O Hum Historiador abre espaço para repercutir a entrevista da professora Stella Maris Scatena Franco, professora de História da Universidade de São Paulo, ao jornalista Luiz Carlos Azenha, do portal Viomundo, nesta última quarta (07). Nessa entrevista, a professora comenta o caso da aluna de pós-graduação da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), Ana Caroline Campagnolo, que move processo por danos morais contra sua ex-orientadora, a professora Marlene de Fáveri, que teria tentado prejudicá-la academicamente, segundo a autora do processo.
Com fotos do portal Catarinas (por Dieini Andrade e Chris Mayer) e reprodução da TV Cultura: Marlene, Stella Maris, um protesto de colegas de Marlene em Santa Catarina e a mestranda Ana Caroline
Anexei uma prova fonográfica, e-mails e documentos como prova. Na prova fonográfica é possível ouvir a professora dizendo que se eu não concordo que “poder usar um vibrador” e “poder estar numa Universidade” são conquistas feministas, eu não deveria estar naquela Universidade. Marlene também diz que minhas convicções cristãs são inconsistentes e ridículas e que ela não gosta de gente ridícula, embora algumas pessoas – meus companheiros de fé, obviamente – gostem. Ana Caroline, que move a ação, em entrevista ao portal Catarinas.
Tudo isso mexe comigo, com minha história de vida, com a feminista que tem dentro de mim, me constrange publicamente. Me sinto muito prejudicada, injuriada, desqualificada como mulher, como professora. Sinto todas as mulheres desqualificadas também porque o feminismo é uma luta muito importante, que vem de muito tempo e que tem como alvo emancipar as mulheres e por fim a qualquer tipo de violência. Feminismo é uma prática política que tenta diminuir as dores e violências do mundo. Espero que isso termine, porque é muito cansativo. Estou deixando de fazer coisas muito importantes desde o início do processo como ler dissertações e participar de bancas. Marlene de Fáveri, também ao portal Catarinas.
por Luiz Carlos Azenha | Viomundo – 07/06/2017
Acadêmicos, alunos e integrantes da ANPUH, a Associação Nacional de História, estão mobilizados em torno do processo movido por uma mestranda de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, contra a orientadora Marlene de Fáveri, acusada de danos morais. Ana Caroline pede indenização de R$ 17.600 por “discriminação, intimidação, ameaça velada via e-mail, exposição discriminatória, humilhação em sala de aula e tentativa de prejudicar academicamente a autora”.
Além de manifestarem solidariedade à orientadora, os colegas se preocupam com a repercussão que uma decisão judicial possa ter nas salas-de-aula das universidades brasileiras, provocando autocensura, ameaçando a liberdade de expressão e prejudicando a liberdade de crítica que é essencial e justifica a própria existência da universidade.
Para tratar do caso, entrevistamos a professora Stella Maris Scatena Franco, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo.
Viomundo: Qual é a acusação?
A ex-orientanda de mestrado de Marlene de Fáveri a acusa por danos morais. A abordagem de gênero pressupõe, como todas as outras no âmbito acadêmico, uma perspectiva analítica crítica, que não vinha sendo explorada pela aluna, claramente associada a grupos de tendência conservadora (o que pode ser evidenciado na entrevista concedida por ela a um canal intitulado justamente Conexão Conservadora).
Até onde sei, esta situação, quando percebida pela professora, levou-a a solicitar ao seu Programa de Pós-Graduação a interrupção da orientação, visto que as pré-concepções da orientanda podiam comprometer seriamente os resultados da pesquisa. A orientação foi transferida e, ao fim, a pesquisadora foi reprovada pela banca que a avaliou.
Viomundo: Quem é a acusadora?
A acusadora chama-se Ana Caroline Campagnolo. Trata-se de uma estudante que cursava pós-graduação na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Na entrevista mencionada acima, afirma-se como uma pessoa “conservadora e de direita” e fala do feminismo como “um grande engodo”.
É realmente difícil compreender as razões que levaram esta jovem a buscar a abordagem de gênero como embasamento para a sua investigação.
Viomundo: Quais são os argumentos da acusadora?
Os argumentos se aproximam aos utilizados pelos defensores do movimento Escola Sem Partido, de que os professores, sob o pretexto de realizarem uma leitura crítica da realidade, “doutrinam” os alunos. Por esta lógica, os docentes deveriam ministrar os conteúdos de forma “neutra”, para que as análises não entrem em confronto com as convicções pessoais (e religiosas, inclusive) dos alunos.
A situação é, no mínimo, irônica, pois aqueles que defendem a neutralidade são os que mais tem ligações com posturas preconcebidas, valorativas e fechadas. O pensamento crítico pressupõe questionamentos, reflexões e uma visão da história enquanto campo constituído por conflitos das mais diferentes ordens, inclusive de ideias.
Viomundo: Como os colegas da professora Marlene encaram essa denúncia?
Essa denúncia pode ser encarada de múltiplas formas: como uma postura “reacionária”, no sentido lato do termo, isto é, que reage a um movimento de expansão do ensino crítico, que vimos praticando com maior liberdade desde o processo de abertura democrática.
Curiosamente, este caso que envolve Marlene de Fáveri, é associado à abordagem da história das relações de gênero, que perturba os grupos tradicionalistas e religiosos, pois rompe com a ideia do essencialismo biológico, que pressupõe a determinação dos comportamentos e papeis sociais pela natureza, isto é, pelo próprio sexo. Esta questão é analisada por especialistas em reflexões teóricas bastante complexas e sofisticadas.
Tudo isso incomoda pessoas avessas a transformações, principalmente comportamentais, o que às vezes as leva a saídas “reativas”, de um lado, e “corretivas”, de outro, como nas campanhas que defendem a “cura gay”.
Combinado a essa percepção, também pode-se entender que há um interesse da aluna em se projetar publicamente, atraindo adesão de pessoas simpáticas às vertentes conservadoras.
Assim, a denúncia poderia ser encarada como uma atitude oportunista.
Finalmente, acredito que haja um receio quanto a uma possível vitória da aluna, pois isso estimularia a vigilância sobre os professores, fazendo generalizar e institucionalizar o que tem sido chamado de Lei da Mordaça.
Há muitos professores e professoras empenhados(as) na defesa da Marlene, pois sabem que este tipo de constrangimento pode levar à censura ainda maior em sala de aula, o que, em última instância, acabaria por ferir a liberdade de expressão e de ensino.
Esse tipo de relação comprometeria o processo de ensino-aprendizagem, lembrando, ademais, os contextos de autoritarismo político e de estado de exceção, que supúnhamos superados.
No momento atual vivemos um contexto político no qual as regras democráticas foram colocadas em xeque.
O controle do pensamento é parte importante desse mesmo processo. Nesse sentido, são muito significativos os ataques aos historiadores.
Uma história contestadora, que deflagra contradições (como a absoluta falta de neutralidade nas propostas do Escola Sem Partido, o mesmo que demanda a neutralidade no ensino), uma atitude que instiga o questionamento das verdades prontas e acabadas, que analisa os processos de autoritarismo nos diferentes momentos e reflete sobre suas consequências para a sociedade é, no mínimo, incômoda.
Não parece fortuito o fato desse governo defender o fim da obrigatoriedade da disciplina de História no Ensino Médio (o que afeta também o ensino no nível superior, sobretudo as licenciaturas em História, que formam os professores que depois vão atuar na rede básica).
Assim, pelo fato desse movimento propor o fim da autonomia dos docentes e espelhar o próprio cerceamento do exercício de cidadania por meio das restrições à democracia, os professores encaram esta ação como ilegítima, falha em fundamentos conceituais coerentes e perigosa do ponto de vista político.
No entanto, este é um processo que ao mesmo tempo uniu colegas das diferentes partes do Brasil, que se manifestaram nesta semana e, particularmente no dia 06, quando da audiência em que foram ouvidas as testemunhas de Marlene, para prestar solidariedade, para defender a liberdade de ensino e o reconhecimento de demandas colocadas pelos movimentos sociais, como o feminismo.
Viomundo: Quais as consequências que o caso poderá ter para ela em particular e para a comunidade acadêmica em geral?
Hoje já virou uma prática relativamente comum os professores serem sujeitos a gravações de suas aulas, por alunos que têm em mente levar a cabo ações judiciais. Os alunos são instigados a isso pelo Escola Sem Partido. Essa é uma prática que pode aumentar e isso causaria muitos problemas.
No caso do acirramento dessas tensões, alguns docentes, eventualmente, poderiam vir a se auto-censurar por temerem processos ou até mesmo demissões. Atualmente, os professores de ensinos Fundamental II e Médio, que passam por entrevistas em algumas escolas mais tradicionalistas, são questionados sobre suas posições político-ideológicas. Isso vem se tornando um critério para a contratação de professores em algumas escolas.
O silenciamento, a censura, trazem consequências irreparáveis para os próprios formandos. No entanto, neste ponto sou otimista.
Não acredito que liberdades e direitos conquistados a tão duras penas possam simplesmente desaparecer sem contestação. E é por isso que as mobilizações em torno de Marlene foram e são importantes. Para mostrar o quanto é vital nos unirmos.
Agora, para aquela que sofre este processo — a própria Marlene –, o custo pessoal é imenso. Tempo, dinheiro e muita energia dispendidos em torno de uma demanda destrutiva e cerceadora.
PS do Viomundo: O Portal Catarinas entrevistou tanto a professora Marlene quanto Ana Caroline. Leia aqui e aqui.