoje. Olhando para vocês, que são o futuro”, disse, sob uma chuva de palmas.

Glover, famoso no mundo todo por sua atuação em filmes como A Cor Púrpura, Mandela e Máquina Mortífera, sempre foi ligado às causas sociais. Quando jovem, fez parte de movimentos que lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos. Filho de trabalhadores que participavam de sindicatos, ele denuncia a falta de direitos e a exploração a que muitos trabalhadores estão submetidos no país.

Hoje, é produtor de cinema, realizando diversos documentários na Palestina, Tailândia e também sobre temas sensíveis aos estadunidenses, como o porte de armas e o aquecimento global.

No final da visita à escola, o ator plantou uma muda de cerejeira no jardim do local. Com dificuldades para colocar e regar a muda na terra, brincou: “I’m too old for this shit [estou muito velho para essa merda]”, bordão de Roger Murtaugh, o icônico policial de Máquina Mortífera.

Mas, por mais que estivesse velho e reclamasse, Murtaugh nunca deixava de fazer o que tinha de fazer para salvar o dia. E assim também é Danny Glover: apesar da exaustão, está ao lado dos trabalhadores, participando de atos, congressos e movimentos sociais pelo mundo.

Abaixo, confira a entrevista de Danny Glover ao Brasil de Fato sobre o racismo nos Estados Unidos, sua trajetória como militante, o que pensa do Brasil e o potencial do cinema para conscientizar as pessoas, concedida pouco tempo tempo antes do ator tirar seu merecido sono:

Brasil de Fato – Você nasceu no período em que os negros eram segregados da sociedade americana. Como era ser negro nessa época?

Danny Glover – Eu fui nutrido por uma cultura, não só daquela época, mas do meu passado. Minha bisavó nasceu em 1853. A emancipação dos escravos ocorreu quando ela tinha 10 anos. E a conheci quando era criança, ela tinha mais de 90 anos. Há uma conexão entre a minha vida, a minha raça e o pensamento político da minha família. Minha mãe foi a primeira pessoa da família e da comunidade a se formar numa universidade, em 1942. Meus avôs conseguiram, após trabalhar muito tempo como camponeses, comprar uma propriedade rural de 52 hectares. Minha mãe e seus irmãos foram à escola e não tiveram que colher algodão na época da colheita. Isso foi um grande sacrifício para a família, pois eles precisavam de todas as mãos possíveis para colher e pagar as contas. Minha mãe estava internamente grata pelos pais por ir à escola. A escola se tornou algo cravado na consciência da minha família como um local necessário para se seguir em frente na vida. Meus avós, que tinham a educação mais básica, viram que era esse o futuro e fizeram o sacrifício para que seus filhos estudassem. É esse tipo de coisa que moldou minha vida.

Nasci em 1946, oito anos depois da decisão da suprema corte americana que disse que “igual não é igual”. Foi a fundação dos movimentos que lutaram pelos direitos civis e antissegregação. A ideia de criar locais e acomodações diferentes para negros e brancos virou lei. Essa segregação, que afetou meus pais imediatamente, se tornou o catalizador para que eu iniciasse o processo de entender a relação que tenho com o meu país como um cidadão. Meus pais eram carteiros, ligados ao sindicato, e, frequentemente, conversavam sobre o trabalho militante deles no sindicato e como isso se conectava aos movimentos dos direitos civis. Escutava isso, além de ler muito.

Sou de São Francisco, California, uma cidade muito radical, progressista. Tinha o sindicato mais progressista do país, formado por trabalhadores de armazéns e portos. Era um dos grupos mais radicais: foi o primeiro a boicotar bens sul-africanos, dizendo que não descarregariam produtos do país do Apartheid. As políticas estudantis, nas duas universidades da Califórnia, a cultura que emergiu com os hippies, os panteras negras, foram parte em especial do meu modo de entender o que estava acontecendo no mundo.

Quando estava com 14, 15 anos, comecei a participar do movimento pelos direitos civis, inspirado nesse atleta incrível chamado Mohhamad Ali, quando disse que “I Ain’t Got No Quarrel With The vietcong… No vietcong ever called me nigger [não tenho desavenças com os vietcongs, nenhum vietcong jamais me chamou de preto]”. Foi uma frase simples, mas que teve implicações enormes para mim e para a sociedade. Quando tinha 20 anos, tudo isso estava em mim. Todos esses elementos progressistas se tornaram parte da minha consciência e abracei tudo isso.

Em 1987, vou para a San Francisco State, uma universidade que passa por outro nível de radicalização, com grupos de estudantes negros. Tudo isso me situa e molda a forma como lido com a cultura, o que leio, o que escuto.

Como a arte, principalmente o cinema, pode levar questões sociais às pessoas e ser transformadora?

Sempre assisti filmes de vários países e cineastas: brasileiros, argentinos, bolivianos, europeus, africanos, japoneses… os trabalhos de Fellini, Truffaut, Bergman, todos esses filmes e diretores me influenciaram. Quando era jovem, trabalhava numa área diferente do teatro. Geralmente, as peças de teatro tem uma estória, uma estrutura organizada, que se manifesta ao longo da obra, mas me envolvi no que foi considerado “arte negra”. Eram peças de agitação e propaganda. Curtas, que tinham como objetivo passar uma mensagem ideológica. Sobre como se tornar militante, conseguir emprego. Eram peças muito políticas.

Então, eu via o drama como algo político, uma forma de transmitir essas ideias de uma forma diferente. Esse foi o começo da minha relação com teatro e arte. E como fui formado por isso, o que eu queria fazer com a arte, na maioria das vezes, difere da agenda que a indústria me apresentou. Fiz muitos filmes populares e comerciais, mas sempre tive essa inclinação de querer fazer filmes menores, que tenham um significado.

Só nos últimos dez anos consegui fazer o tipo de arte com caráter político similar ao que tinha me formado, via documentários ou narrativas. Como produtor, já fiz três filmes palestinos, dois tailandeses, um documentário sobre o movimento de direitos civis, um sobre aquecimento global e outro sobre a liberação de armas. São essas experiências que me moldaram como artista, ator e cidadão, e me fizeram pensar em como manifestar essas ideias no meu trabalho.

É possível fazer filmes com um caráter crítico e social em Hollywood?

É difícil dizer. Tento fazer um filme sobre a revolução haitiana por anos. É obviamente uma história sobre negros, e tem sido difícil. Mas por propósito de custos, o filme tem de ser fora do sistema. Se fizesse dentro, o custo seria 30% ou 40% maior. Sob esse ponto de vista, é possível? Mas quando se pensa em produções culturais, a forma como o cinema pode moldar pensamentos em um curto período de tempo é algo incrivelmente bom para nós, e isso precisa ser explorado.

Como você vê o racismo hoje nos EUA, principalmente após o que ocorreu em Ferguson?

Ferguson e outros lugares semelhantes são criados pela ausência de qualquer estrutura, além da brutalização da força policial. A questão racial é algo muito enraizado na minha vida, no que faço. O que penso é que muitas vezes se ignora que a raça está ligada, tangencialmente, a muitos outros temas, como pobreza, saúde, procura de empregos. Prestamos atenção no racismo explícito, mas acabamos ignorando esse racismo mais sutil. O problema é que a raça é obscurecida por outros problemas programados na nossa cabeça pelo consumismo. Para manter nosso padrão ou lugar nas nossas vidas, precisamos manter certas necessidades físicas e psicológicas.

Assim, o racismo tem uma relação funcional com o capitalismo, na exploração dos negros como mão-de-obra barata. E para romper com isso, precisamos pensar em outros sistemas e formas. Que potencial um outro sistema, como o socialismo, poderia ter nessa questão? Como falar de raça sobre outro ponto de vista e criar uma estrutura que melhore o planeta e a humanidade? Quais ferramentas e políticas que precisamos para isso?

Você está engajado na luta sindical dos EUA. Qual a situação dos trabalhadores no país, em especial os negros?

Estatisticamente, há 40 anos, a renda dos trabalhadores vem diminuindo significativamente. Não só isso, os trabalhadores americanos trabalham mais horas, o número de mulheres que compõem a força de trabalho mais que dobrou nesse tempo, não porque há novas oportunidades para mulheres, mas porque o dinheiro que elas ganham é crucial para manter a casa.

Os trabalhadores americanos brancos ganham mais que os negros, e os números para as mulheres são menores ainda. Há uma situação onde negros têm as maiores taxas de desemprego, menores condições de economizar dinheiro e acumular bens no mesmo trabalho.

Você já visitou o Brasil várias vezes. Como você enxerga o racismo no país? Um garoto negro de 10 anos foi assassinado recentemente em uma favela do rio pela Polícia Militar… 

O racismo e a militarização da polícia nas comunidades negras é algo que ocorre em várias partes do mundo e temos que nos preocupar com isso. Como o Estado, junto com a sociedade, se aproximam desse problema? E qual o papel da polícia na sociedade? Por que não houve uma comoção no espaço público causada pela morte desse menino? A morte desse garoto é emblemática. As pessoas da favela estão excluídas economicamente da sociedade, mas também psicologicamente.

Esse tipo de violência acontece com tanta regularidade que o Estado deve ser responsabilizado. Não me interessa se o Estado é de direita ou esquerda, ele tem de tomar medidas, desenvolver políticas públicas para melhorar a vida nas comunidades e das crianças negras e pobres, valorizando a vida delas.

Para terminar, você pensa um dia em fazer um filme sobre o Brasil?

Claro! Adoraria fazer um documentário sobre o Brasil. Não tenho planos ainda, mas, provavelmente, é algo que vou fazer.

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Bolsa Família não estimula os pobres a terem mais filhos, diz pesquisa do IBGE

Sabe aquele argumento de que o programa Bolsa Família estimula os mais pobres a terem muitos filhos para que possam ganhar mais benefícios do governo? Então, números do IBGE comprovam definitivamente aquilo que já sabíamos: trata-se de puro preconceito e má fé de quem os utiliza.

Na última sexta-feira (27), o Portal Metrópole publicou notícia trazendo os números divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, tendo como base as edições de 2003 a 2013 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizado pela IBGE.

O Hum Historiador traz abaixo a íntegra da notícia tal como publicada no site do Portal Metrópole.

IBGE DERRUBA TESE PRECONCEITUOSA DE QUE “POBRES FAZEM FILHOS PARA CONSEGUIR BOLSA FAMÍLIA”
publicado originalmente no Portal Metrópole em 27.mar.2015

Levantamento realizado pelo IBGE revela que foi exatamente junto aos 20% mais pobres do país que se registrou a maior redução no número médio de nascimentos. Veja os números.

Nos últimos dez anos, o número de filhos por família no Brasil caiu 10,7%. Entre os 20% mais pobres, a queda registrada no mesmo período foi 15,7%. A maior redução foi identificada entre os 20% mais pobres que vivem na Região Nordeste: 26,4%.

Os números foram divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e têm como base as edições de 2003 a 2013 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O levantamento mostra que, em 2003, a média de filhos por família no Brasil era 1,78. Em 2013, o número passou para 1,59. Entre os 20% mais pobres, as médias registradas foram 2,55 e 2,15, respectivamente. Entre os 20% mais pobres do Nordeste, os números passaram de 2,73 para 2,01.

Para a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, os dados derrubam a tese de que a política proposta pelo Programa Bolsa Família estimula as famílias mais pobres do país a aumentar o número de filhos para receber mais benefícios.

“Mesmo a redução no número de filhos por família sendo um fenômeno bastante consolidado no Brasil, as pessoas continuam falando que o número de filhos dos pobres é muito grande. De onde vem essa informação? Não vem de lugar nenhum porque não é informação, é puro preconceito”, disse.

Entre as teses utilizadas pela pasta para explicar a queda estão os pré-requisitos do programa. “O Bolsa Família tem garantido que essas mulheres frequentem as unidades básicas de Saúde. Elas têm que ir ao médico fazer o pré-natal e as crianças têm que ir ao médico até os 6 anos pelo menos uma vez por semestre. A frequência de atendimento leva à melhoria do acesso à informação sobre controle de natalidade e métodos contraceptivos”.

A demógrafa da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE Suzana Cavenaghi acredita que o melhor indicador para se trabalhar a questão da fecundidade no país deve ser o número de filhos por mulher e não por família, já que, nesse último caso, são identificados apenas os filhos que ainda vivem no mesmo domicílio que os pais e não os que já saíram de casa ou os que vivem em outros lares.

Segundo ela, estudos com base no Censo de 2000 a 2010 e que levam em consideração o número de filhos por mulher confirmam o cenário de queda entre a população mais pobre. A hipótese mais provável, segundo ela, é que o acesso a métodos contraceptivos tenha aumentado nos últimos anos, além da alta do salário mínimo e das melhorias nas condições de vida.

“Sabemos de casos de mulheres que, com o dinheiro que recebem do Bolsa Família, compram o anticoncepcional na farmácia, porque no posto elas só recebem uma única cartela”, disse. “É importante que esse tema seja estudado porque, apesar de a fecundidade ter diminuído entre os mais pobres, há o problema de acesso e distribuição de métodos contraceptivos nos municípios. É um problema de política pública que ainda precisa ser resolvido no Brasil”, concluiu.

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Golpismo e o aumento da renda média do trabalhador brasileiro

Se, por um lado, o antipetismo e a forma como o PT vem reagindo a ele é um dos fatores que ajuda a compreender melhor a atual crise política, como bem apontou o professor Lincoln Secco em sua entrevista a revista Carta Capital, por outro, o aumento do salário mínimo e da renda média do trabalhador também são indicadores que, historicamente, causam reações em setores da sociedade no intuito de derrubar os governos que o promoveram. Ao menos, é o que aponta o artigo do economista e pesquisador da Fundação Economia e Estatística (FEE), Róber Iturriet Ávila.

Em texto recentemente publicado na revista Carta Maior, Ávila compara os atuais valores do salário mínimo e da renda média do trabalhador com outros momentos de instabilidade política (governos de Getúlio Vargas e João Goulart), sugerindo haver uma relação entre as quedas desses governos e o aumento da renda média do trabalhador.

O Hum Historiador repercute abaixo a íntegra do texto de Róber Ávila tal como publicado no portal da revista Carta Maior.

ÓDIO AO PT?
por Róber Iturriet Ávila | publicado em Carta Maior em 11.mar.2015

Três intelectuais de relevo trataram recentemente acerca do ódio ao PT: Leonardo Boff, Luis Fernando Veríssimo e Luiz Carlos Bresser Pereira. Suas palavras têm a lucidez de quem enxerga além das aparências e do senso comum. Embora o momento corrente não seja corriqueiro, um olhar histórico traz ensinamentos.

Na Revolução Francesa, por exemplo, na aparência havia uma ruptura lastreada em novos valores: Liberté, Egalité, Fraternité. O pano de fundo real era, entretanto, a emergência de um novo grupo. Em meio a um período econômico conturbado, a burguesia degolou o poder político e o status social da aristocracia.

No Brasil, a constatação de que a escravidão foi excessivamente longa já sinalizava que o arranjo da sociedade é deveras estamental. Políticas progressistas sempre encontraram fortes barreiras conservadoras.

Os conflitos de 1954, por exemplo, foram intensos. Na superfície, o governo estava cercado diante dos “escândalos” de corrupção. A constante oposição na imprensa desgastava Vargas. Em 1954, o então presidente aumentou o salário mínimo em 100%. Quem não é ingênuo sabe que Vargas estava contrariando interesses empresariais, tanto com a concessão de direitos trabalhistas e civis, quanto com ampliações salariais. O suicídio foi a saída honrosa ao cerco montado.

João Goulart foi presidente em um período de conflitos. Seu governo concedia elevados aumentos salariais, prometia reforma urbana, voto de analfabetos, elegibilidade de todos brasileiros, reforma agrária, concessão de terras a trabalhadores rurais, justiça social, emancipação dos brasileiros. Caiu! O receio do “golpe comunista” foi o discurso raso que justificava.

Vargas e Goulart saíram do poder ao tempo em que concediam direitos sociais, sobretudo aos menos favorecidos. Não é novidade que durante os governos do PT, os trabalhadores ampliaram sua renda, o salário mínimo cresceu de maneira contínua e houve uma série de programas sociais. Não surpreende que, mais uma vez, setores da sociedade brasileira se ergam contra tais políticas, ainda que, escamoteadamente, o bordão seja “contra a corrupção”.

Evidentemente, existem elementos factuais dos governos Lula e Dilma que causaram desconforto e indignação a todos os cidadãos. Contudo, é preciso muita inocência para imaginar que as manifestações contra o governo são incentivadas pelo descontentamento com a corrupção, pela elevação do preço do combustível ou da energia. Quem tem conhecimento histórico e compreensão profunda da sociedade não ignora a ojeriza existente a um programa que garante R$ 35,00 para os pobres. O ódio não é ao PT.

Conhecendo um pouco mais dos dados do Brasil se observa que houve dois momentos de crescimento relevante do nível dos salários: no período Getúlio Vargas – João Goulart e nos governos do Partido dos Trabalhadores. Os gráficos abaixo não apenas demonstram esses movimentos como indicam que presentemente o excedente operacional bruto caiu em relação ao produto total em detrimento do incremento nos salários. Interesses poderosos estão sendo feridos. Não apenas segmentos estão perdendo, em termos relativos, como também regiões. Será mesmo preciso pintar de azul em um mapa qual região perde mais com a solidariedade distributiva?
C:\Users\rober\Desktop\renda media do trabalho.pngC:\Users\rober\Desktop\sal minimo.png
C:\Users\rober\Desktop\distribuição funcional.png


Róber Iturriet Ávila é doutor em economia, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS).

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Desigualdade social no Brasil: 50% dos brasileiros mais pobres detém 2% da riqueza.

OS DADOS DE RIQUEZA NO BRASIL E A ESTRUTURA FUNDIÁRIA
por Róber Iturriet Avila – Brasil Debate | publicado na Carta Maior em 08.jan.2014

É possível estimar que, em 2012, os 50% dos brasileiros mais pobres detinham 2% da riqueza, 36,99% ficavam com 10,60% e 13,01% com 87,40%.

Róber Iturriet Avila – Brasil Debate
Jason Mrachina - Flickr

Nesse mesmo espaço [Carta Maior], no mês passado, informações acerca da riqueza pessoal do Brasil foram expostas, a partir das declarações de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF). Os números de patrimônio eram desconhecidos até então, havia apenas uma estimativa no Atlas da Exclusão Social no Brasil, um estudo realizado entre 2003 e 2005. Essa pesquisa apontou que 5 mil famílias se apropriam de 40% do fluxo de renda e detêm 42% do patrimônio brasileiro.

O levantamento foi efetuado ancorado no censo demográfico e nas pesquisas de orçamentos familiares. Houve ainda um estudo com a distribuição patrimonial com dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Em que pesem as limitações na interpretação do que o IRPF retrata, como a defasagem no valor de riqueza declarada, a contabilização de patrimônio em nome das empresas e a não separação dos bens de cônjuges, esses números são os mais precisos existentes no Brasil.

Em 2012, 25,6 milhões de pessoas declararam imposto de renda no País. Esse contingente representava 13,01% da população total. Como as posses dos não declarantes persistem indisponíveis, convém detalhar a metodologia da estimativa realizada.

Em termos internacionais, os 50% mais pobres obtêm 4% da riqueza em países menos desiguais, como a França, por exemplo. Já os 10% dos franceses mais ricos possuíam 62% da riqueza em 2011, de acordo com Thomas Piketty.  Nos Estados Unidos, os 50% mais pobres detêm 2% da riqueza enquanto os 10% mais ricos possuem 72%.

Frente ao histórico da formação socioeconômica brasileira, podemos partir da referência internacional de que os 50% mais pobres possuem 2% do patrimônio brasileiro.

Sobretudo ao se constatar que está nessa monta quem recebeu até R$ 1.095,00 em 2013, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio. Daqueles que figuram entre os 13,01% da população que declaram imposto de renda, 4,88% somam um patrimônio de 0,004% do total notificado.

Em assim sendo, todo o patrimônio declarado está concentrado com 8,13% da população. Era necessário chegar ao patrimônio de quem está acima dos 50% mais pobres e abaixo dos 13,01% mais ricos, sabendo-se que esses tiveram um rendimento mensal entre R$ 1.095,00 e R$ 1.499,16.

Foi deduzido, com o risco de superestimar, que esses não declarantes possuem um patrimônio equivalente à média das quatro primeiras faixas patrimoniais dos declarantes (até R$ 30.000,00). Diante dessas considerações, o quadro de 2012 é seguinte:

– os 50,00% mais pobres detêm 2,00% da riqueza

– 36,99% dos brasileiros detêm 10,60% da riqueza

– 13,01% possuem 87,40% da riqueza

Para se chegar às comparações internacionais dos 10%, 1% e 0,1% mais ricos, é preciso efetuar adaptações, já que os informes da Receita Federal do Brasil estão agregados. Com a base existente, é possível apontar a participação dos 8,13%, 0,9% e 0,21% mais ricos.

– 8,13% das pessoas possuem 87,40% da riqueza

– 0,9% detêm 59,90% do total

– 0,21% detêm 40,81% da riqueza dos brasileiros

Em 2012, 0,21% da população representou 406.064 declarantes. Em 2006, o corte mais elevado ficou a partir R$ 1,5 milhão em bens, mas abarcou 156.084 indivíduos (0,08% da população daquele ano) que contemplavam 36,12% do total de patrimônio notificado à Receita.

Entretanto, nesse mesmo ano, o patrimônio médio desses indivíduos foi de R$ 5,4 milhões, sinalizando que a concentração está em um grupo menor de pessoas.

Uma das referências quantitativas importantes na literatura é a participação dos 0,01% mais ricos. Esse corte analítico não é possível de ser realizado, embora seu conhecimento desnudasse o patrimônio dos 19.500 indivíduos mais ricos do País.

Os que estão no topo da pirâmide social obtêm seus rendimentos, sobretudo, do capital. Sabidamente, a estrutura tributária brasileira está centrada no consumo. Em 2012, 49,73% da arrecadação adveio dos bens e serviços, 17,84% da renda, 3,85% da propriedade, 26,53% da folha de salários e 2,04% de outros meios.

Ao se efetuar comparações internacionais de impostos sobre herança, por exemplo, é possível compreender a exacerbada concentração da riqueza brasileira.

No Reino Unido, a alíquota é de 40,00%; na França 32,50%; nos Estados Unidos 29,00%; na Alemanha 28,50%; na Suíça 25,00%; no Japão 24,00%, no Chile 13,00%; já no Brasil o tributo é de 3,86%.

Há aqui também uma discussão filosófica, pois mesmo com uma concepção de que a riqueza guarda relação com o mérito individual, não há mérito em ser filho de pessoas abastadas.

Tendo em conta que os rendimentos do capital remuneram os que estão no topo, é interessante observar como é a tributação a esse grupo.

Averiguando-se as alíquotas máximas de dividendos de alguns países, é verificado que na Dinamarca é de 42,00%, na França de 38,50%, no Canadá de 31,70%, na Alemanha é de 26,40%, na Bélgica é de 25,0%, nos Estados Unidos de 21,20% e na Turquia 17,50%. Já no Brasil, os dividendos são isentos de imposto de renda, a alíquota é 0,00%.

Adicionalmente, há a possibilidade de as empresas deduzirem das receitas tributáveis os “juros sobre o capital próprio”. O juro do capital próprio é tributável ao acionista, mas com uma alíquota menor do que a máxima que os trabalhadores pagam.

Em linha semelhante, os rendimentos de aplicações financeiras em renda fixa e variável possuem tributação menor do que a alíquota máxima do rendimento do trabalho.

O conhecimento dos dados de imposto de renda que a Receita Federal do Brasil disponibilizou não apenas favorecem o conhecimento de nosso País, como também contribuem para subsidiar o debate da justiça fiscal.
grafico riqueza
Referências
BRASIL. Receita Federal do Brasil. Disponível AQUI. Acesso em 10 dez. 2014
CASTRO, Fábio Avila.  Imposto de renda da pessoa física: comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014.115f. Dissertação (Mestrado) %u215 Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

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The Guardian: patrimônio dos 85 mais ricos é igual ao da metade da população mundial

Em janeiro deste ano (20), a Folha republicava uma notícia de Graeme Wearden, do The Guardian. Trata-se da divulgação de um relatório da Oxfam dando conta que as 85 pessoas mais ricas do mundo detém um patrimônio combinado de um trilhão de libras, montante semelhante ao patrimônio combinado dos 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do planeta

Pois é amigos, de fato o Capitalismo realmente funciona (ao menos para 85 das mais de 6 bilhões de pessoas que habitam o planeta).

Abaixo a repercussão na íntegra da notícia publicada na Folha de S. Paulo.

PATRIMÔNIO DOS 85 MAIS RICOS É IGUAL AO DA METADE DA POPULAÇÃO MUNDIAL

As pessoas mais ricas do mundo não são conhecidas por andarem de ônibus, mas se decidissem variar um pouco suas rotinas, as 85 pessoas mais ricas do planeta – que juntas controlam riqueza equivalente à de metade da população mundial – caberiam, com algum aperto, em um ônibus de dois andares.

O acúmulo de porção tão grande da riqueza do planeta nas mãos de um punhado de integrantes da dita “elite mundial” foi exposta segunda-feira (20) em um novo relatório da Oxfam. A organização de caridade informou que as 85 pessoas mais ricas do mundo têm patrimônio combinado de um trilhão de libras, montante semelhante ao patrimônio combinado dos 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do planeta.

O patrimônio do 1% mais rico da população mundial atinge os US$ 110 trilhões, ou 65 vezes mais que o patrimônio da metade mais pobre da população do planeta, acrescentou a organização, que teme que essa concentração de recursos econômicos esteja ameaçando a estabilidade política e agravando as tensões sociais.

DESIGUALDADE

É um lembrete perturbador sobre a profunda desigualdade de riqueza que existe no planeta, no momento em que líderes políticos e empresariais se encaminham aos picos nevados de Davos para o Fórum Econômico Mundial, esta semana.

Poucos deles, se algum, chegarão em um veículo comum como um ônibus, e jatinhos e helicópteros particulares serão colocados em serviço para atender a muitas das pessoas mais poderosas do planeta, que se reunirão para discutir o estado da economia mundial em quatro dias frenéticos de reuniões, seminários e festas no exclusivo centro suíço de esqui.

Winnie Byanyima, diretora executiva da Oxfam, participará das reuniões em Davos e disse que “é inaceitável que, no século 21, metade da população do planeta – estou falando de 3,5 bilhões de pessoas – não tenha mais propriedades que uma minúscula elite que caberia perfeitamente em um ônibus de dois andares”.

A Oxfam também argumenta que isso não acontece por acidente, e afirma que a crescente desigualdade foi propelida por uma “jogada de poder” das elites endinheiras, que cooptaram o processo político a fim de manipular em seu favor as regras do sistema econômico.

No relatório, intitulado “Working for the Few” [trabalhando para poucos], a Oxfam adverte que a luta contra a pobreza não poderá ser vencida até que a desigualdade de riqueza seja enfrentada.

“Ampliar a desigualdade está criando um círculo vicioso em resultado do qual a riqueza e o poder se concentram cada vez mais nas mãos de alguns poucos, deixando ao resto de nós a luta pelas migalhas que caem da mesa dos poderosos”, disse Byanyima.

A Oxfam apelou aos participantes do Fórum Econômico Mundial deste ano que assumam o compromisso pessoal de enfrentar o problema, evitando manobras que reduzam seus impostos e o uso de sua riqueza para buscar favores políticos.

Além de ser moralmente dúbia, a desigualdade econômica também pode exacerbar outros problemas sociais, como a desigualdade entre os sexos, alertou a Oxfam. Davos mesmo enfrenta dificuldades quanto a isso, já que o número de mulheres participantes caiu de 17% do total em 2013 a 15% este ano.

INFLUÊNCIA

As pesquisas para o relatório da Oxfam constataram que as pessoas em países de todo o mundo – incluindo dois terços dos entrevistados no Reino Unido – acreditavam que os ricos têm influência demais sobre a direção que seus países estão tomando.

Byanyima explica: “Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, igualmente, estamos cada vez mais vivendo em um mundo no qual as alíquotas mais baixas de impostos, os melhores serviços de saúde, a educação e as oportunidades de influenciar estão sendo dadas não só aos ricos mas também aos seus filhos”.

“Sem um esforço coordenado para enfrentar a desigualdade, a transferência de privilégios e de desvantagens continuará gerações afora. Logo estaremos vivendo em um mundo no qual a igualdade de oportunidade será apenas um sonho. Em países demais o crescimento econômico já representa pouco mais que um jogo no qual os mais ricos levam todos os ganhos.”

O relatório da Oxfam constatou que, ao longo das últimas décadas, os ricos exercitaram com sucesso a sua influência política a fim de influenciar as normas em seu favor quanto a questões que variam da desregulamentação financeira, paraísos tributários, táticas de negócios prejudiciais à competição, alíquotas menores de impostos para as pessoas de alta renda e cortes de serviços sociais para a maioria.

OPORTUNIDADES

Do final dos anos 70 para cá, as alíquotas de impostos das pessoas mais ricas caíram em 29 dos 30 países para os quais há dados disponíveis, o relatório afirma.

Essa “captura de oportunidades” pelos ricos à custa dos pobres e da classe média resultou em uma situação na qual 70% da população mundial vive em países nos quais a desigualdade avançou, dos anos 80 para cá, e 1% das famílias controlam 46% da riqueza mundial – quase 70 trilhões de libras.

Pesquisas de opinião pública na Espanha. Brasil, Índia, África do Sul, Estados Unidos, Reino Unido e Holanda constataram que a maioria dos cidadãos em cada um desses países acredita que as pessoas ricas exercem influência demais. A preocupação é mais forte na Espanha, seguida pelo Brasil e Índia; a Holanda registra a menor preocupação quanto a isso.

No Reino Unido, 67% dos entrevistados concordam em que “os ricos têm influência demais sobre a orientação do país” – e 37% afirmam concordar “fortemente” com a afirmação -, ante apenas 10% de pessoas que discordam, 2% das quais fortemente.

O relatório “Riscos Mundiais”, do Fórum Econômico Mundial, recentemente identificou a disparidade de renda crescente como uma das maiores ameaças à comunidade mundial.

A Oxfam está apelando aos participantes do fórum de Davos que assumam o compromisso de apoiar a tributação progressiva e de não usar recursos que permitam que reduzam seus impostos; que se recusem a usar sua riqueza de forma a obter favores políticos que solapem a vontade democrática de seus concidadãos; que tornem públicos seus investimentos em companhias e fundos dos quais sejam os principais proprietários e beneficiários; que desafiem os governos a usar a arrecadação tributária para fornecer serviços universais de saúde, educação e proteção social; que exijam salários justos nas empresas que possuem ou controlam; e que desafiem os demais membros da elite econômica a acompanhá-los nessas promessas.

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