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[MILTON SANTOS] O tempo nas cidades

Este texto foi extraído a partir da transcrição da conferência do professor Milton Santos na mesa-redonda “O tempo na Filosofia e na História”, promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989.

A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001.


Milton Santos em frente ao prédio de Geografia/História na FFLCH-USP.

O texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar (espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós-graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da idéia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realização da História, de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.

A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se passa e eventualmente do vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.

O tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo convergem e divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.

Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação.

Nesse momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como seqüência – o transcurso – o tempo como raio de operações – o espaço – e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações, que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.

Na cidade atual, essa idéia de periodização é ainda presente; é presente nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que são também representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.

Ora, essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.

Esse momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Um sistema de cartas coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisão, permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.

Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e reapareceram agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.

Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço.

Essa temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível através desse trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do tempo, o que permite, por consegüinte, nesse espaço tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.

É esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam aos agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, criam-se condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.

Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.


Milton Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em 24 de junho de 2001.

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Encontro com acervos: Astrolábio!

O Museu do Ipiranga lançou hoje a série Encontro com Acervos, a qual tive a honra de fazer o vídeo de estreia, explicando o funcionamento de um instrumento astronômico: o astrolábio. Ficou curioso? Confiram o vídeo, que também conta com uma versão disponível com áudio descrição. Espero que curtam e divulguem o máximo que puderem.

No primeiro episódio da série audiovisual Encontro com Acervos, o historiador José Rogério Beier apresenta o astrolábio, este importante instrumento de medição que foi muito usado na navegação, e é um dos itens da coleção do Museu do Ipiranga que estará presente na mostra Territórios em Disputa, na reabertura em 2022.

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Sobre o fascismo, os neofascismos e Bolsonaro

por Henrique Soares Carneiro
publicado originalmente em seu perfil do Facebook em 26 set. 2018.

Precisamos Falar Sobre Fascismo

O fascismo é um fenômeno histórico e geográfico localizado. Nasceu com esse nome na Itália, na década de 1920, e levou Mussolini ao poder.

Na Alemanha, na mesma época, crescia o partido nazista. O golpe de Franco, na Espanha, em 1936, impôs um regime que levou o nome do ditador.

Após a derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, praticamente nenhum partido com importância e posições de poder reivindicou abertamente o fascismo e o nazismo.

Na América Latina dos anos de 1970, houve ditaduras militares brutais, mas nenhuma se assumia abertamente como de ideologia fascista. Mesmo Pinochet, talvez o pior de todas estes ditadores, não se dizia um fascista, porque aplicava o projeto neoliberal da escola de Chicago, e, em política econômica, é sabido que o nazi-fascismo foi intervencionista estatal em muitos setores, tendo Hitler chegado mesmo a nacionalizar o sistema bancário.

Ou seja, o fascismo estrito senso é algo bem diferente dos híbridos contemporâneos neofascistas. À exceção de neonazis abertos que, felizmente, ainda são ultraminoritários, ninguém está por aí com cartazes de Hitler ou Mussolini.

Isso quer dizer que não existe mais o fascismo?

Não, pelo contrário!

O que ocorreu foi uma adaptação dos neofascismos a novas identidades, mas o programa permanece o mesmo, e pode ser resumido em:

  1. Política de ódio e ameaça de extermínio dos adversários políticos, da esquerda em geral e dos movimentos sindicais e sociais.
  2. Defesa extremada do mercado e da propriedade privada contra qualquer apelo social de reforma ou diminuição de desigualdades.
  3. Escolha de grupos para serem objeto de campanhas de ódio e preconceito, estigmatizando setores sociais como bodes expiatórios.

O elemento imperialista e belicoso do fascismo europeu não se repete da mesma forma em países periféricos em que governos ditatoriais são expressões claramente fascistas, mas não deixam de existir. Vide as aventuras militares e invasões ocorridas de Suharto, na Indonésia, à Pinochet, no Chile, contra vizinhos.

Disse tudo isso para afirmar que o projeto atual da extrema-direita no Brasil unificado sob o deputado capitão, que conta com uma dezena de generais em seu staff, é sim de natureza fascista, em seu programa e em sua ameaça de violência.

A misoginia, a homofobia, o racismo, o horror à cultura, o anti-intelectualismo e o irracionalismo são marcas centrais desse híbrido ideológico pouco consistente e orgânico, mas não são o que define o seu programa econômico e político que consiste em aplicar o mais brutal plano antissocial pelos meios mais violentos, impiedosos e repressivos.

CARNEIRO Henrique SoaresHenrique Soares Carneiro é professor de História Moderna no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Pequena homenagem à professora Maria Thereza Schörer Petrone (1929-2018)

Ontem a noite recebi triste notícia dando conta do falecimento da professora Maria Thereza Schorer Petrone. Nascida em 1929, graduou-se em História na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP), em 1953, doutorando-se, também em História, pela mesma instituição onze anos mais tarde. Defendeu uma tese que seu orientador, Sérgio Buarque de Holanda, qualificou como “verdadeiramente pioneira”. O tema, explícito no subtítulo do trabalho, era a expansão e declínio da lavoura canavieira em São Paulo (1765-1851). Publicada em 1968, sua tese, até hoje, é uma das principais referências a todos que se dedicam ao estudo de um período e de uma atividade econômica que, até então, eram pouco estudados pelos pesquisadores da história paulista, o da lavoura canavieira durante a transição entre as economias mineradora e cafeeira.

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Logo após a defesa de sua tese, dedica-se ao estudo de outro tema importante da história paulista: o da economia tropeira ou tropeirismo. Como bem explicou Sérgio Buarque de Holanda, este era, na verdade, o tema de sua tese de doutoramento, no entanto, em razão de não ter tido acesso à documentação que pretendia analisar, acabou se voltando às questões relacionadas à lavoura canavieira em São Paulo.

Este seu novo estudo, também original, sobretudo em razão do acervo documental consultado, é uma monografia acerca da tributação e comércio de gado feito a partir da análise dos documentos particulares de um dos principais comerciantes envolvidos nesse tráfico no começo do século XIX: Antônio da Silva Prado, o Barão de Iguape. Como ela própria afirmava na introdução do livro, seu objetivo era estudar as iniciativas de um indivíduo frente à uma conjuntura favorável às atividades que escolheu – o comércio de muares e bovinos, bem como a arrecadação de impostos sobre os animais –, em um contexto de expansão da demanda por animais de corte e de carga. Seu esforço, como apontou Sérgio Buarque de Holanda, foi “exemplar”, e sua contribuição inestimável para os estudos de história econômica do Brasil e de São Paulo.

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O Barão de Iguape, disponível para leitura online disponível no site da coleção Brasiliana: http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/451/o-barao-de-iguape-um-empresario-da-epoca-da-independencia

Iris Kantor, professora do Departamento de História da FFLCH-USP, ao comentar o falecimento da professora Thereza Petrone, destacou que ela “fez parte de uma geração de historiadoras que não separava a história da geografia, e a geografia da economia”. Foi autora de outras obras também importantes, além das destacadas acima. Com importantes discussões nos temas da pequena propriedade, do campesinato e da imigração.

Por fim, gostaria apenas de dizer que muito mais do que referência obrigatória, os trabalhos da professora Maria Theresa Schorer Petrone lograram atingir o que acredito ser o principal objetivo de todo autor: transformaram-se em semente e frutificaram grandemente nas últimas cinco décadas. Suas reflexões, ponto de partida de muitos autores que se dedicam a esses temas (e outros abordados nas demais obras de sua autoria), fizeram avançar, e muito, o conhecimento acerca da história paulista e brasileira. Resta-nos apenas lamentar a morte da professora e agradecer por seus muitos anos de estudos, pesquisa e dedicação à História. De minha parte posso dizer que muito do que tenho pesquisado e produzido nos últimos anos deve-se, sem dúvida alguma, ao trabalho pioneiro de Petrone, a quem deixo nesse momento triste, um último MUITO OBRIGADO!

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Portal TCN: primeiras observações astronômicas da Capitania de São Paulo

AS PRIMEIRAS OBSERVAÇÕES ASTRONÔMICAS NA CAPITANIA DE SÃO PAULO

por José Rogério Beier

Publicado originalmente no portal Território, Ciência e Nação (MAST-RJ).

Se os séculos XVI e XVII foram marcados pela expansão marítima de alguns países europeus e a consequente conquista de novos territórios coloniais na África, Ásia e América, pode-se dizer que o século XVIII registra uma mudança desta “cultura de latitude”, ou expansão marítima, para uma “cultura de longitude”, ou expansão terrestre, como bem lembrou a historiadora e arquiteta urbanista Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (2004, p. 230). Ainda segundo essa autora, o papel desempenhado por padres jesuítas e engenheiros-militares foi fundamental para o processo de interiorização e formação do território da América portuguesa, no qual se devassou os sertões e se levantou as potencialidades econômicas e informações geográficas que garantiram melhor controle do território sob o domínio português e auxiliaram nas negociações dos tratados de limites com Espanha.

Para o historiador português, Jaime Cortesão, a vinda de padres jesuítas e engenheiros militares à América portuguesa ganhou impulso a partir da leitura que o primeiro geógrafo do rei da França, Guillaume Delisle, fez de sua dissertação perante a Academia Real das Ciências de Paris, em 1720. Intitulada Determination géografique de la situation et l’entendue des diferentes parties de la Terre, esta dissertação marcou a primeira tentativa de remodelar toda a carta da Terra, compilando em um só mapa as alterações de posição dos territórios obtidas a partir das observações das longitudes por meios astronômicos. As correções feitas por Delisle expunham a transferência de soberania operada pela cartografia portuguesa em relação ao vasto território espanhol situado a oeste de Tordesilhas (CORTESÃO, 2006, p.274-276).

Tão logo foi informado das conclusões de Delisle em Paris, d. João V convenceu-se de que era indispensável renovar a cartografia portuguesa através dos novos métodos, especialmente da cultura astronômica, a fim de conferir base científica à diplomacia portuguesa no intuito de “obviar as futuras alegações do governo espanhol, fundadas na situação do meridiano de Tordesilhas” (CORTESÃO, 2006, p. 277-280).

Assim, já em 1722 d. João V manda vir a Portugal dois padres jesuítas napolitanos especialistas em matemática, astronomia, geografia e cartografia: João Batista Carbone (1694-1750) e Domingos Capacci (1694-1736). A eles juntou-se Diogo Soares (1684-1748), também jesuíta, natural de Lisboa e professor da “aula de Esfera” no Real Colégio de Santo Antão[1]. Por sete anos, os padres aguardaram em Portugal pela aquisição da aparelhagem técnica e a indispensável aprendizagem dos novos métodos de medição astronômica. Finalmente, em 1729, o rei português envia os padres matemáticos ao Estado do Brasil, com a tarefa de “fazerem-se mapas das terras do dito Estado não só pela marinha, mas pelos sertões; […] e para esta diligência nomeei dois religiosos da Companhia de Jesus, peritos em matemáticas, que são Diogo Soares e Domingos Capacci, que mando na presente ocasião para o Rio de Janeiro” (GESTEIRA, 2012, p. 207-224).

Assim, não se incorre em erro ao afirmar que as primeiras observações astronômicas realizadas na capitania de São Paulo remontam a vinda dos padres matemáticos à América portuguesa para o levantamento de suas famosas Cartas da Costa do Brasil, atualmente mantidas no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa.

[1] “Aula” era o termo utilizado para representar as instituições e práticas educacionais no mundo português. (NEVES, 2000, p. 55-58).

Portal TCN_01

Figura 1: Uma das cartas da costa da América portuguesa elaboradas pelos padres Diogo Soares e Domingos Capacci, também conhecidos como padres matemáticos. Esta mapeia a costa da capitania de São Paulo desde Santos até a barra da Marambaia, no Rio de Janeiro, dando algum destaque à ocupação que já avançava pelo interior do continente, para além da antiga barreira que representava a Serra do Mar.

FONTE: SOARES, Diogo; CAPACCI, Domingos. Carta 9ª. da Costa do Brazil Ao Meridiano do Rio de Janeiro Dezde a Barra de Santos athe a da Marambaya. [c. 1738]. 1 carta ms. : color., desenho a nanquim; 18,7 x 31,5 cm. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa

Para o levantamento das coordenadas geográficas dos principais povoamentos e fortalezas, em especial o da longitude, a técnica empregada pelos padres matemáticos era aquela desenvolvida por Galileu Galilei no final do século XVI, baseada na observação dos eclipses dos satélites de júpiter. Tal técnica acabou sendo adotada por geógrafos, cartógrafos e topógrafos de todo o mundo para a medição da longitude em terra.

Vale lembrar que quase um século antes dos padres matemáticos, em 1640, o naturalista e cosmógrafo de origem germânica, George Marcgrave, já realizara observações dos eclipses dos satélites de Júpiter e levantamentos de longitude empregando essa mesma técnica no observatório astronômico instalado na casa do Conde Maurício de Nassau, no Recife. A precisão das cartas geográficas elaboradas por Marcgrave a partir desse método, só voltariam a encontrar par na América portuguesa no segundo quartel do século XVIII, justamente com a produção dos padres matemáticos (CINTRA; PEREIRA, 2014, v.1, p. 197-226).

Depois da vinda dos padres matemáticos, dezenas de engenheiros-militares foram enviados à América portuguesa, sobretudo, no âmbito das partidas de demarcações de limites entre as possessões americanas das Coroas Ibéricas decorrentes do Tratado de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777). Ainda assim, poucas foram as cartas geográficas elaboradas na escala da capitania entre a década de 1730 e a primeira metade da década de 1780. Muitos desses engenheiros trabalharam nas partidas de demarcações dos tratados de limite e, quando não estavam nas demarcações, acabavam elaborando cartas que diziam respeito a porções de terrenos ou cursos de rios relacionados às expedições de exploração que comandavam, geralmente, com o fim de mapear uma região.

Exemplos claros dessa atuação são os mapeamentos do sertão de Guarapuava, do Iguatemi, do Ivay, do Tibagi ou o mapeamento do curso para a navegação fluvial do rio Tietê. Será apenas com a chegada do capitão-general Bernardo José de Lorena, em 1788, que se estabelecerá uma divisão de engenheiros, matemáticos e astrônomos na Capitania de São Paulo, que atuarão firmemente na elaboração de uma série de novas cartas na escala da capitania, consideradas bastante precisas para a época.

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Manifesto da ANPUH-Brasil sobre a prisão de Lula

O Hum Historiador, blog de associado da ANPUH, repercute o manifesto da Associação dos Historiadores sobre a prisão de Lula. Abaixo segue a íntegra do manifesto tal como publicado no site da ANPUH-Brasil .

MANIFESTO DA ANPUH-BRASIL SOBRE A PRISÃO DE LULA
do site da ANPUH-Brasil – acesso em 6 de abril de 2018

A democracia brasileira tem sido, ao longo de nossa história, uma construção difícil. Anunciada nos discursos de rua e de cátedra e formalizada em parte de nossos textos constitucionais, sofreu contínuos ataques por parte de setores conservadores e autoritários. Inicialmente restrita à pequena parcela da população, cresceu como uma planta frágil que raramente conseguiu solo fértil para se consolidar. Ao longo de quase 200 anos de Independência e 130 anos de República, nossa história tem sido marcada por uma sucessão de golpes e quarteladas a ameaçarem o estado de direito, nos quais os regimes democráticos aparecem como meros intervalos entre um arbítrio e outro. A ausência de uma cultura cívica republicana e da aceitação da democracia como um valor universal têm nos levado a situações de imensa instabilidade, que por sua vez, abalam os já frágeis pilares de nossa cidadania.

Uma democracia se constrói por meio da livre competição eleitoral, onde há vencidos e vencedores. O custo da derrota deve ser menor que o do desrespeito às regras do jogo. Infelizmente, esse cálculo racional não foi bem equacionado por certos grupos, que indignados com mais uma vitória da oposição, partiram para o ataque contra as instituições.

A decretação em prazo recorde da prisão de Lula é a última expressão dos contínuos ataques que o regime instalado na Carta de 1988 estabeleceu. É por acreditarmos na preservação e consolidação da democracia, que nos solidarizamos hoje com Lula, vítima do arbítrio daqueles que não toleram o livre jogo do mercado político.

A ANPUH, entidade que agrega historiadores de várias regiões do país, não poderia estar indiferente a esta difícil conjuntura pela qual passa o país. Na defesa das instituições, da liberdade de expressão, do estado de direito e do equilíbrio entre os poderes, nos manifestamos pela liberdade de Lula.

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Apenas a elite de São Paulo e do país tem acesso à USP

por Nadine Nascimento
publicado originalmente em Brasil de Fato | 04.jan.2016

Hugo Nicolau, aluno de geografia, elaborou estudo sobre composição racial da instituição. Pesquisa demonstra que negros são maioria apenas entre trabalhadores terceirizados na universidade.

USP

Divulgação/USP

“A Universidade de São Paulo é branca, seus alunos e professores são brancos, os negros são minoria na USP. Os negros só são maioria entre os funcionários terceirizados da limpeza, segurança, alimentação, com condições de trabalho precárias, atraso de salários e outras ilegalidades denunciadas inúmeras vezes pelos funcionários e pelo Sindicato dos Trabalhadores da USP”, diz estudo que retrata a distribuição espacial de negros na Universidade de São Paulo.

Onde estão os negros na USP?” publicado no blog “Desigualdades Espaciais”, é um conjunto de mapas que apresentam a distribuição racial na instituição. Feito pelo estudante de geografia Hugo Nicolau, o estudo constatou que o número de negros na Universidade de São Paulo é ainda muito desproporcional em relação a sociedade em geral.

Através da análise de dados do vestibular da Fuvest, da prefeitura de São Paulo e do IBGE, Nicolau distribuiu por cor a comunidade da USP no mapa da universidade.

Em 2010, 77% dos alunos que ingressaram na universidade eram brancos, 10% pardos, 10% asiáticos e apenas 2% eram pretos.

“Em todos os cursos, com exceção da geografia, tem mais asiáticos do que negros. Os asiáticos correspondem a 1% da população de São Paulo, os negros são 34%, e na USP a quantidade de negros, pardos e pretos, se equivale a de asiáticos”, diz Nicolau.

Ainda que todas as universidades federais do país e algumas estaduais tenham implementado o sistema de cotas, a USP reluta em implementar o programa que reserva vagas para negros e conta apenas com uma bonificação na nota final.

O Inclusp e o Pasusp dão um acréscimo de 15% na nota da Fuvest para alunos do ensino público e 5% a mais se o estudante estiver incluído “no grupo PPI” – raça ou cor preta, parda ou indígena.

Para Nicolau, “um bônus de 5% no resultado final do vestibular é insignificante, pois não é suficiente para igualar o nível de quem teve um ensino fundamental e médio deficientes com quem sempre estudou nas melhores escolas”.

“A minha conclusão é que essas políticas de inclusão são só para mostrar que existem, mas elas não funcionam. A relutância em implantar o sistema de cotas está no fato de ser uma universidade elitista, assim, apenas a elite de São Paulo e do país tem acesso à USP”, conclui o estudante.

Ainda segundo o estudo, dos dez cursos mais concorridos do vestibular da instituição, 6 deles não possuem nenhum negro. Para tentar mudar esse quadro, grupos como Ocupação Negra e a Frente Pró-Cotas cobram da universidade um posicionamento positivo em relação ao sistema de cotas.

O Ocupação Negra, criado em 2015, realiza intervenções durante as aulas e a ideia, segundo Marcelo Moreira, é “primeiro fazer a denúncia do racismo institucionalizado e cobrar de maneira forte da instituição, dos professores e dos alunos de que a gente precisa das cotas raciais como uma ferramenta de ação afirmativa para modificar essa situação. Queremos cotas raciais, e quando falamos isso, a gente quer o ingresso de no mínimo 35% de alunos negros na USP.”

Moreira critica o fato da universidade ter se tornado “um centro de poder e um privilégio para poucos”. Para ele, “desde de sua criação, a USP era destinada para uma elite branca, para que esta tenha a dominância intelectual do nosso país. Nesses 80 anos isso só cristalizou. Há uma forte resistência dessa elite para que haja a manutenção desses privilégios”.

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História da Cartografia paulista é destaque em edição da revista Pesquisa Fapesp

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Ed. 235 – Set. 2015

Peço licença aos leitores do blog para divulgar uma matéria publicada na edição de setembro da revista Pesquisa Fapesp destacando alguns aspectos de minha dissertação de mestrado recém-defendida no Programa de Pós-Graduação de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Trata-se de pesquisa realizada entre os anos de 2012-2015, na qual dediquei-me a investigar a História de São Paulo, na primeira metade do século XIX, a partir de um mapa elaborado por um engenheiro-militar português, sob a encomenda da Assembleia Legislativa da Província de São Paulo.

A seguir reproduzo na íntegra da matéria publicada na revista. A quem possa interessar, disponibilizo também link para o download da versão PDF.

AS PRIMEIRAS FORMAS DA PROVÍNCIA
por Carlos Fioravanti e Rodrigo de Oliveira Andrade
Pesquisa Fapesp, ed. 235, Set. 2015

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Mappa Chorographico da Provincia de São Paulo, de 1841: consultado por administradores públicos, intelectuais e viajantes. FONTE: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

O oeste paulista aparece como “sertão desconhecido”, sem nenhuma menção às populações indígenas, mas a região próxima ao litoral está bastante detalhada no Mappa Chorographico da Provincia de São Paulo, a primeira carta impressa a representar toda a província de São Paulo e a se tornar um instrumento de gestão do território. Impressas em Paris em 1841, as primeiras cópias – cerca de 100 – chegaram no ano seguinte às mãos dos deputados da Assembleia Legislativa, que desde 1835 ansiavam por mapas para administrar a província, após conquistarem relativa autonomia tributária com as reformas constitucionais decorrentes da abdicação de dom Pedro I, em 1831.

O engenheiro militar Daniel Pedro Müller foi o escolhido para fazer o mapa. “Em 1835, Müller era o engenheiro militar mais experiente e preparado na província de São Paulo para a execução daquela tarefa”, avalia José Rogério Beier, historiador que estuda o mapa desde 2012 na Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Iris Kantor. Müller baseou-se em notas pessoais e em observações de outros engenheiros a serviço da Coroa para fazer sua própria representação gráfica da província paulista, que naquela época incluía parte do atual estado do Paraná.

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Mapa equivocado: atribuído a Müller, mas sem confirmação de autoria, e o povoado de Pinheiros deve ser a atual cidade de Valinhos. FONTE: Wikimedia Commons.

Nascido em Portugal, filho de pais alemães, Müller cursou a Real Academia de Marinha de Portugal e se mudou para o Brasil em 1802, aos 17 anos, como ajudante de ordens do governador da capitania. Como engenheiro, fez várias obras, como a estrada do Piques, atual rua da Consolação, e o chafariz do atual largo da Memória, no Anhangabaú. Como militar, Müller participou da campanha contra uma ameaça de ataque dos espanhóis em 1819 e da guerra da Cisplatina, contra a Argentina, em 1825. Como marechal de campo reformado, voltou a São Paulo. Em 1835 a recém-instituída Assembleia Legislativa fez a ele uma encomenda dupla: organizar as estatísticas e preparar um mapa da província.

“A encomenda de um mapa e de um levantamento populacional e econômico pela Assembleia Legislativa sugere uma preocupação da elite política com a ocupação do território, o desenvolvimento da infraestrutura viária e de comunicação com o porto de Santos e com a capacidade de expansão da ocupação do território no sentido oeste”, comenta Iris. “O levantamento e a carta desenhada por Pedro Müller permitiram aos governantes paulistas consolidar um projeto de autonomia e de afirmação dos interesses econômicos a partir de 1835”, conclui Beier.

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Obelisco no largo da Memória, centro de São Paulo: uma das obras de Müller. FONTE: Wikimedia Commons.

O mapa, que media 102,4 por 151,6 centímetros, por falta de uma tipografia adequada no Brasil, foi enviado para Paris, então um centro mundial de produção cartográfica. As cópias “circularam não só entre órgãos da administração provincial e da corte, mas também entre academias de ciências, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, intelectuais e viajantes, como sir Richard Francis Burton”, observou Beier em um artigo publicado em 2014 na revista Tempos Históricos.

Em meio às pesquisas, ele encontrou um mapa atribuído a Müller no Arquivo Público do Estado de São Paulo, indicando um caminho novo a ser aberto para um povoado chamado Pinheiros, e o examinou com Élzio José da Silva, coordenador da seção de cartografia do arquivo. “Não encontramos nenhuma evidência de que tenha sido feito por Müller. Não há assinatura e a caligrafia não corresponde à do marechal de campo reformado”, diz Beier. “Mais ainda, o mapa não descreve um caminho para o atual bairro de Pinheiros, em São Paulo, mas sim para uma povoação próxima à então vila de São Carlos, atual Campinas. O povoado de Pinheiros, representado no mapa, deve ser a atual cidade de Valinhos, que à época era conhecida como Pouso dos Pinheiros.” Müller tinha uma casa próxima ao rio Pinheiros. Em 1842, endividado e angustiado, ele se suicidou, afogando-se no rio.

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Professores da FFLCH-USP lançam manifesto em defesa da democracia

É preciso propor alternativas para combater os efeitos da crise mundial e não alimentar a instabilidade política por meio de ameaças ao voto popular.
USP Imagens

Editoriais e manifestações de políticos de oposição procuram ampliar o escopo de um golpe na Democracia brasileira. É preciso estar alerta e pronto a evitar ameaças à vontade popular, expressa nas últimas eleições presidenciais. O caos que uma ação dessa ordem traria pode afetar radicalmente os rumos do país. Por isso, é uma irresponsabilidade social e política inflar um movimento que pode causar profundas rupturas na sociedade brasileira, com consequências econômicas, sociais, culturais e políticas que podem ser desastrosas.

 Nos últimos anos, partidos progressistas foram eleitos em vários países da América Latina. Ainda que muitos deles propusessem uma pauta moderada frente ao quadro de desigualdade social presente no mundo atual, conseguiram aplicar reformas que as diminuíram. Além disso, implantaram programas sociais que aumentaram a capacidade de emitir opinião de camadas sociais que não tinham como aferir sua situação no mundo diante da condição de miséria, desinformação e fome que viviam.

 De modo articulado, assistiu-se um roteiro que seguiu os dirigentes progressistas de países da América do Sul, com agressões duras contra a Democracia. Governos eleitos na Venezuela, no Equador, na Bolívia, na Argentina e no Paraguai enfrentaram momentos difíceis que resultaram em países polarizados.

 Esse modo de operar chegou ao Brasil, mas com uma agravante: um ódio descabido ao partido que aplicou as mudanças sociais no país. Como a história só se repete como farsa e como a política possui especificidades nacionais, causa muita preocupação o acirramento de tensões que, de algum modo, estavam acomodadas. No caso brasileiro, a irracionalidade trazida pelo ódio já tem resultado em agressões verbais e até físicas de cidadãos que simplesmente ostentam roupas de cor vermelha em situações as mais inusitadas. Isso não pode continuar.

 É preciso aprimorar o uso do potencial energético, dos recursos naturais e da capacidade produtiva no campo e nas cidades brasileiras para melhorar a vida da população por meio da criação de novas relações sociais e com o ambiente. O Brasil possui enormes vantagens nessa corrida tecnológica dada suas condições naturais, que garantem reservas de biodiversidade, petróleo, água, solo, sol e vento. Esses atributos devem ser usados de modo inteligente para alçar o país a um novo patamar de produção e distribuição de riqueza em vez de manter-se como simples provedor de produtos primários.

 É preciso reafirmar que quaisquer tentativas de retirar a Presidente Dilma Rousseff, eleita democraticamente, antes do fim de seu mandato, pode levar o país a uma situação insustentável do ponto de vista social e político. O Brasil não precisa disso, muito menos seu povo, que enfrenta as duras consequências de uma crise econômica e financeira que afeta o mundo hodierno.

 O momento exige responsabilidade e discernimento para propor alternativas sérias de combater os efeitos da crise mundial e não alimentar a instabilidade política por meio de ameaças ao voto popular.

1) Wagner Costa Ribeiro – Professor – Departamento de Geografia – USP
2) Flavio Aguiar – Professor – USP
3) Adrián Pablo Fanjul – Professor – Departamento de Letras Modernas – USP
4) Marcello Modesto – Professor – Departamento de Linguística – USP
5) Ligia Chiappini Moraes Leite – Professora – USP
6) Fabio Cesar Alves- Professor – DLCV – USP
7) Gloria Alves – Professora – Departamento de Geografia – USP
8) Rita Chaves – Professora – DLCV/FFLCH – USP
9) Marcos Silva – Professor – Departamento de História – USP
10) Luis Roncari – Professor – DLCV – USP
11) Ricardo Musse – Professor – DS – USP
12) Olga Ferreira Coelho Sansone – Departamento de Linguística – USP
13) Homero Santiago – Departamento de Filosofia – USP
14) Ieda Maria Alves – DLCV – USP
15) Tercio Redondo – DLM – USP
16) João Adolfo Hansen – DLCV- FFLCH- USP
17) Luís César Oliva – Professor USP
18) Neide Maia González – FFLCH – USP
19) Heloísa Pezza Cintrão DLM/FFLCH/USP
20) Kabengele Munanga Dpto.Antropologia – USP
21) Beatriz Raposo de Medeiros – FFLCH – USP
22) Cilaine Alves Cunha – Literatura Brasileira – FFLCH – USP
23) Renato da Silva Queiroz – FFLCH-USP
24) Rosangela Sarteschi – DLCV – USP
25) Sheila Vieira de Camargo Grillo – DLCV – USP
26) Marta Inez Medeiros Marques – DG – USP
27) Sylvia Bassetto – DH – USP
28) Beatriz Daruj Gil – DLCV – USP
29) Gustavo Venturi – DS – USP
30) Paula Marcelino – professora – Departamento de Sociologia – USP
31) María Zulma M. Kulikowski – DLM – USP
32) Elisabetta Santoro – DLM – USP
33) Vima Lia de Rossi Martin – DLCV – USP
34) Pablo Schwartz – DLCV – USP
35) Fabio Contel – DG – USP
36) Léa Francesconi, professora, DG-FFLCH-USP
37) Valeria De Marco – DLM/FFLCH-USP
38) Adma Muhana – FFLCH-DLCV-USP
39) José Pereira de Queiroz Neto – DG – USP
40) Manoel Luiz Gonçalves Corrêa – DLCV – FFLCH – USP
41) Waldir Beividas – DL- USP
42) Rita de Cássia Ariza da Cruz – Departamento de Geografia – FFLCH/USP
43) Ivan Marques – DLCV / FFLCH – USP
44) Mónica Arroyo – DG – USP
45) Homero Freitas de Andrade – DLO – FFLCH – USP
46) Maria Helena Pereira Toledo Machado – FFLCH – USP
47) André Martin – DG – USP
48) Iris Kantor – DH – USP
49) Fernanda Padovesi Fonseca – DG – USP

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A USP e o SISU

por Célia Regina da Silva, especialmente para o Hum Historiador.

Sabe, eu fico pensando….

Lá se vão quase dez anos (2006) que eu entrei no curso de História da USP via vestibular da FUVEST.

Ainda me lembro das caras, em sua grande maioria, imberbes e chocadas de quando eu, com esta minha aparência (um pouco mais jovem e mais magra) de militante do Sendero Luminoso, pisei em praticamente todos os locais dentro da universidade. Mesmo em um lugar como o alojamento do CEPEUSP, embaixo do velódromo, onde fiquei morando durante intermináveis seis meses com mais umas vinte meninas (de acordo com a COSEAS todas pobres, porém de acordo com meu tirocínio NENHUMA negra), eu era olhada de maneira estranha, curiosa. Eu sempre notei isso, porque percepção sempre foi uma coisa que tive de sobra, mas eu achava divertido aquilo: Os cochichos, os olhares fortuitos, risinhos…

No fundo eu entendia o quanto era desconcertante para um garoto (a) de classe média, criado no último andar de um prédio ou em um sobrado de classe média pintado de amarelo, ter que assistir às solenes aulas do DH que duravam quatro terríveis horas, dependendo da disciplina, ao do lado de uma pessoa que tinha a cara da moça que lavava a louça que sujavam em casa, mas que nem sequer sabiam o nome dela.  Admito que isso me dava um certo prazer…

Mas o que me mantinha segura, longe dos ataques racistas “sérios” era o fato de eu estar ali por ter conseguido transpor as barreiras colocadas pelos mesmos. Por eu ter jogado o jogo deles e ter ganhado, tendo entrado em uma posição na carreira melhor do que a de muitos não mestiços e não pobres dali. Como diria aquele tiozinho do futebol que nunca morre: “Eles tinham que me engolir”. E devo dizer que o faziam num eterno e, porque não dizer, doloroso esforço de demostrar um falso sentimento de igualdade.

Todavia, em todas as ocasiões, mesmo quando eu abria a boca para polemizar em alguma aula (admito, coisa não rara), eu estava respaldada pela grandiosidade de um deus perfeito ao qual eu tinha conseguido agradar corajosamente. Tinha recitado para ele normas gramaticais impecáveis, nomes de rios que eu nunca tinha visto e versado sobre a importância do vulcanismo para um país do qual eu só conhecia a Biork. Um deus chamado FUVEST, que ninguém tinha a pachorra de contestar. Eu estava a salvo, tinha ganhado o jogo jogando com as regras deles. Bom pra mim que podia sapatear à vontade. E assim eu fiz.

Agora, eu fico pensando que depois que estas 1.489 vagas destinadas ao SISU, forem efetivamente distribuídas na USP, os alunos que fizerem jus a este direito, especialmente aqueles que tiverem uma aparência “desfavorável” como a minha, vão ter que ir às aulas, ao bandejão, ao CEPEUSP, à biblioteca, às  mesinhas da história e ao Facebook armados até os dentes para poderem se defender de todo tipo de observação injuriosa que poderá ser feita contra a sua pessoa e intelecto. O preconceito não será mais cuidadosamente disfarçado como era no meu tempo, pois agora essa gente chã, que não passou pelo crivo da aprovação do deus mais implacável da segregação universitária está sujeita não só ao risinho insolente, aos comentários insidiosos e perversos, porém abafados: Sem este respaldo estas pessoas podem ser atacadas frontalmente, de forma agressiva, o tempo todo.

Não se iludam os ativistas achando que isso foi uma vitória, isso foi só o início de um combate sangrento do qual já não se pode e nem se deve fugir. As coisas vão piorar e vão ficar feias de se ver. As máscaras da polidez vão, em algum momento, cair e os “alunos SISU” (não duvido que fiquem conhecidos por tal alcunha) que não estiverem preparados para lutar serão dizimados. Estejam cientes, senhores e senhoras que praguejam contra a injustiça que grassa na universidade, de que eles precisarão de apoio, não porque são inferiores ou menores do que o resto da corja, mas porque estão ousando jogar com outras regras que não foram aprovadas por quem sempre deu e ainda dá as cartas na sociedade. Eles terão que travar luta constante diante de olhares de ódio ou condescendência (sendo esta última pior, em minha opinião).

Sinto muito orgulho de todos que vão para a arena lutar o bom combate e fazer espirrar muita sujeira na cara branca e machista dessa universidade. Tenho plena consciência que as batalhas que travei nunca se igualarão a estas.  Mas o que sinto mesmo é alívio por não estar entre eles, uma vez que diante de uma situação destas, eu, dificilmente, sairia viva ou sem matar alguém.

E que venha o SISU!


Célia Regina da Silva é bacharel e licenciada em História pela Universidade de São Paulo.

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