Arquivo do mês: junho 2012

A crise, a direita, o futebol e o racismo

O Hum Historiador abre espaço para a colaboração de mais um amigo que gentilmente enviou seu texto para ser publicado no blog. Desta vez é o historiador, músico e compositor Daniel Eduardo Mafra, parceiro dos tempos da graduação desde 2006.

No texto a seguir, após ser provocado por uma entrevista concedida pelo professor Osvaldo Coggiola a revista Carta Capital, Mafra faz uma análise sobre o “retorno” da extrema direita no cenário mundial percebido, de maneira geral, através dos inúmeros casos explícitos de racismo e xenofobia que diariamente são noticiados pelo mundo e já não são mais capazes de causar espanto ou reação em cada um de nós. De maneira mais específica, Mafra se concentra nos ataques racistas feito contra jogadores de futebol durante a Eurocopa 2012, nomeadamente, ao jogador italiano Mario Balottelli.

Mais do que simplesmente fazer uma breve análise do caso mais recente, Mafra aponta para nossa culpa, enquanto cidadãos, do atual estado que o racismo atingiu em nossas sociedades e da posição e poder que essa direita ultraconservadora passou ter em muitos países ocidentais.

Divirtam-se!


A crise, a direita, o futebol e o racismo
por Daniel Eduardo Mafra

Se a História se repete, sendo a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, aproximamo-nos, pois, de um destes pontos de inflexão do eflúvio histórico: a volta da extrema direita (cabe aqui o pleonasmo “A volta dos que não foram”) aos holofotes do cenário político mundial, através dos apelos racistas das classes mais abastadas da sociedade europeia – esta sempre tida como a vanguarda do pensamento ocidental – das políticas xenófobas de certos partidos políticos ascendentes no cenário europeu, e que ecoam pelo mundo afora, como vemos nas políticas higienistas do Governo do Estado de São Paulo, árvore mais que enraizada no solo da Revolução Burguesa no Brasil, por exemplo.

E pelo discurso daqueles que interpretam o atual momento político-social de nosso mundo do avesso, nada mais sugestivo que ressuscitar o bom e velho Marx pra dizer que a História parece se repetir agora como farsa. Ou uma piada de mau gosto, para ainda permanecermos polidos. Ainda…

Todos os historiadores (inclusive eu) bradam em alto e bom som que a História não se repete, que os anacronismos são demasiado significantes para analogias quanto aos acontecimentos de outrora para com o presente ou o porvir histórico. Não obstante, o que passamos a identificar cada vez mais e, sobretudo, desde que a atual crise europeia colocou em xeque os alicerces da falácia da Comunidade Europeia e da Social Democracia, é uma volta ao reacionarismo, ao racismo, à xenofobia.

Tal qual o processo histórico que se desenvolveu no início do século passado, quando o laissez faire escancarou as portas da primeira crise capitalista global, afundando as economias liberais, e acelerando a ascensão de grupos de extrema direita ao poder, sendo o nazismo e o fascismo somente dois dos tantos que se espalharam pelo globo, semelhante processo se nos apresenta agora. Tal qual uma piada de mau gosto, basta uma crise, cousa tão evidente e previsível dentro da estrutura sócio metabólica do capital, para que os grupelhos de extrema direita, xenófobos e racistas, ganhem força nos ecos dos discursos do passado, em defesa da família, dos bons costumes, da nação, de Deus, e do Diabo, se for preciso.

E há aqui um importante fato a ser considerado: a direita não mais precisa estar no poder, basta fazer-se presente sob a égide do mal para fazer o bem (conforme suas vicissitudes, naturalmente), ou vice-versa, não importa. Seu discurso ultranacionalista encontra morada na ineficiência das propostas frente à crise. É palha na fogueira.

E eis que este fogaréu, que de nada tem a ver com o nosso São João, deu as caras no evento mais pomposo do futebol internacional: a Eurocopa, que ocorre na Polônia e Ucrânia, países do leste europeu “onde há movimentos neonazistas de grande envergadura”, conforme disse Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da USP, em entrevista à Carta Maior.

Discordâncias à parte, não há como não refletir sobre o processo de transformação do “progresso cultural da sociedade burguesa em regressão cultural”, visto que boa parte dos integrantes destes novos partidos de extrema-direita é formada por pessoas com alto grau de instrução. E que futebol e política tem a ver um com o outro? Tudo, visto que “tudo se mistura com política, e… por que tudo se faz para que ela se misture. Por exemplo: a execução dos hinos nacionais antes dos jogos”.

Dentro desta arena transcendental e de movimento pendular, ora no esporte, ora na política, os holofotes deste espetáculo da barbárie apontam para os jogadores negros das diversas seleções, alvo da intolerância e da gratuita estupidez humana, tendo como pano de fundo a conivência das autoridades, ora políticas, ora esportivas, e seus slogans superficiais e politicamente corretos. Faz-se com que capitães das respectivas seleções leiam um texto raso sobre o papel do esporte quanto à união dos povos, o ‘diga não ao racismo’ e mais uma meia dúzia de blábláblás e pronto! Papel cumprido! O juiz apita e tem-se início a partida. Minutos depois, a mágica da tolerância se desfaz pela contemplação do voo solo de uma banana em direção a um jogador negro… Nada se faz, pois o papel da autoridade era tal qual o de perfumar estrume diante da gravidade dos acontecimentos. Há um abismo de distância entre um discurso político e um ato de represália aos ofensores. É uma forma de se institucionalizar, mesmo que de forma latente, o racismo no futebol.

Reprodução de charge do jornal Gazzetta dello Sport que compara Balottelli, jogador da seleção italiana, ao King Kong.

Aliás, cabe aqui importante reflexão: recentemente um importante estudo, publicado na Associated Press no último dia 24/06, revelou que o foco dos cientistas que estudam comportamento e, sobretudo, pensamento animal, está em QUÊ eles pensam e não SE eles pensam. “Babuínos podem distinguir entre palavras escritas e meros rabiscos. Macacos parecem ser capazes de multiplicar e podem compreender instantaneamente uma gratificação, muito mais do que uma criança humana pode. Planejam. Fazem guerra e paz. Mostram empatia. Compartilham“. Ou seja, é bastante provável que se um macaco estivesse entre os torcedores que arremessaram a dita banana ao atleta em campo, ele a comeria, ao invés de desperdiçá-la com um ato tão intragável. É bastante provável que um babuíno seja tão inteligente (ou mais) do que aquele sujeito supostamente superior, em seu ato impensado (ou pensado), mecânico, boçal.

Diferentemente de Coggiola, que atribui tais atos exclusivamente ao conflito de classes, ou a derivações do conflito de classes, penso que o racismo é causa e consequência, ao mesmo tempo. Não há como negar o conflito de classes e a exclusão das populações negras, no Brasil, por exemplo. É um racismo consequente da luta de classes. Mas há ainda algo mais. A ortodoxia marxista esbarra nas causas ideológicas e eugênicas do século XIX que persistem no imaginário coletivo das elites dominantes, detentoras do monopólio da informação, produtoras daquilo que se convencionou chamar ‘opinião pública’ (como se o termo presumisse a indelével afirmação de que tal opinião emana do povo).

Especificamente, direcionando a pauta para a realidade brasileira, faz-se evidente que o racismo é institucionalizado de forma velada. Seja pelo monopólio da violência exercido pelo estado contra as populações negras, seja pelas burlescas anedotas, supostamente despretensiosas, proferidas num botequim qualquer. Ainda em tempo, as medidas pontuais tomadas pelo governo federal, desde a ascensão do PT ao poder, é uma correção para a distorção do curso histórico de nosso país. Ainda assim, tal fato trouxe à tona uma série de ‘pensadores‘ contrários à medida e ao recente parecer do STF quanto à matéria.

Mais do que tudo, o racismo está presente no silêncio de cada um de nós, ao não nos chocarmos com os fatos escancarados, que nos esbofeteiam com os chicotes dos açoites de outrora. Ao não nos posicionarmos contra, necessariamente estamos nos posicionando a favor. Não há meio termo. Não há como ficar em cima do muro. Não vejo outra forma de terminar este devaneio senão citando o Cássio, no Júlio César, de Shakespeare: “Há momentos em que os homens são donos de seu fado. Não é dos astros, caro Brutus, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos“.

Prólogo

Ainda em tempo, e para meu deleite, na tarde de ontem a seleção da Itália venceu a seleção alemã por 2×1. Não que eu esteja torcendo por uma ou outra, mas o destaque da partida foi o italiano Mario Barwuah Balotelli, de origem ganesa. Um dos alvos frequentes de torcedores racistas, Balotelli rompeu as fronteiras do futebol. Arrancou intrépido com a bola e, em direção ao gol, chutou-a forte, tal qual um Zumbi contemporâneo-metafórico-esportivo, balançando as redes da opressão. Parou e tirou a camisa, num ato colérico e contido, paradoxalmente. Depois, cerrou o punho e elevou-o até o alto, e trouxe a nós, por efêmero momento, uma carta de alforria.


Daniel Mafra é músico, compositor, falso poeta e proto-escritor. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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O Golpe Legal no Paraguai

Há três anos, o amigo Alberto Schneider publica uma coluna mensal na Revista Real – editada em Londres, em português – destinada à comunidade brasileira na Europa. Nesta semana, ele acaba de soltar sua coluna que trata sobre o “golge legal” ocorrido no Paraguai na última sexta-feira. Conversando com ele ao nos encontrarmos no Seminário Mindlin 2012, combinamos que o texto além de ser publicado na dita revista, também seria publicado por aqui no Hum Historiador. Assim, é com muito prazer que disponibilizo, especialmente aos leitores do blog, o texto preparado pelo Alberto para a Revista Real. Enjoy it!

O GOLPE LEGAL NO PARAGUAI
por Alberto Luiz Schneider

Paraguai

Entre os dias 21 e 22 de junho o Senado do Paraguai propôs, julgou e condenou o presidente Fernando Lugo por “mau desempenho das funções”, num ritmo jurídico de pouco mais de 30 horas. A dez meses do fim do mandato, Lugo  teve 90 minutos para se defender. Encenação digna dos tempos de Alfredo Stroessner.

Trata-se de um clássico golpe constitucional, perpetrado pelo parlamento – dominado pela velha oligarquia paraguaia – que aproveitou a fragilidade política do presidente, acusando-o  de “negligência e inaptidão” no enfrentamento entre camponeses e policiais em Curuguaty, no último dia 15, quando morreram 17 pessoas.  O placar foi de 39 votos a 4, o que demonstra que o governo perdera inteiramente a sua base de apoio parlamentar. O deputado Salym Buzarouis, do Partido Liberal Radical Autêntico, até a pouco aliado de Lugo, negou ter havido uma ruptura da ordem democrática:  “Aqui não há nenhum golpe, foi tudo 100% constitucional. Se um julgamento político é golpe de Estado, então os parlamentares [do Brasil] em 1992 já fizeram golpe de Estado”, referindo-se ao impeachment do então presidente Fernando Collor.

A questão legal

A constituição do Paraguai de fato prevê o instrumento de interrupção do mandato desde que haja apoio de 2/3 do Congresso.  Os conservadores brasileiros – que acusam Lugo de “populista e errático”, segundo a definição de um  grande jornal de São Paulo – se apressam em justificar o golpe, argumentando a legalidade da ação. Do ponto de vista do edifício democrático ocidental – uma construção de mais de 200 anos, que remonta ao “espírito das leis”, de Montesquieu – não é possível operar um julgamento político dessa natureza, senão num prazo que se mede em meses, onde não só o presidente, mas a sociedade possa se pronunciar. Qualquer mandatário detentor de votos, em julgamento político, não pode ser condenado em rito sumário, não em respeito a pessoa do presidente, mas ao voto popular, fonte última da legitimidade políticas nas democracias modernas. Alegar a legalidade do impeachment relâmpago é um expediente retórico para justificar um processo sumário. A lei, muitas vezes é ilegítima. Pensemos em desembargadores brasileiros, cujos salários correspondem a 3 ou 4 vezes o salário do presidente da República ou dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Esses salários incorporam benefícios legalmente conquistados, mas certamente ilegítimos. Poderia se usar exemplos mais radicais: a escravidão, até maio de 1888, era legal, afrontando os mais elementares princípios civilizatórios (daquela época). Trata-se apenas de um exemplo para dizer que a letra da lei eventualmente fere o princípio da lei. O fuzilamento político do presidente Lugo pode ter amparo na lei, o que é suficiente para torná-lo legítimo.

A questão política

Fernando Lugo caiu não apenas pela baixa cultura democrática da sociedade e das instituições do Paraguai, pelo caráter oligárquico do parlamento daquele país, pela fragilidade da opinião pública e dos movimentos sociais. Também contribui a sua derrocada a perda de apoio popular e a crise econômica. Em 2010, a economia, animada pelo boom do agronegócio, crescia a 15% ao ano, em 2012, projeta-se uma retração de 1,5%. Lugo cometeu erros, como a tentativa de trazer ao governo os “colorados” – um dos agrupamentos mais atrasados e obscurantistas da América Latina, que apoiaram a canhestra ditadura de Alfredo Stroessner. Movimento que levou ao afastamento dos liberais, que o apoiavam desde a eleição. Problemas pessoais, como a paternidade de filhos gerados quando ainda era Bispo contribuíram para fragilizá-los politicamente. Fragilidades que não autorizam o açodamento da oligarquia paraguaia, que levaram a cabo um golpe constitucional, sob a benção da classe política, dos sojicultores brasileiros, da Suprema Corte e da Igreja Católica.

Em outras palavras, Lugo caiu, também, pela correlação de forças. A democracia e a construção de sociedades mais avançadas – socialmente mais justas, institucionalmente mais elaboradas, economicamente mais prósperas – não se dá apenas na esfera do Estado, mas no chão social. Ainda em outras palavras: os progressistas paraguaios precisam ganhar musculatura política para enfrentar a velha tradição “colorada”, partido que esteve no poder sem interrupções desde 1947 até a vitória de Lugo. Grande parte desse longo tempo, sob odiosa ditadura militar.

O “golpe legal” não se deu apesar do país estar a poucos meses da eleição, mas justamente em função dela. Dominar o aparelho estatal, muitíssimo mais que no Brasil ou na Argentina, é fundamental para “fazer” o próximo presidente.

Brasil

A política externa brasileira deve condenar politicamente a ilegitimidade do governo de Federico Franco, o vice-presidente eleito na chapa de Fernando Lugo em 2008 – e agora o presidente da República. O Itamarati – no âmbito da Unasul e do Mercosul, mais do que da OEA – deve defender a convocação de eleições gerais. Mas não deve – como não vai – apelar para o bloqueio econômico ou territorial do Paraguai, um país insular, que poderia ser facilmente asfixiado economicamente. Essa opção lembraria a arrogância americana e consolidaria uma imagem imperial do Brasil, além de prejudicar ainda mais um dos países mais pobres da região. No entanto, todos os acordos de cooperação devem ser suspensos, o embaixador brasileiro, ora recolhido, não deve voltar a Assunção; Brasília não deve promover, nem receber visitas oficiais em qualquer escalão; o Paraguai não deve participar fóruns políticos na região, até que o país constitua um governo legítimo.

ENTREVISTA DE FERNANDO LUGO AO BRASIL DE FATO

Para complementar o texto de Alberto, cabe também adicionar essa entrevista exclusiva concedida por Fernando Lugo a Revista Brasil de Fato, um mês antes de sua deposição.

Nesta entrevista, dentre outras coisas, ele fala explica, entre outras coisas, o porquê optou por não alterar a Constituição paraguaia, fala dos limites institucionais aos quais está atrelado e insiste que o mais importante é que esse processo de mudanças no Paraguai, após ter derrotado 61 anos de domínio do Partido Colorado, não termine.

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Seminário Mindlin 2012

Nesta última semana estive envolvido em atividades para ajudar a organização de um seminário e exposição que serão realizados na Biblioteca Mário de Andrade nos próximos dias 26, 27 e 28 de Junho.

Depois de muito trabalho, finalmente terminamos de organizar todo o material e fico feliz de poder divulgar os eventos por aqui. Espero poder encontrar algum de vocês por lá nos próximos dias.

Um mundo sobre papel: livros, gravuras
e mapas na era dos descobrimentos.


A principal biblioteca pública da cidade de São Paulo, a Biblioteca Mário de Andrade, sediará a partir de amanhã o Seminário Mindlin 2012.  Localizada no centro histórico da capital paulista, está instalada em um edifício que é considerado um dos marcos arquitetônicos do estilo art déco na cidade.

A Biblioteca Mário de Andrade fica localizada na Rua da Consolação, 94 – São Paulo/SP. Abaixo segue a programação do seminário, que foi disponibilizada no site da BRASILIANA USP.

PROGRAMAÇÃO DO SEMINÁRIO

26 DE JUNHO
18:00 – 18:30 — Abertura do Seminário
Peter Claes
Cônsul Geral da BélgicaPedro Puntoni
Diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Universidade de São PauloMaria Arminda do Nascimento Arruda
Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo
18:30 – 19:30 — Conferência de abertura
Eddy Stols (Universidade Católica de Lovaina)A produção cultural flamenga nos séculos XVI-XVIII: sua mundialização e a viabilidade dos Países Baixos meridionais
27 DE JUNHO
14:00 – 16:00Antigos e novos suportes da cultura impressa
Cristina Antunes (USP)Priscila Farias (USP)Maria Clara Paixão de Souza (USP)Coordenação: Márcia Almada (UFMG)
16:30 – 19:00Novas naturezas e novas humanidades: a redescoberta da Antiguidade
Dante Martins Teixeira (UFRJ)Thomas Haddad (USP)Luciana Villas Boas (UFRJ)Sérgio Alcides Pereira do Amaral (UFMG)Coordenação: Júnia Furtado (UFMG)
28 DE JUNHO
14:00 – 15:30Cultura visual e transfigurações: leituras ibero-americanas
Camila Santiago (UFRB)Flávia TatschValerie Herremans (Museu de Belas Artes, Antuérpia)Coordenação: Iris Kantor (USP)
16:00 – 18:00A Antuérpia na economia do mundo: a rota dos impressores e livros
Fernando Novais (USP)Marisa Midori (USP)Diogo Ramada Curto (Universidade Nova de Lisboa)Coordenação: Pedro Puntoni (USP)
18:30 – 19:00 — EncerramentoFabrica do mundo: desafios museológicos contemporâneos
Ana Maria Belluzzo (USP)Iris Kockelbergh (Museu Plantin-Moeretus, Antuérpia)Coordenação: René Lommez (UFMG)

Para obter o CADERNO DE RESUMOS do seminário, visite o site especial da Brasiliana.

EXPOSIÇÃO

A Biblioteca Mário de Andrade abriga uma rica coleção de obras raras, versando principalmente sobre o Brasil e os países europeus. Este acervo, organizado por Rubens Borba de Moraes a partir de 1943, conta com nove incunábulos e milhares de obras dos séculos XVI ao XVIII.

Para contribuir com o Seminário, a Biblioteca realiza uma pequena mostra de livros impressos neste período, por membros das famílias Plantin & Craesbbeck. Foram selecionados alguns títulos importantes, vindos principalmente da Coleção Félix Pacheco, comprada em 1936 e que reunia o maior acervo privado de obras raras e de Brasiliana do Brasil, em seu tempo. Abaixo segue uma relação das obras que serão exibidas.

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Impeachment no Paraguai: um golpe de Estado

Reproduzo aqui notícia do jornal ULTIMAHORA.COM que traz o polêmico documento considerado uma sentença antecipada contra o presidente Fernando Lugo do Paraguai.

Divulgado no jornal ULTIMAHORA.COM

Como revela o jornal, o documento revela uma presumida sentença de condenação antecipada e foi assinado pelo presidente do Senado, Jorge Oviedo Matto.

Neste sábado a noite, a presidente Dilma Rousseff condenou o impeachment de Fernando Lugo e convocou o embaixador brasileiro para consultas. O Itamaraty soltou uma nota onde diz que “o governo brasileiro condena o rito sumário de destituição do mandatário do Paraguai”. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, não foram garantidas o amplo direito a defesa e Lugo foi destituído em apenas 30 horas.

Já a Argentina, decidiu retirar seu embaixador do Paraguai após o GOLPE DE ESTADO. Em anúncio feito neste sábado pelo Ministério das Relações Exteriores da Argentina:

“Diante dos graves acontecimentos institucionais ocorridos na República do Paraguai, que culminaram na destituição do presidente constitucional Fernando Lugo e na ruptura da ordem democrática, o governo argentino retira imediatamente seu embaixador de Assunção”.

A Venezuela não apenas retira seu embaixador do Paraguai como suspende o envio de petróleo para o país, conforme notícia divulgada no UOL. Chávez anunciou neste domingo (24/06) que suspenderá o envio de petróleo como represália ao impeachment de Fernando Lugo.

“Retiramos o embaixador, não reconhecemos esse governo (de Federico Franco), e também vamos retirar o envio de petróleo”, afirmou Chávez num discurso realizado durante um ato militar transmitido em cadeia obrigatória de rádio e televisão.

Em contrapartida, o presidente Barack Obama, dos Estados Unidos da América, seguindo uma longa tradição de apoio a golpistas, foi o primeiro a reconhecer o novo governo paraguaio ainda na noite da sexta-feira (22/06). Em nota oficial, o Departamento de Estado diz que “reconhece o voto do senado paraguaio pelo impeachment do presidente Lugo” e “pede para que todos os paraguaios ajam pacificamente, com calma e responsabilidade, dentro do espírito dos princípios democráticos” da nação, conforme noticiou o Opera Mundi.

Em São Paulo está se organizando um ato de solidariedade ao povo paraguaio na próxima segunda-feira, dia 25 de junho, as 14 horas, em frente ao Consulado do Paraguai em São Paulo.

Abaixo segue o panfleto que já circula nas redes sociais com maiores informações. Ajudem a divulgar. Leve cartaz e faixa para demonstrar sua indignação contra mais um Golpe de Estado na América Latina.

SI TOCAM A UNO, NOS TOCAN A TODOS.

NO AL GOLPE DE ESTADO EN PARAGUAY. TODO APOYO A FERNANDO LUGO!!!

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A escravidão através dos olhos de uma parisiense em viagem pelo Brasil

Memórias, diários e relatos de viagens são fontes importantes que frequentemente são utilizadas por historiadores em suas pesquisas. Após a chegada da Corte portuguesa no Brasil, em 1808, e a consequente abertura dos portos às nações amigas, muitos viajantes vieram ao país e registraram suas impressões sobre a sociedade brasileira. Temas como a riqueza da fauna e da flora, do tamanho do país, a vida social nas principais cidades e no campo e, em especial, o tema da escravidão foram recorrentes  na literatura produzida por estes viajantes quando estes retornaram a seus países de origem. Um desses relatos de viagem, o qual gostaria de compartilhar com vocês, é o de uma francesa que, em viagem ao Brasil com o fim de enriquecer em 10 anos e voltar a França, fez um retrato bastante interessante da escravidão no Brasil em meados do século XIX.

Minha ideia ao publicar esta breve resenha crítica do livro aqui no Hum Historiador é destacar, não apenas o olhar estrangeiro (europeu) sobre a escravidão no Brasil, mas também o olhar feminino. Em pleno século XIX, ainda eram poucas as mulheres que viajavam desacompanhadas de seus maridos da Europa para a América e, além disso, raríssimas eram também as escritoras que, muitas vezes, se escondiam atrás de pseudônimos masculinos para conseguirem publicar. Adèle Toussaint-Samson foi uma dessas mulheres que, não só viajou, mas escreveu. Seu registro é bastante importante e há pesquisadores, como Miriam Lifchitz Moreira Leite, que se dedicam a estudar as Mulheres Viajantes no Século XIX, como objeto de estudo.

Aqui vocês encontrarão apenas uma resenha crítica que preparei logo após a leitura deste livro em 2010, para destacar a visão de uma viajante sobre a escravidão no Brasil e a importância desta verdadeira instituição na construção da nação brasileira. Espero que gostem e que seja útil, de alguma forma.

1. Adèle Toussaint-Samson e seu livro: Uma parisiense no Brasil

Adéle Toussaint-Samson nasceu em Paris no ano de 1826. Filha de Joseph-Isidore Samson, ator, professor de teatro e autor de peças de grande sucesso em Paris, teve seus primeiros textos publicados na França em 1843, aos 17 anos de idade. Por volta dos vinte anos, casou-se com um dançarino de teatro chamado Jules Toussaint que, apesar de ser filho de franceses, havia nascido no Brasil.

Segundo Maria Ines Turazzi, historiadora que prefacia a segunda edição brasileira do livro de Mme. Samson, Adèle e Jules teriam vindo ao Brasil por volta dos anos de 1849 e 1850, tendo deixando a França em um período conturbado da história daquele país, já que haviam acabado de passar pela revolução de 1848 e por uma grave epidemia de cólera, em 1849, que fez com que o público do teatro, do qual o casal se sustentava, rareasse. O principal objetivo do casal ao vir para o Brasil era ganhar a vida e fazer fortuna, tal como um tio que eles tinham por aqui e que já tinha ganhado bastante dinheiro. Segundo a própria autora, logo no início do seu livro, “em dez anos, diziam-nos, devíamos estar ricos[1].

Em pouco tempo Jules e Adèle se estabeleceram na capital do Império. Ele como professor de dança e ela como professora de francês e italiano. Em 1856, Jules é contratado como professor de dança da família imperial, sendo tão bem remunerado que chega a comprar um amplo lote de terra entre as praias do Flamengo e do Catete, no Rio. Essa nova posição de Jules, além de prestígio, permitia a família Toussaint-Samson ter acesso à corte imperial. Segundo Turazzi, foi através desse acesso que Adèle travou conhecimento com a Condessa de Barral, aia das princesas Isabel e Leopoldina, e a senhorita Templier, institutrice francesa encarregada de completar a educação das princesas[2].

A data em que Adèle Toussaint-Samson deixou o Brasil não é bem certa. Maria Ines Turazzi nos diz que essa dúvida deve-se ao fato de Jules haver solicitado autorização ao imperador D. Pedro II de residir na França no ano de 1864, porém, seu nome e serviços continuaram sendo promovidos pelo Almanaque Laemmert até o ano de 1869. Tentando dirimir essa dúvida, Turazzi recorre a uma autobiografia de Isidore-Samson, pai de Adèle, organizada e lançada pela filha, em Paris, anos depois de seu retorno. Ali ela relata que ela e Jules teriam voltado a residir em Paris em 1870, o que poderia dar cabo a essa dúvida.

Embora Adèle tenha relatado em Uma parisiense no Brasil ter vivido doze anos no Brasil, sabemos pelas pesquisas de Turazzi que esse período em que ela viveu por aqui não se deu em anos sucessivos, mas sim, que ela teria ido e vindo, pelo menos umas cinco vezes, do Brasil a França, entre os anos de 1850 e 1870[3]. Tal fato é importante mencionar, pois embora ela tenha vivido doze anos no país, sua experiência se estende por um período maior, de duas décadas. Tal extensão permite que a autora teça considerações mais agudas quanto à situação política e social do Brasil, uma vez que entre o período vivido por ela na capital do Império e o período em que ela escreve suas memórias, muitas transformações, tanto políticas quanto sociais haviam ocorrido no país, inclusive uma guerra de grandes proporções com ampla participação da população afro-descendente. Se levarmos em conta que Adèle levou ainda alguns anos após o seu retorno definitivo a França, em 1870, para escrever suas memórias, concluiremos que sua perspectiva histórica se amplia para além dos vinte anos que mencionamos acima.

Uma parisiense no Brasil foi publicado em 1883 na forma de folhetim pelo jornal Le Figaro (França) e, no mesmo ano, no Jornal do Commercio (Brasil). Nesse mesmo ano, também ganhou uma publicação em forma de livro, tanto na França como no Brasil. Um dos fatos que talvez tenha levado Adèle a publicar o livro por essa época teria sido a morte de seu marido Jules, que segundo a hipótese de Turazzi, teria servido de estímulo para que a autora desse publicidade àquelas memórias dos tempos vividos com o Jules no Brasil. Contudo, um fato importante para motivar a publicação do livro, certamente, foi a segunda viagem do imperador D. Pedro II a Europa, no ano de 1877. Turazzi nos explica que, como essa viagem fora amplamente divulgada pelos jornais franceses da época, a presença do imperador teria estimulado os leitores europeus a saberem mais notícias sobre o Brasil, o que seria uma “oportunidade que ela [Adèle] não podia perder para a publicação de suas memórias[4].

Adèle morre em Paris, em 12 de outubro de 1911, aos 85 anos de idade, vítima de um trágico acidente, quando as brasas de sua lareira atearam fogo a sua roupa e acabaram queimando-a viva.

Depois da primeira edição em português, de 1883, o livro somente voltou a ser publicado no país 120 anos depois, saindo pela editora Capivara em 2003. Tal fato talvez justifique a pouca quantidade de trabalhos acadêmicos encontrados tanto tendo o texto de Mme. Samson como objeto central de estudo quanto como fonte para outros temas, uma vez que até o lançamento desta nova edição, o livro de 1883 era item raro mesmo nas melhores bibliotecas.

Segundo o levantamento de Maria Ines Turazzi, no Brasil apenas a professora Miriam L. Moreira Leite e a professora Zahidé Lupinacci Muzart, ambas com trabalhos ligados ao estudo da história das mulheres no Brasil no século XIX, vinham se dedicando ao estudo dessa memória de Adèle Toussaint-Samson quando do lançamento da edição de 2003[5].

2. A estrutura do livro

A nova edição de Uma parisiense no Brasil contém, além do prefácio de Maria Ines Turazzi, do qual viemos falando até o momento, um Prólogo que havia sido cortado da primeira edição, de 1883. Nesse prólogo a autora narra a verdadeira aventura que foi conseguir a publicação de seu livro de memórias em Paris. Desta parte do livro vale a pena mencionar a verdadeira obsessão da autora em fazer seus leitores crer que tudo aquilo que ela viria a narrar, dali por diante, era a mais pura expressão da verdade, fatos e eventos que haviam sido testemunhados por ela enquanto vivera no Brasil e transcritos no livro sem nenhuma alteração. Tal preocupação revela-nos que Adèle estava em linha com os demais autores que escreviam relatos de viagem durante o século XIX, já que essa era uma preocupação recorrente em todos eles.

Além do prólogo, o livro foi estruturado em quatro partes e um apêndice, onde a autora traduz algumas poesias de autores brasileiros para o público francês. Na primeira parte, intitulada Vida de bordo, a autora descreve como se deu a viagem a bordo do clíper Normandia, que os transportara de Le Havre, na França, ao Rio de Janeiro.

Já a segunda e terceira parte do livro, intituladas respectivamente de Rio de Janeiro e A fazenda, são as mais importantes para captarmos o tema proposto para este trabalho, que é a visão que a autora tinha sobre a escravidão no Brasil e sua importância no processo de formação da nação brasileira.

No capítulo intitulado Rio de Janeiro, a autora descreve como foi sua vida na cidade, as paisagens e a vida cotidiana que levou, fortemente marcada, a cada momento, pela presença dos negros que estavam em todos os cantos da cidade e, sem os quais, esta não funcionava.

Já em A Fazenda [não, não estamos falando do Reality Show], Adèle nos mostra como funcionava uma unidade produtiva no Brasil. Hospedada em uma fazenda com 120 escravos, a autora narra como os negros trabalhavam, como eram as senzalas, as punições, festas, religiosidade, enfim, a vida cotidiana que levavam no duro trabalho das lavouras brasileiras.

A quarta e última parte do livro, intitulada Entre as gentes, traz as observações de Mme. Samson sobre os brasileiros. Seu temperamento, aparência e gostos. Junto com essas observações, vieram também os preconceituosos juízos de valor, tão característicos nos viajantes europeus do século XIX e que acabavam por adjetivar o brasileiro como indolente, feio e desonesto, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Foi especialmente sobre esta parte do livro que se debruçaram as pesquisadoras Miriam Moreira Leite e Zahidé Muzart com o propósito de captarem as observações de Adèle sobre as mulheres brasileiras do século XIX. É nesse capítulo também, que a autora descreve como se deu sua despedida do Brasil e o estranhamento que vivenciou ao retornar à França, fazendo observações muito relevantes para quem deseja comparar as diferentes estruturas econômicas, políticas e sociais entre centro e periferia do capitalismo, o que não é o objetivo deste trabalho.

3. A escravidão vista através dos olhos de uma parisiense em viagem pelo Brasil

Adèle Toussaint-Samson nos deixa claro, em várias passagens de seu livro, o horror e repulsa que sentia ao testemunhar a escravidão no Brasil. Relata-nos, por exemplo, a que ponto sua revolta chegara com uma vizinha espanhola que, diariamente, torturava seus escravos, ao dizer-nos que a primeira palavra que aprendera em português fora “carrasco” apenas para poder gritar a esta vizinha no momento em que ela espancava os seus negros. Outra passagem relevante e que destacamos abaixo, é uma em que ela narra o horror que sentia pela escravidão ao testemunhar os leilões de escravos:

“Esse espetáculo da escravidão foi, durante os primeiros anos de minha estada no Brasil, um dos suplícios de minha vida, e não contribuiu pouco para que pensasse morrer de nostalgia. A cada instante minha alma revoltava-se ou sangrava quando eu passava diante de um daqueles leilãos [leilões] em que pobres negros, em cima de uma mesa, eram leiloados e examinados nos dentes e nas pernas como cavalos ou mulas; quando via o lance ser coberto e uma jovem negra ser entregue ao fazendeiro que a reservava ao seu serviço íntimo, enquanto seu negrinho era algumas vezes vendido a um outro senhor. Diante de todas essas cenas de barbárie, meu coração indignava-se, cóleras generosas inflamavam-se em mim e eu era obrigada a conter-me para não gritar a todos aqueles homens que faziam comércio de carne humana: ‘carrascos!’ como gritara a minha vizinha espanhola.[6]

Apesar dessa repulsa pela escravidão, desse sentimento de horror diante dessa barbárie inominável e que chegava a lhe causar uma sensação de nostalgia de seu país, também é possível ver nos relatos de Mme. Samson ela fazer uso de escravos sem o menor pudor, como na passagem que destacamos a seguir, onde ela narrava como a epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de Janeiro havia afetado também seu núcleo familiar:

“Naquele dia, a negra que havíamos alugado caiu doente também e tivemos de devolvê-la ao seu senhor[7].”

Ou também nessa outra passagem, onde chega a cair no ridículo ao descrever os malefícios causados pelos dentes dos negros:

“O próprio dente dos negros é muitas vezes perigoso.Vi mais de um exemplo, no Brasil, de senhores europeus (…) que, ao bater em seus negros, haviam sido mordidos por eles, ou se haviam chocado contra seus dentes, e dos quais foi preciso amputar o braço[8]”.

Essa contradição que flagramos nas memórias de Mme. Samson não são exclusivas de uma viajante que passava pelo país, mas é característica de um Brasil que ainda vivia o regime escravista na segunda metade do século XIX, enquanto as nações consideradas mais avançadas da Europa, ou mesmo as recém independentes da América, já haviam deixado-o para trás, adotando o trabalho assalariado.

É possível flagrarmos sentimentos semelhantes aos de Adèle, especialmente após a década de 70 do século XIX, em políticos liberais brasileiros que, muitas vezes, mesmo advogando pela causa abolicionista, mantinham plantéis de escravos em suas fazendas. Algumas explicações para essa contradição, isto é, essa repulsa pela escravidão, mas a falta de ações que culminassem, efetivamente, na abolição desta, a própria autora daria mais adiante em seu livro, quando passa a inocentar o imperador D. Pedro II de manter a escravidão no país e a justificar, apesar do humanismo deste imperador, o regime de escravidão como necessário pela absoluta falta de mão de obra para as lavouras exportadoras brasileiras se a escravidão fosse abolida no Brasil, já que segundo se acreditava, apenas os negros eram capazes de fazer e suportar as duras condições de trabalho na lavoura.

“Não se deve acusar o imperador do Brasil por este estado de coisas [brutalidade dos castigos aos escravos na fazenda]. Ele é, ao contrário, cheio de humanidade, e seus escravos são tratados com muita brandura; mas, ao subir ao trono, encontrara esses usos estabelecidos, e não podia em um dia mudar os costumes do país; precisava fechar os olhos ao tráfico de negros, pois apenas eles eram capazes de suportar o trabalho de cultura sob aquele sol de fogo.[9]

Como dissemos, esse trecho revela uma visão comum da época, a de que a escravidão era um mal necessário, já que nem brasileiros nem imigrantes suportariam as condições de trabalho na agricultura de exportação:

“Haviam sido feito muitos esforços para trazer colonos de todos os países para substituir lentamente os negros; mas os franceses mal resistiam alguns meses; os ingleses, que pretendiam continuar seu regime de gim, logo morriam congestionados; os chineses, raça preguiçosa e deteriorada, não davam nenhum bom resultado (…) A única raça própria à cultura, no Brasil, é sem nenhuma dúvida a raça indígena. Mas, perseguida como foi, rejeitando a sujeitar-se, (…) não se espera poder domá-la tão cedo. Quanto à raça brasileira, mistura de sangue europeu, americano e africana, tem toda a indolência crioula, é fraca, abastardada, muito inteligente e não menos orgulhosa. É evidente que é ao comércio com os negros que se deve em parte a deterioração desta raça.[10]

Mais adiante ainda, ela segue justificando a razão pela qual a escravidão, apesar de brutal, era necessária no Brasil, chegando ao argumento central de sua exposição, que era aquele mesmo da elite governante do país, não importando se fossem conservadores ou liberais:

“Que fazer então? Se a escravidão fosse repentinamente abolida, o país estaria arruinado. (…) A raça brasileira não poderia suportar rudes labores; além disso, despreza todo trabalho manual. Não há brasileiro que jamais consinta em servir; todos querem ser senhores. Portanto, se a escravidão houvesse sido abolida bruscamente, a cultura teria parado: seria a fome a instalar-se. Era preciso preparar lentamente o país e os espíritos para essa grande revolução. Foi o que fez D. Pedro II; e quando, segundo ele, havia chegado a hora, declarou livre todo o filho de escravo a nascer dali em diante.[11]

Dominava, não apenas nos estrangeiros, mas também nessa elite governante e, mesmo nos homens e mulheres livres da época, a idéia de que sem a escravidão o Brasil não existiria. Não haveria quem trabalhasse nas culturas, que era responsável pela quase totalidade da economia brasileira. Mais ainda. Pior do que o medo de o Brasil cair na barbárie pela abolição da escravidão, consentida pela elite governante, era o medo de uma revolução dos negros que conquistasse essa abolição da escravatura à mão armada, tal como ocorrera em São Domingos, no Haiti. Adèle Toussaint-Samson nos deixa uma passagem onde revela claramente esse sentimento que ficou conhecido por “haitianismo” e que, desde a declaração da independência, assombrava a elite governante e justificava a permanência do escravismo no Brasil. Era da opinião da elite nessa época que um Brasil sem escravidão e, portanto, sem mão-de-obra para a lavoura, e ainda por cima com negros votando e sendo votados seria simplesmente ingovernável; máxima representação da barbárie.

“No entanto, este grande número de negros livres é um grande ponto escuro no horizonte brasileiro: seu número já ultrapassa o dos brancos. Seria de temer, talvez, que, quando se houverem contado, tirem uma terrível desforra e o futuro vingue o passado Esperemos, porém, que o Brasil não tenha o seu São Domingos.[12]

Até mesmo para os liberais brasileiros, os ideais da revolução francesa eram perfeitos, mas teriam que se adaptar a realidade do escravismo no Brasil, condição sem a qual não existiria o país.

 4. Considerações finais

Viemos tentando mostrar neste trabalho, como a percepção que uma estrangeira teve do Brasil ao viver no país por doze anos na segunda metade do século XIX, conseguiu captar a importância do papel desempenhado pelos escravos no processo de formação da nação brasileira. Mesmo através das memórias de uma viajante, foi possível perceber o papel central desempenhado pelos escravos na economia e na sociedade brasileira. Papel tão importante que era impossível a todos daquela época imaginar até mesmo a própria existência do país, não fosse através do sistema escravista. Por mais que essa percepção de Adèle e da elite governante brasileira sobre quem deveria ser a mão-de-obra das lavouras fosse equivocada, uma vez que cheia de preconceitos contra brasileiros, chineses e, até mesmo, europeus, ela nos revela a razão pela qual a escravidão persistiu no Brasil desde a sua independência até a abolição, em 1888. Não apenas porque a atividade comercial do tráfico de escravos era lucrativa, em si, até uma determinada época, mas também porque as próprias pessoas que viviam e governavam o país não conseguiam imaginar outra forma tão lucrativa de explorar o trabalho nas lavouras brasileiras. Não conseguiam sequer imaginar que europeus, asiáticos ou mesmo brasileiros assalariados pudessem trabalhar nas lavouras mantendo os níveis de produtividade e lucratividade dos escravos e, por isso, iam postergando o fim da escravidão enquanto temiam por uma revolução negra, a medida que cada vez mais escravos iam ganhando a liberdade com o tempo. Eis o que captou Mme. Samson em suas memórias e que nesse exíguo espaço busquei apontar.


[1] TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, 2003, pp. 53.

[2] TURAZZI, Op. Cit., pp. 21.

[3] TURAZZI, Op. Cit., pp. 22-23.

[4] TURAZZI, Op. Cit., pp. 27.

[5] Ibidem, pp. 38.

[6] TOUSSAINT-SAMSON, Op.Cit., pp. 97-98.

[7] Ibidem, pp. 94-95.

[8] Ibidem, pp. 100-102.

[9] TOUSSAINT-SAMSON, Op. Cit., pp. 99.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem, pp. 100-102.

[12] Ibidem, pp. 102.

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Erundina será a vice-prefeita de Haddad

Foto: Paulo Pinto/Divulgação

Em evento realizado nesta última sexta-feira, a ex-prefeita Luiza Erundina foi oficialmente anunciada candidata a vice-prefeita de Fernando Haddad em chapa conjunta PT-PSB para as eleições municipais de São Paulo, em 2012.

Em vídeo divulgado pela TV Estadão, Erundina fala em uma candidatura viável e na possibilidade de termos em São Paulo mais um governo democrático popular como foram os governos dela mesmo (1989-1993) e também o de  Marta Suplicy (2001-2005).

Haddad, ao falar de sua companheira de chapa, lembra que, quando prefeita, Erundina foi responsável por compor uma das mais brilhantes equipes que já participaram do governo municipal, em referência a Paulo Freire (Secretário da Educação), Dalmo Dalari (Secretário dos Negócios Jurídicos) e Paulo Singer (Secretário de Planejamento).

Erundina fala também da alegria em compor a chapa com Fernando Haddad e agradece por, após ter sido indicada por seu partido, sido aceita para compor a chapa com Haddad, prometendo ser fiel a seu compromisso no que chamou de tarefa histórica, de ganhar as eleições em São Paulo.

Como bem lembrou Humberto Borges no blog de Luiz Nassif, Erundina fez excelente governo em São Paulo “priorizando a saúde (entregou 6 novos hospitais ao município, além dos postos de saúde) a educação (revolucionou com Paulo Freire secretário, merenda e valorização dos alunos e dos professores) e os transportes (os ônibus recebiam por kilometragem e então estavam sempre passando pelos pontos, diminuindo o tempo de espera e a lotação do veículo), além da construção de moradias (com grande incentivo ao sistema de mutirão)”.

Ainda lembrando o texto de Borges, Erundina tem uma imagem muito parecida com a de Lula, estrela máxima do PT. “Nascida numa cidadezinha do interior da Paraiba, de família numerosa e pobre, lutou bastante para vencer. Só que tinha uma diferença muito importante para o povo, que era um “handcap” para Erundina, e que a duras penas Lula conseguiu superar perante o preconceito popular: Erundina apesar de todas as dificuldades, estudou e se formou. Virou professora universitária”.

Antônio Abujamra, em seu excelente Provocações, relembra que, em uma cidade que esteve nas mãos do Ademarismo, Janismo e Malufismo, só um prefeito foi condenado pela justiça a devolver dinheiro aos cofres públicos, não por corrupção, mas por desrespeito a constituição. O prefeito era, na verdade, uma mulher. Uma migrante nordestina que saiu do poder mais pobre do que entrou, que teve seus únicos bens penhorados (um carro velho e um apartamento de 80m) e que, somente com a ajuda de amigos, conseguiu pagar a dívida 21 anos depois. Um de seus acusadores, arrependido, disse que o tempo havia mostrado que ele estava errado. Essa prefeita era ninguém menos do que Luiza Erundina.

Eu já votaria no Haddad por considerar a melhor via para impedir as nefastas intenções de José Serra em ampliar ainda mais o poder de seu partido aqui no Tucanistão. Agora, com a entrada de Erundina na candidatura de Haddad,  entro oficialmente em campanha.

PROVOCAÇÕES com Luiza Erundina:

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Total apoio ao Coletivo Feminista Marias Baderna

Desde a criação deste blog, tenho buscado me posicionar sempre contra o machismo, seja aquele existente dentro de cada um de nós, seja o existente na sociedade. Não por acaso, o segundo post publicado por aqui foi intitulado O MACHISTA DENTRO DE NÓS (06/12/2011) e, logo na sequência, retornei ao assunto com um post para divulgar o documentário italiano O CORPO DAS MULHERES (19/12/2011). Além disso, algum tempo depois fiz o post sobre O DIA INTERNACIONAL DA MULHER (08/03/2012) e mantenho um link permanente para o Escreva Lola Escreva, blog da professora Lola Aronovich.

Depois de muito tempo sem voltar ao assunto, ontem, enquanto navegava nas redes sociais, deparei-me com uma nota de repúdio divulgada pelo Coletivo Feminista Marias Baderna da Faculdade de Letras da USP, sobre publicações machistas de um estudante de engenharia da POLI-USP, chamado José Oswaldo.

Como não poderia deixar de ser, tão logo terminei de ler a nota dei meu total apoio ao Coletivo e enviei uma mensagem solicitando autorização para divulgá-la por aqui no HH. O grupo foi super solicito e prontamente autorizou a divulgação da nota que, sem mais delongas, reproduzo abaixo.

Nota de repúdio do Coletivo Feminista Marias baderna da Letras-USP sobre as publicações machistas do estudante José Oswaldo.

“Mas eu não fui machista!”

Quem determina a opressão é o oprimido.

Segundo o dicionário Michaelis, machismo é “um comportamento de quem não admite a igualdade de direitos para o homem e a mulher”. No campo político, definir o machismo exige mais complexidade. Para nós, o machismo é uma forma de opressão e exploração e chamamos de opressão toda conduta ou ação utilizada para beneficiar um determinado grupo em relação a outro. A opressão à mulher se expressa de várias formas: na piada que ridiculariza as mulheres por sua condição de mulher: “dirige mal, só podia mesmo ser mulher”; na diferença salarial entre homens e mulheres: hoje, em nosso país, uma mulher ganha até 30% menos que um homem; na agressão física, verbal ou psicológica: no Brasil, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas.

Infelizmente, a USP não está imune dessa sociedade machista, por isso seguimos vendo dentro da universidade casos e mais casos de machismo, o mais recente foi aquele com qual nos deparamos na madrugada de quarta-feira, 06 de junho. O politécnico José Oswaldo, publicou uma montagem em sua página do Facebook com duas fotos: uma foto nossa, de mulheres integrantes do Coletivo Feminista da Letras, Marias Baderna, e outra com duas mulheres, conhecidas como “As coelhinhas da Playboy” e ele. A frase da montagem é “Ei, coletivo feminista FFLCH-USP, gostei de vocês. Mas prefiro as minhas”. Vimos a público, por meio desta nota, manifestar nosso repúdio a essa ação machista que expõe mulheres do coletivo,  veiculando sua imagem com uma intenção claramente provocativa.

Para limpar terreno, não estamos falando de um estudante que desconhece as mulheres da foto, que desconhece o terreno onde pisa. José Oswaldo é um integrante reconhecido de um grupo de estudantes conservador da USP que, há algum tempo, atua em unissom com a reitoria da universidade. Sua ação machista não foi tão inconsciente assim, sequer foi apenas uma ação individual, já que o machismo se apoia num conjunto falsas ideias para se sustentar. Sabemos que Zé Oswaldo não está sozinho e que muito outros compartilham de seus ideais, muito outros acharam espirituoso da parte dele tamanha sagacidade na montagem da foto.

Não bastasse a foto, o estudante, publica um texto, depois que muitas mulheres se manifestaram, indignadas. No texto ele afirma: “Ao fazer esse banner no Facebook que faz uma analogia as feministas da FFLCH-USP e entre as coelhinhas da Playboy, a minha intenção era fazer uma crítica ao atual movimento feminista, que só valoriza e leva em consideração um estilo de mulher, a teoricamente “consciente”, excluindo e menosprezando outros modelos de comportamento existentes.”. Em primeiro lugar, quem disse ao José Oswaldo que as “coelhinhas da playboy” não são, teoricamente, conscientes? Foi a ideologia machista que ensinou isso a ele. Ideologia que objetifica as mulheres, que nos separa em grupos; as conscientes, com um modelo comportamental e as, belas, que têm outro. Quem, senão os machistas, separam as mulheres segundo seu comportamento social? Se o estudante defende que foi alguma feminista que disse isso, que nos mostre onde! Certamente não ira encontrar – o feminismo é para todas as mulheres, não somente algumas. Lutamos pela libertação de todas, independente do estereotipo que nos seja imposto.

“Do rio, que tudo arrasta, se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem” (Brecht).

No mesmo texto, o politécnico afirma que sua intenção foi criticar o modelo “autoritário” com o qual, nós, feministas, tratamos os machistas. Vejamos que é alvo de opressão constante, dentro da universidade: leilão de calouras. “Miss bixete”. Simulação de sexo oral nos trotes. Cartazes de festas com mulheres em posições eróticas, como se fossem parte do cardápio, junto com a cerveja, os destilados etc. Expulsão da moradia estudantil e/ou perda de bolsas em caso de gravidez. Ausência de creches e um longo etc. Quem são as vitimas dessas situações? Mulheres. Quem, em geral, promove essas situações? Homens. E por que eles acham que podem fazer isso com as mulheres? Porque o machismo ensina. O movimento feminista, por lutar contra tudo isso, por lutar para que homens e mulheres sejam iguais, é considerado autoritário.

No fim de seu texto, José Oswaldo reivindica a liberdade de expressão como direito conquistado a duras penas. A luta hoje na universidade de São Paulo, é uma luta pela liberdade de expressão, pois aqueles que se expressam contra a reitoria de Rodas são calados com processos, intimações e até prisões. As feministas da USP estão, diferentemente de José Oswaldo, ao lado dessa luta, luta pelo fim dos processos contra estudantes, pela universidade mais aberta à população e por mais qualidade de ensino e, é por lutar por isso que muitas de nós somos vitimas de retaliação. No entanto, se o que o estudante nos pede é liberdade para ser machista, de nossa parte, não terá! O machismo, o racismo e lesbofobia/homofobia não têm espaço na universidade que todas nós lutamos para construir.

Por isso, exigimos a retirada imediata da foto da página do estudante, que sequer tinha autorização das mulheres expostas para publicá-la, além disso, exigimos retratação pública, e não um texto cheio de justificativas e teorizações sobre como a publicação não é machista. Não cabe ao opressor essa decisão. As mulheres disseram categoricamente: é machismo. Que a resposta seja um constrangido pedido de desculpa e reconhecimento do erro.

Nenhuma atitude machista ficará sem resposta na USP!

Assinam esta nota:

  • Coletivo Feminista da Letras Marias Baderna
  • Frente Feminista da USP
  • DCE livre da USP
  • CAELL
  • CEUPES
  • CALC
  • Amor CRUSP
  • ANEL
  • Mulheres em Luta
  • Juntas!
  • Marcha Mundial das Mulheres
  • CAER
  • CEFISMA
  • CEGE
  • CAM
  • Coletivo Feminista Dandara
  • Coletivo Avante

Deixo uma vez mais registrado meu total apoio ao Coletivo Feminista Marias Baderna e, também, este espaço aberto para novas divulgações na luta contra o machismo, pois acredito firmemente como elas que NENHUMA ATITUDE MACHISTA DEVE FICAR SEM RESPOSTA NA USP OU EM QUALQUER LUGAR.

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Brasil: nome da Terra de Santa Cruz

O amigo Alberto Luiz Schneider, dono de um ótimo blog, tem publicado muitos textos interessantes em seu site, os quais gostaria de recomendar vivamente a todos que passam por aqui. Como demonstração da qualidade destes textos, decidi conversar com o Alberto e ele me autorizou a publicar no HH seu post mais recente, que foi sobre um tema muito caro para mim: o nome do Brasil.

Antes que eu entrasse na universidade para estudar História, um tema que sempre vinha a minha cabeça era tentar entender por que a América Portuguesa acabou ficando conhecida pelo nome Brasil e não por Terra de Santa Cruz, um nome muito mais ligado aos catolicíssimos “descobridores” portugueses. Por volta de 2006 escrevi algumas linhas sobre este assunto, mas não acredito estar bom o suficiente para divulgá-lo por aqui. Diferentemente do excelente texto introdutório do Alberto que agora compartilho com vocês. Aproveitem!!!

OBSERVAÇÃO : Como bem apontado por Alana, uma leitora atenta do Blog, gostaria de alertar que o objetivo  deste post é o de introduzir o leitor ao tema e instigá-los a se aprofundarem no assunto através da leitura de textos que abordem a adoção do nome Brasil, ao invés de Santa Cruz com mais profundidade. Como não havia mencionado este objetivo na postagem original, Alana observou o caráter introdutório do texto e reclamou com razão que  faltava detalhar algumas questões importantes das quais ela sentiu falta. Concordei imediatamente com a crítica e, ao mesmo tempo, observei que por descuido meu, também não havia incluído as indicações de textos que aprofundam mais o assunto e era parte do objetivo inicial do post. Por isso, agradeço a participação da Alana em chamar minha atenção para esses pontos, e também aproveito para corrigir minha falha inicial, incluindo ao final do post as indicações de dois textos da autoria de Laura de Mello e Souza, que trabalha mais detalhadamente algumas questões específicas sobre o nome do Brasil, tais como suas origens e diferentes significados, dentre outras questões. 


Brasil: nome da Terra de Santa Cruz
por Alberto Schneider
Publicado originalmente em http://albertoluizschneider.blogspot.com.br/

Em 1500 – quando Pedro Álvares Cabral aportou em terras do Novo Mundo – não havia o Brasil, nem os brasileiros, senão um continente imenso, habitado por povos de múltiplas nações ameríndias. Ninguém sabia onde principiava nem onde terminava a jurisdição lusitana sobre estes territórios. O tratado de Tordesilhas (1494), delimitando as terras de Espanha das de Portugal, era relativamente abstrato. Mapas portugueses do século XVI estendiam a linha até Buenos Aires. O que os espanhóis, evidentemente, não aceitavam. Durante três décadas daquele século, os portugueses, empenhados no comércio com o Oriente, foram tomando consciência da larguíssima costa. Nos primeiros 20 anos foram fundadas apenas duas feitorias: Cabo Frio (1504) e Pernambuco (1516), habitadas em geral por poucos degredados e desertores. Ambas as feitorias eram de cunho privado e inteiramente desimportantes para a Coroa. A presença de franceses na costa, dedicados ao comércio de pau-brasil, precipitou a decisão portuguesa de povoar as terras. Os portugueses, que se fiavam na doutrina do Mare Clausum (baseados em bulas papais e nos tratados internacionais), sentiam-se ameaçados pelos interesses franceses e de outros europeus, fundamentados na doutrina do jure gentium, ou direito das gentes, segundo a qual um território pertenceria a quem de fato o ocupasse. Apenas em 1530 – não tanto por razões imediatamente econômicas, mas pelo interesse em garantir a posse – foram surgindo pequenos núcleos coloniais, como Olinda e São Vicente, distantes e desconectados uns dos outros, e assim permaneceriam por muito tempo.

Como, afinal, denominar esse conjunto de “ilhas” da costa Atlântica da América do Sul? Naqueles tempos remotos ainda não se chamava Brasil ao lugar que viria a ter esse nome. Nas cartas, Pero Vaz de Caminha denominou-as terras de Vera Cruz. Cabral, com espírito medievalizante, chamá-la-ia de Terra de Santa Cruz, em homenagem ao “lenho sagrado”. Segundo Laura de Mello e Souza, esse nome já aparece em cartas e mapas italianos do princípio do século XVI, assim como outros nomes, como Terra dos Papagaios ou America vel Brasilia sive papagalli terra, ou ainda “Terra de Gonsalvo Coigo vocatur Santa Croxe”, em referência a Gonçalo Coelho, capitão das frotas portuguesas que exploraram a costa brasileira entre 1501-1504.

De acordo com o grande historiador Capistrano de Abreu, o nome Brasil – ou Bracil, Brazille, Bresilge, Bersil, Braxill, Braxili – já existia em diferentes mapas europeus para designar um incerto lugar geográfico, ilhas ou arquipélagos, nos confins do mundo, cuja existência mítica a prática navegante dissiparia. O nome existiu antes do nomeado. O historiador português Jorge Couto afirma que, em 1512, em carta de Afonso de Albuquerque a D. Manuel, o venturoso, surge pela primeira vez o vocábulo Brasil para designar os domínios do rei de Portugal no Novo Mundo, tornando esse uso cada vez mais comum na documentação da época. Em 1530, segundo Antonio Baião, D. João III designa Martim Afonso de Sousa “capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil”

O nome Brasil ainda não se estabilizara. De um lado, o nome do “lenho sagrado”: Santa Cruz. De outro, “o nome de um pau que tinge panos”: pau-brasil, razão de vil comércio. Deus e o Diabo competindo para batizar a terra do sol. O humanista português João de Barros militou em favor do nome santo, pois lhe pareceu mais apropriado para nomear a possessão de um rei católico. Pero de Magalhães Gandavo, outro humanista português que viveu no “Brasil” quinhentista, também lutou pelo nome pio. Em seu livro, chamado Província de Santa Cruza que vulgarmente chamamos Brasil, lamenta o triunfo do nome comercial ante o religioso. A luta entre o nome profano e o sagrado foi vencida pelo primeiro. Nos escritos dos jesuítas do século XVI – como José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim – o nome secular já se impusera. Na primeira História do Brasil, escrita por Frei Vicente do Salvador, em 1627, persiste o lamento pela vitória do “pau de tinta”. O sentido religioso do mundo habitava o universo mental dos homens da época, mas os sinais da secularização ainda tímida, patente no próprio nome do Estado do Brasil, se faziam notar. Naqueles tempos, quando a colonização europeia ainda ia deitando raízes no solo americano, o diabo parecia vencer a luta, ou, dito de outro modo, o espírito de cruzada ia cedendo à prática dos mercadores, não apenas de pau-brasil, mas também de escravos, um ativo de alto valor, sem o qual o Brasil açucareiro não poderia existir. O nome vulgar de pau-brasil, madeira vermelha como brasa, acabaria por se impor, mas sofreria ainda, nas crônicas posteriores, alguma competição com o mui nobre e cristão nome de Santa Cruz.

Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz chamado vulgarmente o Brasil, João Teixeira, 1640.

A multiplicidade de nomes remete à própria indefinição em relação ao sentido da colonização portuguesa na América. Nos primeiros 50 anos do século XVI, a Terra de Santa Cruz e a África portuguesa não representavam quase nada ao Império português. A colônia não nasceu previamente destinada a exportar gêneros tropicais e importar mercadorias europeias e escravos africanos, em benefício dos interesses metropolitanos. O antigo sistema colonial, segundo formulou o historiador Fernando Novais, foi se conformando no tempo, adaptando-se aos interesses e às possibilidades da época, sem nunca apagar inteiramente outros sentidos.  No século XVII o “diabo” do açúcar já havia se instalado e a América portuguesa e a costa ocidental da África formavam o mesmo complexo econômico, como nota Luiz Felipe de Alencastro, um fornecendo escravos negros, outro açúcar branco, consumido no mercado europeu. Como sugere Laura de Mello e Souza, o nome Brasil representa um “fato ímpar entre terras coloniais”, pois era a “única a trazer essa relação tensa inscrita no próprio nome, que lembraria para sempre as chamas vermelhas do inferno”. O ethos mercantil e a missão evangelizadora haveriam de conviver por séculos. O Brasil é filho da tensão entre a cruz e a espada. Deus e o Diabo convivem na terra do sol.

TEXTOS PARA APROFUNDAR MAIS O ASSUNTO

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O Senhor das Moscas e o mal inato do ser humano

Fim de semana chuvoso, com direito a feriado prolongado, então a ideia hoje é pegar leve por aqui no blog. Assim, achei melhor deixar apenas a recomendação de um bom livro para os amigos que ficarão de castigo em casa nesse feriadão de quatro dias.

Trata-se de O Senhor das Moscas (também adaptado para o cinema), escrito em 1954 por William Golding (1911-1993),  vencedor do Nobel de literatura, em 1983. Nas próximas linhas, pretendo fazer apenas algumas observações com o objetivo de instigar o leitor a buscar este livro para ter um fim de semana agradável. Portanto, este post é muito mais uma sinopse do que uma resenha propriamente dita do romance indicado.

Muito bem escrito e envolvente, O Senhor das Moscas tem um enredo brilhante, com um ritmo que faz seu leitor sentir-se como mais um dos personagens que se perdem numa ilha e terão que sobreviver duramente, se organizando em grupos para realizar as tarefas diárias até serem resgatados. Certamente inspirou muitos outros escritores e cineastas, havendo até quem diga que o programa Survivor (No Limite) e a série Lost tenham sido inspiradas nesta obra que, apesar do fracasso inicial, acabou por se tornar um clássico da literatura inglesa.

Escrito no pós-guerra, novo período de desencantamento com a humanidade, o livro faz uma série de analogias, a começar pelo título, que se refere a Belzebu (Baal-Zeboub), deus filisteu transformado em príncipe dos demônios por hebreus e cristãos, cujo significado etimológico do nome é justamente Senhor das Moscas.

Em termos gerais, para não estragar a surpresa, o livro trata da descoberta do mal que existe no coração do homem que, independente da idade e do meio onde este vive, surge como algo natural. Neste sentido, o autor pretende mostrar como crianças (entre 6 e 12 anos), se organizaram socialmente após terem sobrevivido a um acidente aéreo em uma ilha perdida sem a presença de adultos (autoridade). Qualquer semelhança com O Leviatã (1651), de Thomas Hobbes (1588-1679), não é mera coincidência. Resumindo de maneira bastante simplista, para Hobbes, sem a presença do Estado (autoridade), os homens não conseguem organizar a vida social e viveriam na mais profunda barbárie, daí a necessidade do Contrato Social.

A trama vai se desenvolvendo no intuito de contar como essas crianças vão criando, aos poucos, uma vida social baseada na violência e na força, atingindo altos requintes de crueldade. Um dos pontos chaves para o desenrolar do enredo deste romance, é a descoberta da presença de porcos na ilha que, inicialmente, servem como fonte de alimentos ao grupo, mas que mais adiante no livro, será utilizado pelo autor como a já referida metáfora do Senhor das Moscas, em alusão a Belzebú.

Um dos aspectos que me pareceu bastante interessante ao ler esta narrativa de Golding, foi perceber como estes garotos, apesar de terem recebido “fina educação inglesa” (portanto, não estamos lidando com “selvagens” africanos, asiáticos ou latino americanos), quando sozinhos acabam por estabelecer uma sociedade bastante “primitiva”, criando ritos e sacrifícios, desrespeitando as “leis” por eles mesmos estabelecidas, chegando até mesmo a matarem uns aos outros. Aqui, o medo do desconhecido desempenha um papel importante e, mais do que isso, a maneira como os líderes do grupo exploram este medo do mundo externo para fazer com que o restante do grupo os obedeçam.

Outra analogia que gostaria de apontar, sem me aprofundar muito, é que se percebermos bem, veremos que é possível relacionar alguns personagens chave com determinados valores e embates bastante em voga na época em que o livro foi escrito. Por exemplo, Ralph, um dos líderes do grupo, representa a democracia; Jack é a força tirânica e ditatorial; e Porquinho, a inteligência que apóia a democracia. Se considerarmos o contexto da Guerra Fria que, na década de 1950, vivia seus momentos mais quentes, podemos enxergar um embate bastante claro proposto pelo autor entre Democracia x Ditadura (ou, se preferirem, países ocidentais x URSS).

Contudo, o que vale mesmo a leitura e a recomendação desta breve sinopse, é justamente as reflexões que o livro levanta em relação a perda da inocência da humanidade (se é que isso existiu) e,  nesse sentido, o romance de Golding faz a caricatura perfeita do surgimento do mal no coração do homem.

Espero que aproveitem o fim de semana e o feriado prolongado, se possível, com uma boa leitura.

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