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Sobre a naturalização da desigualdade social

Um muro separa a comunidade de Paraisópolis dos condomínios de luxo do bairro do Morumbi em São Paulo. Foto: Tuca Vieira / Reprodução

Dentre os discursos ideológicos encampados por liberais de todas as matizes um dos mais perversos é aquele que busca naturalizar a desigualdade social e, por conseguinte, a ocorrência da fome e da miséria neste mundo em que vivemos. O caso mais recente (e estarrecedor) deste discurso apareceu nas falas de uma DJ e comentarista da JP, no canal do Monark. A jovem, em questão, chama-se Pietra Bertolazzi, que foi acompanhada em sua perversão por um colega, comentarista da mesma rádio, que parece se chamar Marco Antônio, de codinome Superman. Abaixo um video contendo cortes do programa comentado pelo pessoal do Meteoro (Ana e Álvaro).

Ora, os cortes deixam claro que para Pietra e Superman a desigualdade social é algo natural, o que é prontamente aceito por Monark, que repete a sentença como se fosse um mantra ao longo de todo o vídeo. Para os três jovens, portanto, é possível encontrar, mesmo na natureza, a “desigualdade social”, o que explicaria a “diversidade de hierarquias” no mundo animal e vegetal, como pontuou Monark.

De cara, ao ovirmos os participantes do podcast, percebe-se claramente uma falha na formação de todas essas pessoas, que mal dominam conteúdos ministrados no Ensino Fundamental II e Médio da rede pública de ensino. Como professor, posso afirmar tranquilamente isso, pois já trabalhei com os currículos do 6 ao 9 ano do EF-II e dos três anos do EM.

Vejam bem, não é preciso ser nenhum gênio para saber que o termo “social” em “desigualde social” refere-se às sociedades humanas. Desde os tempos de Aristóteles, que já ensinava que o Homem é um animal social, não cabe espaço para dúvidas de que as sociedades são construções humanas, que as organizam segundo os critérios que melhor lhe convém nas distintas épocas. As sociedades, portanto, não são naturais, mas sim criaturas da humanidade. Se há desigualdade em uma sociedade, isto se dá em razão do modo como elas organizam os seus modos de produção e distribuição. A depender de como estes são organizados, haverá mais ou menos acúmulo nas mãos de algumas poucas pessoas em detrimento da grande maioria, como no caso do modo de produção capitalista. Enfim, logo se vê que bastaria essa base de conhecimento para não embarcar em toda a baboseira liberal que Bertolazzi e o Superman ficaram falando minutos a fio no programa do monarca não esclarecido.

Do lado contrário deste discurso ideológico, diversos pesquisadores no campo das Ciências Sociais, da Geografia, da Filosofia e da História vêm insistindo, desde o século XIX, em explicar a fome e a miséria como um produto do modo como nós organizamos o trabalho e, por fim, a sociedade. No documentário “Encontro com Milton Santos (Ou o mundo global do lado de cá)”, o professor afirma claramente, como se fosse uma questão de matemática, que a existência de famélicos e miseráveis neste planeta é, puramente, uma questão de escolha, uma vez que produzimos alimentos suficientes para sustentar toda a população mundial. A fome e a miséria, portanto, não vêm do céu, como castigo, e nem surge do nada. Elas são criações de uma humanidade perversa que busca, acima de tudo, o acúmulo individual de riquezas em um planeta com recursos finitos. Abaixo, trecho do documentário de Silvio Tendler, Encontro com Milton Santos (ou o mundo global visto do lado de cá), no qual ele trata do problema da fome mundial como uma questão de escolha.

Além de Milton Santos, gostaria de concluir esta postagem-desabafo relembrando o pensamento vivo de Ailton Krenak, no qual, com muita alegria, ele afirma a desigualdade social como o produto mais característico desta sociedade em que vivemos ao lembrar do exemplo vivo das muitas sociedades ao redor do planeta que se organizaram, e ainda se organizam, de modo em que simplesmente não há espaço para a fome e para a miséria entre os homens e mulheres. Bertolazzi, certamente, carece de conviver e aprender com os povos originários do Brasil e de outros lugares do mundo para, quem sabe assim, aprender uma lição de humanidade. Por enquanto ela tem dado razão ao epíteto que lhe deram de BertoNazi.

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O Jair que há em nós

por Ivann Lago, publicado originalmente em seu blog em 28 fev. 2020

BOLSONARO E O BOLSONARISMO COMO EXPRESSÃO DO BRASILEIRO MÉDIO

O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. (…)

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo?

Ivann Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política. É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo (RS). Atua nas áreas de Teoria Política, Instituições Políticas e Regimes de Governo, Cultura e Comportamento Político, Partidos e Eleições. É professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Políticas Públicas da UFFS. Possui experiência em Marketing Político e Eleitoral, Planejamento Governamental, Políticas Públicas e Desenvolvimento, tendo atuado com consultorias a diversos órgãos governamentais, partidos políticos e candidatos.

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Joe Biden = Donald Trump? E a política imigratória?

Após críticas a Trump, imagens registradas no governo Biden geraram preocupação sobre condições nas instalações de detenção na fronteira EUA-México. Imagem: Reuters publicadas no portal da BBC.

Algumas páginas na Internet, como a “Pensar a História”, por exemplo, tem feito postagens críticas a fotos divulgadas no mês passado sobre os Centros de Detenção de Menores Imigrantes nos EUA, afirmando, de forma bastante superficial, que durante o governo Biden as condições desses centro são iguais ou até piores do que durante o governo Trump. A crítica feita pela página (e seus replicadores) é aquela de que tanto faz para a “esquerda real” aquele que está a frente do governo dos EUA, pois, no fim, as mudanças positivas, que podem até existir, estariam restritas à população estadunidense, enquanto o resto do mundo experimentaria poucas mudanças ou, em outras palavras, apenas as maldades de sempre, mas divulgadas com gênero neutro, como alguns gostam de dizer.

Tenho visto por aqui alguns colegas historiadores, de forma bastante apressada, compartilhar essa foto e reproduzir a crítica que vem junto com ela sem fazer aquilo que é uma das primeiras tarefas do historiador, isto é, analisar a foto e as informações que seguem junto com ela dentro de seu contexto. Reproduzir uma foto sem contextualiza-la, apenas para fazer uma crítica vazia, não deveria ser algo com o qual historiadores compactuem, ao contrário, deve ser sempre denunciado e combatido. Entender o problema em sua raiz deve ser mais do que “uma palavra de ordem”, mas uma obrigação, especialmente para o historiador.

Pois bem, neste caso não havia necessidade de ir muito longe, pois o plano de governo de Joe Biden para a questão específica da imigração foi bem descrito em diversos periódicos como BBC, DW, El País, etc. Segue o link para matéria na BBC (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55763326). Ora, bastaria ler poucas matérias para compreender que um dos problemas enfrentados pela gestão Joe Biden na realização de sua política imigratória é que logo de princípio, ao anunciá-lo no primeiro dia e começar a colocá-la em prática, as mudanças propostas acabaram por atrair milhões de novos imigrantes para o país, na esperança de se verem beneficiados pela nova política, colocando a execução da política de Joe Biden em xeque, pois acaba penalizando os imigrantes como bem reportou o português Jornal de Notícias (https://www.jn.pt/…/ambiguidade-de-joe-biden-penaliza…).

Sabe-se, por outro lado, que aquilo que foi prometido no campo da política leva muito tempo para ter seus efeitos revertidos na vida real, de modo que muitas vezes, resultado imediato de um plano pode ser o oposto daquilo que se esperava. De fato, o que ocorreu no caso da imigração nos EUA nesses primeiros meses do governo Biden foi um aumento expressivo nas prisões de imigrantes ilegais e, consequentemente, uma nova crise nos centros de detenção de imigrantes. As fotos que acabaram por ser divulgadas na página do Pensar a História foram, justamente, feitas nesse contexto. Isto é, trata-se de um efeito imediato da nova política de Biden que visa, justamente, dar melhores condições aos imigrantes que chegam aos EUA.

Desnecessário ser um gênio para compreender que para os conservadores e apoiadores do partido republicano, por exemplo, a exploração dessas fotos com a crítica de que a política de Joe Biden é ainda pior para os imigrantes do que a tocada por quatro anos durante a gestão de Donald Trump é um prato cheio. Aliás, essas críticas são ponto estratégico na retórica conservadora, pois visam disseminar o medo generalizado e a xenofobia nos estadunidenses, pois afirmam que a nova política de Biden irá resultar em levas de milhões e milhões de imigrantes indesejados aos EUA, pobreza, violência e perda de empregos.

Não se trata aqui, portanto, de “babar ovo” para Biden e os EUA, mas sim de entender as diferenças das gestões de democratas e republicanos, bem como de suas consequências não só para os EUA, mas para todo o planeta. Tais diferenças, vale dizer, são imensas para serem relativizadas como alguns grupos e pessoas têm feito nos últimos anos. Essa estratégia de equiparar a gestão de democratas e republicanos atende a uma agenda ultraconservadora e reacionária que visa, antes de tudo, manter os republicanos no poder. A ascensão de um democrata ao cargo mais alto do executivo nos EUA representa, sim, uma lufada de ar fresco para o mundo todo, ainda que sua gestão tenha muitos problemas e incompatibilidades com uma agenda mais orientada à justiça social.

Aliás, vale dizer que no campo do que se convencionou a chamar de esquerda, quer no Brasil, quer em outro lugar do planeta, não se nega que o governo dos democratas, em geral, ou de Joe Biden, em específico, tenha uma série dessas incompatibilidades, pois não se identifica nesse grupo uma afinidade real com a série de valores defendidos por essa mesma esquerda. Entretanto, não reconhecer as diferenças nas diretrizes políticas entre governos de Joe Biden e Donald Trump é uma atitude infantil, como colocar os dedos no ouvido e gritar. Pior, é se colocar em linha, ainda que involuntariamente, com o que há de mais reacionário e cruel na política estadunidense: o trumpismo.

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Por que a esquerda deve celebrar a derrota de Trump?

Donald Trump perde eleições nos EUA. (Foto: @evanvucci)
Foto: Divulgação/@evanvucci

A resposta a essa pergunta devia parecer um tanto óbvia, mas tenho percebido uma certa reticência em setores da esquerda em ver a saída de Trump como algo a ser celebrado no cenário político mundial, uma vez que seus sucessores são “mais do mesmo” ou, dito de forma mais direta, deverão tocar uma agenda político-econômica muito similar ao da administração Trump, em especial no que diz respeito às relações internacionais.

Em primeiro lugar, acho importante deixar claro que celebrar a derrota de Donald Trump não significa chancelar a trajetória/agenda política de Biden/Harris. Significa, apenas, que estamos celebrando a derrota da extrema direita no coração do capitalismo. Estamos cientes, no entanto, de que a luta pela expansão dos direitos da classe trabalhadora mundial continuará árdua, como sempre foi, mesmo em um governo do Partido Democrata, pois este se caracteriza por seu cunho liberal. A derrota de Trump, todavia, é um símbolo importante para todo o mundo de que os avanços da extrema-direita encontraram um limite e os movimentos sociais a estão fazendo retroceder. A força de movimentos como o Black Lives Matter e a Marcha das Mulheres falam por si só.

Nesse sentido, um segundo ponto importante tem a ver com a eleição da senadora Kamala Harris como primeira vice-presidenta dos Estados Unidos da América.

A vice-presidente eleita dos EUA, Kamala Harris (07.nov.2020)
Foto: Reprodução/CNN

Independente da agenda política que ela teve como senadora até o momento – assim como do papel que ela irá desempenhar como vice-presidenta tão logo assuma o cargo – o fato de ela ter alcançado esta posição, em si, já é extremamente significativo. Mais ainda se considerarmos que ela poderá ter força o bastante para se tornar a nova comandante-em-chefe dos EUA caso Joe Biden venha a falecer nos próximos 4-8 anos. Vocês conseguem imaginar o que representa, na cabeça de milhões de pessoas ao redor do mundo, ver uma mulher negra ocupando cargo de vice-presidenta dos Estados Unidos? Têm ideia do quanto isso pode motivar milhões e milhões de pessoas a perseguirem novos rumos em suas vidas? A acreditarem que uma mudança em suas vidas é possível? Sim, mulheres em posição de liderança importa!

A esquerda fala muito em “empoderamento”, mas como entender um posicionamento tão reticente diante de um exemplo tão claro como este de Kamala Harris? Há mesmo quem diga que o simbolismo de sua vitória é inócuo, pois sua atuação política, tal como foi a de Barack Obama, reproduziram, em muitos aspectos, pautas liberais que cercearam direitos dos trabalhadores, além de estimularem guerras, mortes e a desestabilização de governos ao redor do globo. De fato, o argumento é bastante válido. Contudo, somos obrigados a lembrar que cada história é uma história e as milhões de pessoas que podem ser tocadas pelo simbolismo das vitórias de Harris e Obama, para ficarmos nesses exemplos, não agirão da mesma forma que estes últimos ao assumirem posições de liderança em seus respectivos países. O que há de mais positivo nos símbolos é que eles servem muito mais como referência do que como um modelo a ser seguido ipsis litteris. Descartar a importância desse simbolismo é jogar fora uma oportunidade de mover milhões de pessoas na luta contra a extrema-direita e o próprio liberalismo. Ou aprendemos a tirar vantagem desses simbolismos para chamar nossos companheiros à luta, ou seguiremos fadados a tê-los como inócuos.

Por fim, a derrota de Trump deve ser celebrada como mais um sinal de mudança nos rumos da política mundial. Se há quatro anos estávamos lamentando o avanço generalizado da extrema-direita ao redor do mundo, hoje testemunhamos uma reversão nesse movimento. Se considerarmos apenas o continente americano, a vitória de Alberto Fernandez/Cristina Kirchner na Argentina foi uma primeira lufada de ar fresco. Em seguida, e mais recentemente, a vitória de Luís Arce na Bolívia – que foi empossado no cargo hoje (08.nov.2020). Agora temos a vitória de Biden/Harris nos EUA e, com ela, não só a queda de Trump, mas da estratégia de Steve Bannon de ganhar eleições mundo afora. Às vésperas de um pleito eleitoral municipal e, mais ainda, da corrida presidencial em 2022, estes são sinais que nos motivam a sair às ruas e militar pela derrota de Bolsonaro. Sim, é possível derrotá-lo, como esses exemplos nos dão a ver. A resposta, como sempre, é a rua. Chamar as pessoas às ruas para fazer valer a voz de uma maioria que não quer mais um representante proto-fascista no Planalto, mas que se deixou insensibilizar com a narrativa antipetista engendrada nacionalmente no começo dessa década que agora chega ao ocaso.

Tal como a derrota de Trump, qualquer vitória à esquerda na semana que vem, e em 2022, deve ser celebrada. Mesmo que a esquerda vencedora seja representada por um nome associado ao setores da esquerda vêm chamando pejorativamente de “esquerda liberal” ou “esquerda cirandeira”. Considerar equivalentes os governos de Barack Obama e Donald Trump, por exemplo, mais do que um erro crasso, revela uma tremenda incapacidade de sentir empatia por milhões de pessoas, em especial afroamericanos e imigrantes, que vivem nos Estados Unidos da América. E a capacidade de sentir empatia é algo que a esquerda jamais deverá perder para se considerar como tal.

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Sérgio Moro em um país tropical

por Flávio de Campos – publicado originalmente no Facebook

Sérgio Moro em foto por Jota Camelo
Foto: Jota Camelo

Escrevo no calor da hora. A saída de Moro é a principal baixa do governo fascista que se instalou no Brasil a partir de 2019. A campanha e o governo de Bolsonaro estiveram apoiados em quatro patas: o antipetismo, a negação da política (e consequentemente, da própria democracia), o tenentismo togado (autoritário, persecutório e seletivo) e a agenda de reformas ultraliberais. A figura de Sérgio Moro está indissociavelmente ligada aos três primeiros membros citados.

O governo Bolsonaro cambaleia. Talvez caia em breve. Bozo não deu um tiro no pé. Ao enfrentar Moro, atirou em três das suas patas. Mas as ideias, práticas e seguidores fascistas parecem não ter se abalado. Moro faz hoje o lançamento oficial de sua campanha presidencial para 2022. Não fala apenas de Brasília. Aliás, sua fala parece ser o melhor discurso já proferido pelo divulgador do substantivo “conge”. Dá a impressão de que já tinha esse discurso ensaiado (e já esboçado) há pelo menos três anos.

Sérgio Moro fala do lugar da não política, de um lugar imaginário, simbólico e inatacável. Por subtração, uma vez que todos os problemas do país são imputados aos políticos e aos partidos, e a corrupção é essencializada às práticas políticas – pelo raciocínio simplista e binário que se disseminou nos últimos anos – a solução se encontra na sua negação. No limite, na negação da democracia.

Sérgio Moro fez um breve balanço de sua gestão à frente do ministério. Por óbvio, essa não é a principal parte de seu pronunciamento. O núcleo duro da sua fala é a dura crítica que faz a Bolsonaro: a sua intenção de estabelecer uma interferência política na Polícia Federal. Note-se que escapou até um ligeiro elogio aos governos petistas: nenhum dos seus presidentes ou ministros teria ousado aparelhar a Polícia Federal. Palavras de Moro.

Moro acusa Bolsonaro de trair a sua palavra. Teria prometido carta branca ao ministro todo-poderoso e não cumpriu. Mas Moro acusa Bolsonaro de trair sua base fascista: traiu a anti-política, acabou tragado pelas engrenagens do poder e procura macular os procedimentos técnicos da Polícia Federal com os imundos interesses que são a matriz de todos os problemas do Brasil, sobretudo da corrupção.

Moro poderia ter aproveitado para retomar a demissão de Mandetta, pelos mesmos motivos. Preferiu deixar isso no ar. Não quer alimentar eventuais adversários políticos.

Como um vírus, o fascismo requer um enfrentamento preciso, rigoroso e disciplinado. Isso vai exigir muita atenção de nossa parte. Enquanto Bolsonaro é evidentemente um fascista infectado, devemos perceber que Sérgio Moro é um fascista assintomático.


Flávio de Campos é professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Sobre o vereador eleito Fernando Holyday (DEM) e os capitães do mato

Repercutindo texto do cantor e compositor Nêggo Tom, publicado no portal Brasil 247 nessa última sexta (4).

O CAPITÃO DO MATO DO NEOLIBERALISMO GOLPISTA
por Nêggo Tom | publicado originalmente em Brasil 247 | 04.nov.2016

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A figura do capitão do mato surgiu na sociedade brasileira por volta de 1694, após a destruição do Quilombo dos Palmares, com o intuito de impedir a fuga de escravos e resgatar escravos fugidos. E ganhavam bem para isso. O pagamento poderia ser em dinheiro ou até mesmo algum pedaço de terra. Os senhores de engenho e outras autoridades da corte portuguesa, estavam preocupados com o número cada vez mais crescente de seres humanos escravizados querendo se libertar e resolveram criar uma espécie de política de segurança pública da época. Tanto é que não seria nenhuma bobagem afirmar que a figura do capitão do mato deu origem a policia militar, também criada ainda no período do Império, em 1809.

O capitão do mato, em sua maioria, eram escravos libertos, o que lhes dava uma falsa impressão de melhor posicionamento social e superioridade pessoal sobre os demais. Claro que a escolha de escravos libertos para policiar escravos não libertos foi proposital. É claro, também, que esses escravos “promovidos” a capitães do mato fizeram por merecer tal recompensa. Entregar a cabeça de seus pares, por exemplo. Pura meritocracia. Trazendo para os dias de hoje, é como aquele seu colega de trabalho que puxa o saco do chefe e cagueta a turma toda para subir na empresa. Digamos ainda que para chegar a capitão do mato, o indivíduo tinha que ter um perfil evolutivo.

O neo liberalismo vive tentando produzir remakes dessa personagem de nossa história. Pelé, mesmo não oficialmente, foi empossado no cargo e como se comporta bem do jeitinho que a casa grande gosta, nunca perderá sua Majestade. Tanto que ganhou o título de rei. O ministro Joaquim Barbosa foi “sondado” para ocupar essa função, mas graças a Deus e a sua inteligência acima da média, percebeu que estava sendo usado e declinou a tempo do convite. Tudo parecia ir bem, mas quando ele declarou apoiar a política de cotas, reconheceu resultados nas políticas afirmativas criadas pelo governo do PT e se posicionou publicamente contra o impeachment de Dilma, a decepção foi geral no reino de Dom João. Esse não serve mais! Precisamos de alguém com menos personalidade, com mais necessidade de ascensão, sem muita estima as suas origens e sem nenhum sentimento pelo sofrimento de seus antepassados.

Assim nasce Fernando Holiday. O capitão do mato do neo liberalismo. A escolha do rótulo do produto é sensacional. Negro, pobre e gay. Um legítimo representante das minorias exaltado pela direita conservadora, sempre acusada de preconceito e de elitismo. Como somos injustos com eles. Só que não! Não precisa raciocinar muito para perceber o que o jovem, coordenador nacional do movimento Brasil livre, tem por missão.Enquanto acusa a esquerda de promover uma divisão na sociedade, promovendo uma guerra entre classes, raças e gêneros, a direita promove a divisão entre os próprios membros das classes, das raças e dos gêneros. E eles são bons nisso.

Fernando Holiday publica vídeos cheios de atitude na internet, grita, sapateia, esperneia, põe o dedo em riste para a câmera. Seu discurso tem uma estrutura tucana, verbetes bolsonaristas e muitos malafaiagismos. Já rasgou o hino à negritude em plena tribuna da câmara dos deputados, já tentou desmoralizar Eduardo Suplicy, já se declarou contrário às cotas raciais, já disse que Zumbi era um assassino e que preto gosta de se fazer de vítima. Só faltou dizer que é branco. Talvez ele até acredite que seja, pelo fato de ser o capitão do mato do momento, movido pela vaidade e financiado por algum senhor de engenho preocupado com a perda de seus escravos e empenhado em captura-los ou recuperar alguns, através da lei da oferta e da procura.

Quando Holiday diz que os negros não precisam de favores ou de cotas e devem conquistar os seus objetivos apenas por mérito, ele não está querendo dizer que você pode e basta lutar. Na verdade ele apenas reproduz o discurso dos racistas, que de maneira inteligente, usam um negro para conter os outros descontentes, fazendo-os crer que toda luta por igualdade e respeito não passa de uma bobagem, afinal, somos todos iguais, as oportunidades são iguais e racismo é coisa da cabeça de gente complexada e incapaz. Ao mesmo tempo em que é “vendido” como o preto exemplar ou negro de alma branca, Fernando Holiday se submete ao que há de mais deprimente para a honra de um homem.

A sua eleição para a câmara dos vereadores de São Paulo, foi um prêmio à sua fidelidade canina a agenda golpista e uma tapa na cara dos movimentos esquerdistas. Uma forma de a direita conservadora dizer, falsamente, vinde a mim todos os pretos, pobres e outras minorias, e eu vos elegerei. Não temos nada contra vocês! Desde que estejam ao nosso lado. Desde que adotem o nosso discurso. Jesus Cristo também fora tentado de forma semelhante quando o diabo o levou ao topo de uma montanha e de lá, apresentando as belezas do seu reino, o propôs abandonar os seus e a sua missão, em troca de toda a riqueza e status que ele poderia lhe oferecer. Vai ficar nessa de lutar pelos pobres, pelas minorias e de ficar pregando justiça e igualdade social? Os ricos vão te odiar e os poderosos vão pedir a sua cabeça. Sai dessa! Eu tenho coisa melhor pra você. Como Jesus não era golpista e muito menos se esquecia de suas origens, seguiu em frente. Sai diabo!

A direita sempre contra ataca, e na maioria das vezes, o intuito é retroceder. Trazer o país que eles acham que é só deles, de volta. Quando os mais pobres começam a ter acesso à educação superior, eles cortam os investimentos. Quando as mulheres conquistam independência, eles dizem que elas devem ser belas, recatadas e do lar. Quando os negros e pobres decidem lutar por igualdade e respeito, sem hipocrisia e falsa meritocracia, eles apresentam Fernando Holiday. Essa postagem em sua página do Facebook, talvez diga alguma coisa:

“Como Vereador, lutarei para:

– Combater o vitimismo:

Todos, independente de cor de pele, podem alcançar o sucesso sem precisar de migalhas do Estado para isso.

– Acabar com as cotas raciais em concursos públicos municipais:

Chega de segregacionismo institucionalizado. Todos somos iguais!

– A revogação do dia da consciência negra em São Paulo:

É um absurdo que exista uma data como esta, e que acima de tudo, homenageie um homem assassino escravagista.”

É a personificação do padrão meritocrata dos golpistas. Ou seja, só está lá porque pensa como eles, age como eles, se sente como eles e gostaria de ter nascido como eles. Mas sabe que nunca será de fato, como eles. Será sempre visto como um agregado social, que deve favores aos seus senhores e mentores. Exagero? Ele que ouse a contrariá-los.

Até lá, ele seguirá como paradigma da elite para ilustrar como deve ser e se comportar, os pobres e os negros desse país, para serem bem aceitos pela casa grande. Ele é realmente um fenômeno. É negro e não sofre racismo. É pobre e é bem vindo à alta roda. É gay e agrada aos radicais conservadores da direita. Já prevejo um globo repórter especial com a tradicional chamada de Sergio Chapelin dizendo: quem é, onde vive, do que se alimenta e qual é o segredo de Fernando Holiday? Que não é feijão, mas se tornou o preto mais querido de alguns brasileiros.

Dez entre dez golpistas o preferem. Feijão, quer dizer, Fernando Holiday, tem gosto de festa, é melhor e mal não faz aos interesses dos senhores de engenho da nova era. E ainda combate o vitimismo. Oi?

Que não sirva de exemplo a resistência.

“Libertei mil escravos. Podia ter libertado mais mil, se eles soubessem que eram escravos.” Harriet Tubman


Nêggo TomNêggo Tom, é Cantor e compositor. É pobre, detesta doença e mais ainda camarão

 


Nota do Hum Historiador: Após ler esse texto, difícil não associar Fernando Holiday ao personagem Stephen, do filme Django Livre, de Quentinn Tarantino. Deixo a imagem do personagem para que reflitam no papel que esse indivíduo irá desempenhar na Câmara de Vereadores de São Paulo.

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Brasil, um país sabotado: a moral, o resto e o patriarcalismo

por Lucas Freitas

Compreender a sociedade e a política brasileira é algo extremamente complexo, existem diversos fatores envolvidos, 200 milhões de pessoas e realidades regionais tão diferentes que seria mais fácil falar em um multiplicidade do que em uma unidade chamada Brasil. Porém, há elementos comuns. Estes são mais evidentes no seleto grupo que fica no topo da pirâmide, sua conduta funciona dentro de uma lógica de manutenção e acumulação de privilégios. Dentro deste jogo não existe a constituição, as regras sociais ou qualquer tipo de ética, tudo é valido desde que um certo verniz de legitimidade seja mantido. O problema seria como definir e explicar o comportamento do resto da população?

Um dos elementos mais básicos de nossa sociedade é o patriarcalismo, característica que data de nossa colonização e se faz presente em nossos meios mais conservadores. O patriarcalismo estabelece uma estrutura verticalizada e hierarquizada de sociedade, nesta há um núcleo no qual está o patriarca e, a partir deste, formasse uma rede de contatos que se espalha pela sociedade se relacionando com outras redes patriarcais (1). Quanto mais próximo do centro, maior será o acesso do indivíduo a recursos e a privilégios. Esta estrutura depende da obediência ao núcleo que controla e distribui os recursos para os participantes da rede.

Vamos tomar como exemplo as ocupações de escolas públicas de São Paulo. Tal iniciativa seria uma afronta a estrutura patriarcal pois, primeiro, quebra com a regra da obediência ao ousar questionar uma ordem dada (2). Segundo, estabelece uma forma de organização e atuação totalmente independente do centro, o que coloca em xeque a exclusividade do patriarca em distribuir os recursos e privilégios (3). Terceiro, expõe a distribuição de recursos enquanto injusta, o que ataca diretamente a legitimidade do núcleo patriarcal (4). E, quarto, inverte a ordem estabelecida ao demonstrar que os participantes da rede tem poder de negociação (5). A verticalização e hierarquização da qual depende o patriarcalismo, portanto, inverteria-se no momento em que o resto exige mais direitos do centro (6). Algo que jamais pode ser tolerado.

A primeira resposta do patriarcalismo ao ser contestado é sempre a violência (7), atos de intimidação – física e moral – feitos para tornar o rebelde em um exemplo daquilo que vai acontecer com todo aquele que seguir o mesmo caminho. Porém, o terrorismo patriarcal mal começou. É exatamente quando a a violência e o medo não surtem efeito desejado que os pit bulls são soltos. Os alunos, pais e professores envolvidos nas ocupações passarão a ser alvos de toda a perversidade que o patriarcalismo é capaz. Todo verniz é descartado e todas as armas poderão e serão utilizadas.

Tradicionalmente, três elementos são usados simultaneamente. O primeiro deles é o sistema judiciário, este atua para garantir os privilégios de nossa elite patriarcal, na manutenção da ordem estabelecida em sua verticalidade e hierarquia, e, por fim, na perseguição jurídica dos rebeldes (8). Para legitimar as ações do judiciário, os meios de comunicação de massa (Tvs, rádios e jornais) são utilizados para destruir a imagem e o apoio que as ocupações tem junto a população. Notícias de vandalismo serão inventadas (9) e os erros serão maximizados, pouco a pouco, o movimento será transformado de pacifico legítimo e justo em algo violento (10) e criminoso (11). Com base na ação do judiciário e da mídia, uma nova rodada de violência e intimidação é feita através da PM, estabelecendo um ciclo que será mantido até que o movimento e todos os seus participantes estejam completamente destruídos, submissos, mais uma vez, a ordem patriarcal.

Em meio a este ciclo atua o mais importante elemento patriarcal: o escravo da casa grande. Oliveira Viana demonstra que para o patriarca todo o resto são escravos, porém há os escravos da senzala e os da casa grande. A chave da manutenção da ordem está no escravo da casa grande que, convencido de que não é escravo, atua contra seus próprios interesses e defende a estrutura social. Para isso, vai denunciar o escravo rebelde, intimidá-lo e aterrorizá-lo, esperado que, pelo seu bom comportamento, seja recompensado pelo seu senhor. Ele é um escravo como qualquer outro, mas atua como um capitão do mato combatendo qualquer possibilidade de mudança, tornando impossível a liberdade para os escravos e para ele mesmo.

Para os movimentos sociais como as ocupações, consequentemente, sobram duas possibilidades: ou os mecanismos patriarcais esmagam o movimento; ou os alunos, pais e professores conseguem desgastar a legitimidade do patriarca o suficiente para obrigá-lo a um recuo momentâneo. O que determinará qual das duas possibilidade se tornarão realidade é a capacidade do movimento em manter o apoio da sociedade e desgastar a legitimidade do Patriarca – no caso, Geraldo Alckimim.

 

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CHOMSKY: O que o Tio Sam realmente quer? [certamente não é provar a nossa batucada!]

Post publicado originalmente no portal OUTRAS PALAVRAS.

Noam Chomsky

Abaixo, um trecho do livro ‘O que Tio Sam Realmente Quer’, do escritor americano Noam Chomsky. Ele mergulha, nesta passagem, na política externa dos Estados Unidos, e dedica várias linhas ao Brasil.

Vamos focalizar a América Latina, e começar olhando para os direitos humanos. Um estudo feito por Lars Schoultz, um destacado acadêmico especialista em direitos humanos da América Latina, mostra que “a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos “latino-americanos que torturam seus cidadãos”.

Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio.

Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman, revelam uma estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana e fornecem uma explicação: ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. Em comparação com este guia de princípios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na insignificância.

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O que o Tio Sam realmente quer. Livro de Noam Chomsky de onde foi tirado o texto deste post.

E a elevação do padrão de vida? Isso foi supostamente tratado na Aliança para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para as necessidades dos investidores norte-americanos. A Aliança fortificou e ampliou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, como milho e feijão, cultivadas para o consumo local. Com o programa da Aliança, por exemplo, a produção de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.

Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz um “milagre econômico” em que o PNB – Produto Nacional Bruto – sobe, enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura.

(O uso do terror é profundamente arraigado em nosso caráter. Nos idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a “eficácia salutar” do terror em se tratando das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”. Ele escreveu isso para justificar a violência de Andrew Jackson, na Flórida, que praticamente exterminou a população nativa e deixou a província espanhola sob o controle americano, impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua sabedoria.)

O primeiro passo é o uso da polícia; ela é decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento e eliminá-lo antes da “grande cirurgia” (como é chamada nos documentos de planejamento) ser necessária. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército dos países da América Latina – particularmente a região do Caribe e da América Central – é tempo de derrubar o governo.

Os países que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob os governos capitalistas democráticos de Arévalo e Arbenz, ou a República Dominicana, sob o regime capitalista democrático de Bosch, tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos Estados Unidos.

Em 1954, os americanos derrubaram o presidente da Guatemala e puseram em seus lugar militares, para proteger os interesses de suas empresas

O segundo passo é utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relações estreitas com os militares de países estrangeiros, porque essa é uma das maneiras de derrubar um governo que saiu fora do controle. Assim foram assentadas as bases para os golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonésia, em 1965.

Antes desses golpes, éramos bastante hostis aos governos do Chile e da Indonésia, mas continuávamos enviando armas. Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. O mesmo raciocínio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irã via Israel, desde o início de 1980. De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos, esses fatos eram conhecidos já em 1982, muito antes de haver reféns.

Durante o governo Kennedy, a missão dos militares latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de “defesa hemisférica” para “segurança interna” (que basicamente significa guerra contra a própria população). Essa decisão fatídica implicou a “direta cumplicidade [dos Estados Unidos]” com “os métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himler”, no julgamento retrospectivo de Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de contra-insurgência, de 1961 a 1966.

O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando a derrubar a democracia brasileira, que se estava tornando independente demais. Enquanto os Estados Unidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituíam um estado de segurança nacional de estilo neonazista, com repressão, tortura, etc. Isso provocou uma explosão de acontecimentos semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfério, desde os meados de 1960 até 1980 – um período extremamente sangrento.

(Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)

Os militares agem de maneira típica para criar um desastre econômico, seguindo frequentemente receita de conselheiros norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os civis administrarem. Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).

Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da população, etc. Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das classes dominantes e de investidores estrangeiros (“estabilidade”), além de reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo – a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miseráveis e sofredores.

Pinochet foi fruto dos Estados Unidos

Augusto Pinochet, ditador chileno.

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas – a menos que as forças populares queiram entrar na arena política. Neste caso, os militares talvez tenham de reinstalar a “estabilidade”.

O Brasil é um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um país muito bem dotado de recursos naturais, além de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das nações mais ricas do mundo. Mas graças, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao tão aclamado “milagre econômico” que se seguiu ao golpe (sem falar nas torturas, assassinatos e outros instrumentos de “controle da população”), a situação de muitos brasileiros foi, durante muitos anos, provavelmente parecida com a da Etiópia – e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.

Em 1993, três décadas depois do golpe militar, o Brasil tinha uma taxa de mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka. Um terço da população vivia abaixo da linha da miséria e, nas palavras de uma revista dedicada aos países pobres, “sete milhões de crianças abandonadas pediam esmola, roubavam e cheiravam cola nas ruas. E para milhares delas a casa era um barraco na favela… ou cada vez mais um pedaço de terra embaixo da ponte”.

Isso é o Brasil, um dos países de natureza mais rica do planeta. A situação era semelhante em toda a América Latina. Apenas na América Central o número de pessoas assassinadas pelas forças apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970 até meados dos anos 1990, girava em torno de duzentos mil, ao mesmo tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e a reforma social, foram dizimados.

Essas façanhas qualificam os Estados Unidos como fonte de “inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, nas admiráveis palavras da revista liberal New Republic. Tom Wolfe conta-nos que a década de 1980 foi “um dos grandes momentos de ouro da  humanidade”. Como diria Stalin: “Estamos deslumbrados com tanto sucesso.”

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Luciana Genro rebate Eduardo Cunha sobre aborto no Brasil

Publicado originalmente no portal Pragmatismo Político | 10. Fev. 2015

LUCIANA GENRO SOBRE ABORTO: Eduardo Cunha não se incomoda em passar por cima dos cadáveres de milhares de mulheres.

Luciana Genro (PSOL-RS)

por Luciana Genro

“Aborto só será votado passando por cima do meu cadáver”, afirmou Eduardo Cunha. Ao que parece, o presidente da câmara não se incomoda em passar por cima do cadáver de milhares de mulheres. A cada dois dias, uma mulher morre em decorrência de abortos clandestinos feitos em condições desumanas.

Mais da metade das mulheres vítimas de procedimentos inseguros é negra e pobre. Segundo dados da Organização Mundial de saúde, o risco de morte para mulheres pobres, que fazem abortos em clínicas clandestinas inseguras, é multiplicado por mil.

São 850 mil abortos realizados por ano no Brasil. Não adianta ignorar os números. Na prática, a proibição não evita o aborto, mas arrisca a vida de mulheres que não podem pagar por um procedimento seguro. E reacende uma discussão muito relevante para o feminismo: pode o Estado legislar sobre o corpo das mulheres?

É preciso fazer este debate partindo de algumas premissas objetivas: (1) o número de abortos realizados por ano no Brasil (2) o número de mortes em decorrência de abortos inseguros. Essas premissas garantem que a discussão seja feita no campo político e não no campo moral ou religioso. Vale lembrar que o fundamento religioso para redução do direito de escolhas compromete o Estado Laico e a cidadania das mulheres.

Não é possível ser “pró-vida” e cruzar os braços diante de um número alarmante de mortes. Ou será que essas mortes incomodam menos por um perverso esquema de valoração da vida, que reduz a importância da morte de mulheres negras e pobres?

Esse debate, feito no campo político, será o requisito para que todas as mulheres tenham igualdades de condições para decidir livremente sobre seus corpos.

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Batalha se aproximando na Europa

Pedro o Eremita em Cruzada

Iluminura francesa, ca. 1120. O monge Pedro, o Eremita, em cruzada montado em um burro.Imagem: Wikicommons.

O texto a seguir é de autoria de John Feffer e foi publicado originalmente nesta última quarta-feira (14), no portal Foreign Policy in Focus. A missão deste site é divulgar e conectar os textos e ações de mais de 600 acadêmicos e ativistas espalhados pelo mundo. Na sexta-feira (16), Vinicius Gomes traduziu e a Revista Fórum publicou a versão em português que o Hum Historiador repercute aqui, na íntegra, para seus leitores.

UMA NOVA CRUZADA NA EUROPA?
Por John Feffer, em Foreign Policy in Focus | Tradução: Vinicius Gomes

Uma batalha se aproxima pela alma da Europa e a extrema-direita está marchando como se estivesse em 1099. Por isso é necessário resistir chamar de “combatentes” os assassinos de Paris e de “defensores da civilização ocidental” os cartunistas da Charlie Hebdo.

Na primeira Cruzada, a caminho da luta contra os infiéis muçulmanos em Jerusalém, os peregrinos armados fizeram entre si uma pergunta provocativa: por que devemos rumar tão longe para matar pessoas que mal conhecemos, quando nós podemos simplesmente massacrar infiéis mais próximos de casa.

E assim os cruzados do século XI entraram em alguns dos primeiros pogroms na Europa contra os judeus. Esses ataques de fúria antisemitas no coração do continente contavam com a vantagem de ajudar no financiamento da primeira Cruzada, uma vez que os peregrinos se apropriavam da riqueza dos judeus que eles matavam.

Imagem elaborada para representar a Primeira Cruzada.

A Europa está mais uma vez testemunhando o efeito colateral dos conflitos no Oriente Médio. Extremistas que estão envolvidos em modernas cruzadas na região – ou se frustraram em fazer a jornada ao Iraque e à Síria – fizeram a si mesmos uma pergunta muito similar àquela de suas contrapartes do século XI: por que não matar infiéis que estão logo ali do que um infiel tão distante?

A questão é tão horrenda hoje quanto foi mais de 900 anos atrás – assim como o é sua resposta, como o mundo testemunhou semana passada na redação da revista Charlie Hebdo e do mercado kosher em Paris.

Em ambos os casos, os cruzados acreditam que suas ações eram de importância mundial e histórica. No século XI, foi o papa Urbano II que fez o chamado às armas, transformando sedentários cristãos em predadores globais. Hoje, são tipos como Estado Islâmico e al-Qaeda que estão pedindo que seus seguidores matem os hereges. Mas, assim como os pogroms iniciais, assim como o massacre de 2011 por Anders Breivik na Noruega ou os assassinatos étnicos em série de turcos na Alemanha, por neonazistas entre 2000 e 2007, as recentes atrocidades na França não são nada além de atos criminosos.

Isso não é, em outras palavras, um duelo entre as forças da iluminação e as forças da barbárie. Precisa-se resistir à tentação de conferir o status de combatentes aos assassinos, assim como o status de defensores da civilização ao Charlie Hebdo.

A verdadeira batalha

Essas matanças podem não constituir uma guerra, mas elas apontam um profundo conflito dentro da Europa. Esse conflito não é sobre qual religião é a única e verdadeira religião. É sobre a própria identidade do continente.

No século XI, o que animou os cruzados não foi apenas o status de Jerusálem, mas também o temor de que o islã desembarcasse nas praias da Europa – na realidade, os muçulmanos já tinham um pé firme na península ibérica. Hoje, um medo semelhante anima os islamofóbicos e os detratores da imigração na Europa. Eles temem que sua velha visão de uma Europa cristã predominantemente branca – com fronteiras claras definindo quem é francês, quem é alemão e que não pertence à aconchegante cultura da “civilização ocidental” – esteja rapidamente desaparecendo. Eles desaprovam tanto a eliminação das fronteiras internas para maior integração europeia, assim como as transformações demográficas por conta da imigração. Eles lutam desesperadamente para preservar a herança cristã do continente.

Mas a Europa de seus sonhos, considerando que ela alguma vez sequer existiu de verdade, já virou passado. A imigração na Europa não é nada novo, claro, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial. As conexões coloniais diversificaram o continente com indonésios indo para a Holanda, argelinos para a França e caribenhos para o Reino Unido. Durante a falta de mão-de-obra nas décadas de 1960 e 70, trabalhadores de fora vindo dos Bálcãs, Turquia e Norte da África choviam em países como Alemanha e Suíça, que possuíam pouca ou nenhuma conexão colonial. Muitos desses trabalhadores voltaram para seus países, mas alguns ficaram, começaram famílias e criaram um multiculturalismo ao pé da letra.

Essas mudanças deram ignição à primeira onda do sentimento anti-imigração. Em 1968, Enoch Powell realizou seu discurso infame sobre “rios de sangue” aos conservadores britânicos, onde ele previu um futuro de violência por conta do fluxo de imigrantes vindos das antigas colônias. A Frente Nacional começou a mobilizar esse sentimento na França no começo da década de 1970, assim como o xenofóbico Partido Republicano na Alemanha, em 1983. Apesar de os “rios de sangue” de Powell não terem vingado, a semente de anti-imigração na política europeia foi crescendo cada vez mais virulenta e a Europa continuou a mudar. As guerras na era pós-Guerra Fria – na Bósnia, Kosovo, Norte da África e no Oriente Médio – levaram para dentro do continente refugiados e migrantes, assim como as perspectivas de uma Europa unificada atraíram pessoas do mundo inteiro.

As mudanças demográficas na Europa na última década têm sido dramáticas: de acordo com o censo populacional da ONU, entre 2005 e 2013, a população imigrante na Suíça saltou de 22,9% para 28,9%; na Espanha foi de 10,7% para 13,8%; na Itália, 4,2% para 9,8%; na Suécia, 12,3% para 15,9%; na Dinamarca, 7,2% para 9,9%; na Finlândia, 2,9% para 5,4%; e no Reino Unido, de 8,9% para 12,4%.

Tais aumentos tão rápidos e em tão curtos períodos de tempo criaram uma ansiedade em populações que não consideram que seus países sejam “sociedades imigrantes”, como Estados Unidos ou Austrália.

Uma islamofobia de conveniência

No interior da Alemanha, a organização Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente (Pediga, sigla em alemão) provou-se ser enormemente popular e um constrangimento para os políticos alemães no alto escalão.

Essa semana, os organizadores do Pegida realizaram uma marcha em Dresden, na esteira das mortes em Paris, e atraíram 25 mil pessoas apesar dos pedidos da chanceler alemã Angela Merkel e outras figuras políticas para que as pessoas ficassem em casa. Apesar de uma contra-demonstração contra o Pegida, também em Dresden, ter atraído 35 mil pessoas, a organização xenofóbica está ganhando força com mais marchas planejadas em outras cidades da Alemanha e até mesmo em outros países.

Sem surpresa alguma, dada sua mensagem anti-imigração e anti-muçulmana, o grupo atraiu um grupo hardcore de extremistas associados a clubes de futebol e gangues de motoqueiros, mas não se engane: o sentimento anti-imigração e islamofóbico é muito popular até mesmo entre os elementos pretensamente respeitáveis na Alemanha.

Na Inglaterra, enquanto isso, o fervor anti-imigração catapultou o Partido da Independência do Reino Unido (Ukip, sigla em inglês) para o terceiro lugar nas últimas eleições. Na esteira das tragédias na França, o líder da sigla, Nigel Farage, falou de uma “quinta coluna” dentro dos países europeus “que tem nossos passaportes, [mas] nos odeiam” – um sentimento que aumentou e muito sua popularidade. Obviamente, Farage é sempre justo em sua xenofobia: no ano passado, quando novas regulações trabalhistas foram aprovadas, dando o direito aos cidadãos da Romênia de trabalhar em qualquer lugar na União Europeia, ele disse que “qualquer pessoa normal e razoável teria perfeitamente o direito de ficar preocupado se um grupo de romenos se mudar para a casa ao lado”.

Mas a organização que melhor se posicionou para surfar na onda islamofóbica que está engolindo a França é a Frente Nacional.

Antes dos recentes assassinatos em Paris, Marine Le Pen já liderava algumas pesquisas para as eleições presidenciais em 2017, e seu partido estava no topo das intenções de votos para eleições locais, agora em março. Le Pen clamou por uma reinstituição de controle de fronteiras e da pena de morte, o que faria a França destoar do resto da Europa. Ela é o rosto do novo extremismo: suficientemente liberal em alguns tópicos (divorciada, pró-aborto), mas tão agressivamente intolerante quanto seus predecessores, como método para encantar sua base.

A islamofobia desses movimentos de extrema-direita é, por muitos motivos, acidental. Eles trafegam em um sentimento anti-islâmico porque é popular e mais palatável do que, por exemplo, o racismo e a xenofobia. É temporada de caça e intolerância aos muçulmanos, porém, essa islamofobia é apenas a ponta da lança – o verdadeiro desejo da extrema-direita é manter fora da Europa todo e qualquer tipo de imigrante.

Evitando os rios de sangue

A primeira Cruzada “libertou” Jerusalém em 1099 em um grande banho de sangue, com os cruzados trucidando tanto muçulmanos quanto judeus, na cidade sagrada. Foi a primeira de meia dúzia de cruzadas que atravessou a Europa e os próximos dois séculos. As vítimas dos últimos cruzados incluíram pagãos, cristãos ortodoxos, hereges albigenses e, até mesmo, durante a quarta Cruzada, a população católica de Zara, onde hoje é a Croácia.

O ciclo de violência iniciada pelo chamado religioso às armas do papa Urbano II ceifou vidas de todos os credos e produziu também grande parte da violência de europeus contra europeus. Extremistas de todos os lados adorariam ver o retorno das Cruzadas. O Estado Islâmico e fragmentos da al-Qaeda gostariam de ver rios de sangue nas ruas da Europa, e a extrema-direita acredita que uma guerra ampla e sem fim contra um inimigo como esse é um caminho para o poder político – uma vez no poder, eles irão ter o seu próprio 11 de Setembro para assim acabar com a integração europeia, levantar um enorme muro ao redor do continente e começar as deportações.

Esqueça essa falsa propaganda de Ocidente versus Islamismo. Isso é historicamente e conceitualmente incorreto. Os dois estão basicamente do mesmo lado contra os crimes do radicalismo. A verdadeira batalha é pela alma da Europa e a extrema-direita está marchando como se estivesse em 1099.


John Feffer é co-diretor do Foreign Policy In Focus no Instituto de Estudos Políticos. Autor de vários livros e numerosos artigos. Já há algum tempo é Writing Fellow na Biblioteca Provisions em Washington, DC e também PanTech fellow em Estudos Coreanos na Universidade de Stanford. Também foi editor associado do World Policy Journal e vem trabalhando como representante de assuntos internacionais na Europa Oriental e Ásia Oriental para o American Friends Service Committee.

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