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Indicação, comentários ou resenhas de livros.

Sobre o feminicídio e a violência contra a mulher em “Os sofrimentos do jovem Werther”

Contém spoilers

De princípio devo dizer que não gostei muito da história de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Johann Wolfgang Goethe (publicado originalmente em 1774). Antes de saírem atirando, percebam! Não falei que o livro não presta ou que não é bom, apenas afirmei que não gostei de sua história. Se fosse resumi-lo em uma única sentença, diria que o jovem Werther foi incapaz de sentir a dor de um não, para usar um trecho de uma música que gosto muito do GRAM (antes do fim).

Para irmos direto ao ponto, a trama do livro gira em torno de um amor não correspondido do jovem Werther que, após ser rejeitado por Charlotte, adoece de paixão e passa a persegui-la. Noiva de Albert, Lotte decide ser leal ao seu compromisso e acaba se casando, mas sem romper a amizade que cultivava com o jovem Werther. Cada vez mais obcecado por Lotte, e se aprofundando em uma crise, Werther continua a visitá-la, forçando uma relação que era claramente indesejada pela mulher. Em dado momento, se aproveita de uma situação para roubar alguns beijos de Lotte e, ao ser duramente repelido por esta, Wether se retira, humilhado, e decide suicidar-se. Para tanto, pede uma pistola emprestada ao marido de Lotte, Albert, e envia uma carta à sua amada responsabilizando-a pelo desfecho dessa trágica história.

Revelador de uma mente doentia – e de um ato de profunda covardia em relação a Lotte – o ato final deste livro retrata bem o comportamento abusivo de muitos homens que, inaptos para sentirem a dor de uma rejeição, revelam-se bastante capazes de matar e morrer. Não se pode esquecer que, antes de tirar sua própria vida, Werther se identificou com um homem preso em flagrante após cometer um homicídio passional, tentando livrá-lo da cadeia com toda sua força e às custas de sua reputação.

Por óbvio, denunciar o feminicídio ou a violência contra a mulher não eram preocupações que estavam na mente de Goethe ao escrever sua obra. Tais questões, como se sabe, são mais recentes e não devemos cobrá-las de um autor cujo texto foi concluído ainda no século XVIII. No entanto, nós, seus leitores do século XXI, devemos refleti-la à luz das questões e preocupações do presente. Não para julgar o autor e sua obra, mas para fazer uma leitura crítica desta última, buscando compreender suas implicações na sociedade desde que foi publicada pela primeira vez e como, desde então, ela ajudou a construir um repertório macabro usado para justificar ou reforçar práticas violentas de homens contra as mulheres e contra si mesmos. Esta reflexão, sim, me parece urgente, em um mundo onde a violência contra a mulher se mantém em níveis elevados.

Meu desencanto pela obra, portanto, diz respeito justamente à essa normalização da violência contra a mulher, tão presente em nossos dias. Penso que não pode haver beleza numa história cujo personagem principal é um homem obcecado por uma mulher e que, ao ser rejeitado por esta, decide tirar sua própria vida, responsabilizando-a por sua morte, numa tentativa doentia e covarde de causar-lhe um último sofrimento. Ainda que muito bem escrita, essa leitura me causou muito mais repulsa do que encantamento, se assemelhando mais ao subgênero do “terror psicológico”, pelo pavor em que me vi afligido no correr da leitura.

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A sexta extinção: decepcionante!

Capa de A Sexta Extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert.

Depois de receber a indicação de muitos colegas, fui ler A sexta extinção: uma história não natural, de Elizabeth Kolbert. Sendo bem sincero, achei a obra bastante decepcionante. Daria apenas 3 de 5 estrelinhas, sendo bastante generoso.

O livro é bem escrito, a autora domina muito bem o assunto e faz bem o trabalho de divulgação científica. Pra quem não trabalha ou estuda no campo das ciências biológicas, ciências da terra e história das ciências é uma excelente leitura, pois oferece diversos momentos de aprendizagem. O principal problema deste livro, porém, é que a autora se nega a tocar naquela que deveria ser a questão central de sua obra: o que está por trás da sexta extinção em massa que estamos testemunhando, sobretudo, nos últimos duzentos e cinquenta anos? O que podemos fazer para evitá-la ou, dito de forma krenakiana, quais são nossas ideias para adiar o fim do mundo?

Oras, nas mais de trezentas páginas da obra, Kolbert não relaciona, em momento algum, os diferentes processos de extinção em massa que ela descreve tão bem com o desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, em toda a obra ela não usa a palavra capitalismo. Nesse sentido, para continuarmos a comparação da obra dela com a de Krenak, esta última nos dá uma noção muito mais acurada do problema em que nos temos e de como nós mesmos poderíamos nos encaminhar para resolvê-lo do que o esforçado, mas decepcionante trabalho de Kolbert.

Para não me estender demais neste breve comentário, creio que o mais decepcionante é a visão limitada da autora de que a salvação dos humanos da extinção causada por si próprios não passa por uma outra forma de imaginar a humanidade, como diz Krenak. Não passa por novas formas de nos organizarmos socialmente ou de reproduzir os nossos meios de vida, mas sim pela engenhosidade de criar soluções para os problemas que nós mesmos criamos com a super-exploração dos homens e de toda a Terra (incluindo flora e fauna). Seria como se tivéssemos nossos pulmões tomados por uma doença causada pelo vício do tabagismo e, em vez de propor que parássemos imediatamente de fumar e pensássemos em outras formas de viver sem nos envenenarmos, ela propusesse que continuássemos fumando e esperássemos que os cientistas desenvolvessem medicamentos ou tratamentos invasivos que minorassem os efeitos nocivos dos cigarros. Não por outra razão, penso ser muito mais emancipador ler a obra de nosso Ailton Krenak do que os livros de Kolbert.

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Timothy Snyder: sobre a tirania. Um panfleto em favor do neoliberalismo.

Foto: Capa de Sobre a tirania, de Timothy Snyder.

Lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2017, Sobre a tirania veio à público como resultado de um angustiante desabafo feito nas redes sociais, pelo historiador Timothy Snyder, tão logo foi confirmada a vitória de Donald Trump à presidência dos EUA em novembro de 2016. Seu lançamento em versão impressa (com traduções para diversas línguas) seria, a princípio, uma iniciativa que busca explicar a um público muito mais amplo como até mesmo democracias mais estáveis, como os EUA, podem acabar descambando para aventuras autoritárias.

Com graduação em História pela Universidade de Brrown (EUA), Snyder doutorou-se em História Moderna na Universidade de Oxford (Reino Unido) e rapidamente se tornou acadêmico no Centro de Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior nos EUA. Atualmente é professor de história em Yale, onde se dedica, sobretudo, ao estudo da história contemporânea, com destaque para os países do leste europeu.

De início, pelo subtítulo da obra, nota-se que a iniciativa do autor remete à necessidade de buscarmos na história recente da humanidade, mais especificamente, aquela vivida durante o século XX, lições para um presente no qual a tirania se apresenta como uma ameaça real. O autor, portanto, adota como guia norteador de seu trabalho uma antiga ideia de história, tornada famosa pelo orador e político romano Cícero, segundo a qual a História é mestra da vida (historia est magistra vitae), ou seja, a História deve nos servir como guia para evitarmos os erros do passado. Tanto é assim que as primeiras palavras de seu livro são: “A história não se repete, mas ensina” (p. 11).

Ainda que há muitas décadas os historiadores já venham criticando amplamente esta concepção de história, já bastante arraigada ao senso comum, como bem apontou o historiador Leandro Karnal, o principal problema da obra de Snyder não é este. O que realmente coloca todo seu trabalho a perder é o modo alarmista como ele recorre ao passado a fim de aterrorizar seus leitores para, logo em seguida, apresentar uma solução: o mundo é um lugar muito melhor quando controlado por democracias liberais. Por democracias liberais, entendam: liberalismo de cunho conservador estadunidense (na linha do partido Republicano – não Trump, mas John McCain).

De modo geral, Timothy Snyder busca evidenciar que tudo aquilo que se afasta do centro vai se tornando pernicioso, autoritário e tirânico quanto mais vai se aproximando dos extremos, seja pela ala esquerda ou pela direita. Ao fim da leitura do prólogo, de quatro páginas, já é possível traçar um esquema nada animador do livro, representado na imagem abaixo:

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 15.

Segundo Snyder, a história política do século XX foi marcada, sobretudo, pelas ameaças totalitárias do comunismo, de um lado, e do nazifascismo, de outro. O autor não vê problema algum em correlacionar comunismo (um genérico empregado para se referir ao stalinismo) e nazifascismo. Ao contrário, a leitura de sua obra deixa claro como estes regimes compartilham a mesma natureza perniciosa e anti-democrática, estando separados, apenas, por sua posição no espectro político: um na extrema esquerda, outro na extrema direita. A ideia parece ser justamente reforçar que tudo vai ficando mais autoritário conforme se distancia do centro.

O professor de Yale faz questão de ressaltar, a cada capítulo de sua obra, como comunistas, nazistas e fascistas representaram uma grande ameaça à democracia liberal durante o século XX e, até mesmo, mantém a narrativa para o período que sucedeu o desmantelamento da URSS (1989-1992). Dessa forma, reforça o argumento de que as ideias autoritárias legadas ao século XXI, tanto pelo nazifascismo quanto pelo comunismo, seguem influenciando as pessoas, sobretudo a partir da virada do século, com o desenvolvimento tecnológico verificado desde então.

Para reforçar sua argumentação, vai lembrando no correr dos capítulos a ascensão de partidos, movimentos e, até mesmo, a chegada legítima ao poder de governos autoritários ao redor do mundo (Itália, Áustria, Ucrânia, Hungria, Polônia, Brexit, EUA, Brasil, etc.). Tais exemplos são poderosos aliados na busca de persuadir os leitores de que a a atual onda de autoritarismo vem, de fato, de partidos políticos da extrema direita europeia, mas que esta é decorrente da continuidade de práticas cujas origens remontam os regimes comunistas da URSS e de suas aliadas no leste europeu. Casos marcantes dos atuais governos de Hungria e Polônia, para não falar da própria Rússia.

A conclusão dessa ideia leva-o a propor que, se nem mesmo os EUA, a quem muitos têm como o “farol da liberdade”, estão livres da influência perniciosa de sucumbir ao autoritarismo que estamos vivenciando, da qual a eleição de Trump é mero reflexo, devemos, então, estar sempre atentos aos “exemplos da história”, como fizeram os “Pais Fundadores da democracia estadunidense”, para interromper o império da tirania. E o que a história do século XX tem a nos dizer, segundo Snyder, é que a democracia liberal está em risco e que devemos nos manter atentos o tempo todo para protegê-la.

Nesse sentido, a melhor forma de defender a democracia é retrocedermos uns passos para manter as coisas como eram antes do surgimento dessa onda autoritária, isto é, logo após o fim da Guerra Fria ou, se preferir, o desmantelamento da URSS. Proteger a democracia significa se afastar dos extremos no espectro político e manter o foco nas reformas que democratizaram o mundo ocidental, isto é, nas políticas liberais reformistas (entenda-se neoliberais) tocadas durante as últimas quatro décadas.

Portanto, as vinte lições oferecidas por Timothy Snyder em seu livrinho são, na verdade, um guia ao leitor para medir o autoritarismo no cotidiano, isto é, um manual que nos ajuda a identificar atitudes ou ações de grupos autoritários em nosso dia-a-dia e de como esses autoritarismo vai se infiltrando, pouco a pouco, e envenenando a vida política das sociedades no sentido de promover o ódio e a desconfiança mútua, polarizando as opiniões. A estrutura de cada capítulo é praticamente a mesma:

  1. Indicação de crueldades e vilanias realizadas por pessoas e/ou grupos ligados aos regimes nazifascistas ou com o stalinismo;
  2. Busca de similaridades desses comportamentos com contextos atuais nos EUA e na Europa;
  3. Exemplo ou pensamento de um intelectual ou político liberal-conservador (social-democrata, democrata cristão) como alternativa razoável para a manutenção da democracia.

Václav Havel, dissidente comunista e ex-presidente da antiga Tchecoslováquia, irá aparecer como a maior referência do livro, sendo citado em diversos capítulos. Hannah Arendt também aparece com alguma frequência, mas sempre deslocada dos bons exemplos. Referências importantes são outros dissidentes, intelectuais ou jornalistas nascidos na União Soviética, ou em ex-repúblicas socialistas do leste europeu, tais como Leônidas Donskis (Lituânia), Leszek Kolakowski (Polônia), Peter Pomerantsev (URSS).

Por fim, cumpre destacar o panfletarismo do autor, que chega a pontos realmente embaraçosos, como na lição do capítulo onze (investigue). Aqui o autor busca apontar a importância de que as pessoas sempre busquem investigar a informação que estão recebendo. Seria, de fato, de grande ajuda relembrar a importância da “investigação” e da veracidade dos fatos, entretanto Snyder o faz avalizando apenas a informação produzida e divulgada por jornalistas e seus meios de comunicações impressos (quanto maiores, melhores). Defende uma posição de que todo jornalismo de qualidade deve ser muito bem pago e de que não existe esse negócio de “informação gratuita”. Quem quiser informação de qualidade, deve estar disposto a financiá-la. Além disso, Snyder não trata da produção e disseminação do conhecimento científico e, pior, deixa evidente que a democratização dos meios de comunicação é, para ele, sinônimo de autoritarismo e perda de qualidade.

Outro exemplo que empobrece a obra se encontra na vigésima e última lição do livro, onde o Snyder se agarra a um clichê macabro para afirmar que alguns de nós devem estar dispostos a morrer pela liberdade para que todos não pereçam sob a tirania. Para além da miopia do autor de não conseguir enxergar outra forma de organização social não tirânica que não a democracia liberal, faltou também explicar a qual liberdade devemos estar dispostos a dar nossa vida: seria a liberdade de mercado? Se for, não contem comigo!

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 111.

Fica a triste sensação de um livro que poderia ter sido um melhor instrumento de reflexão sobre a ascensão do autoritarismo ao redor do mundo, mas que fracassou grandemente ao assumir a forma de um vergonhoso panfleto em favor do neoliberalismo. Talvez tenha sido esperar demais de um livro que nasceu de um mero desabafo nas redes sociais, fruto do ressentimento e da frustração de quem via, atônito, Donald Trump subir ao poder nos EUA. Realmente, dói muito quando acontece em nosso próprio quintal. Entretanto, é natural que tenhamos expectativas altas, mesmo em casos como estes, de desabafo e frustração, quando o autor é um intelectual tão bem formado e titular em uma universidade tão prestigiosa como Yale. Mas nem sempre, como no jornalismo, o tamanho e o prestígio das instituições conseguem dar garantias certas da qualidade de tudo aquilo que irá sair de suas prensas. Uma lástima!

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Anne Applebaum. O crepúsculo da Democracia. Impressões de leitura.

Imagem: divulgação – Record

Livro curto, dividido em seis capítulos de leitura fluida e rápida assimilação. Não recomendado a quem deseja compreender a ascensão do autoritarismo de extrema-direita na Europa e Estados Unidos, já que a autora dá uma resposta superficial e preguiçosa à questão. Neste caso, é melhor ler “Os engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli.

Por outro lado, recomendo a leitura a todos aqueles que, como eu, tem interesse em ver a narrativa empregada por uma direita (autodenominada centrista) que busca justificar esse autoritarismo que vemos na Polônia, na Hungria, no Reino Unido e nos EUA, a partir de uma retórica maluca que busca, antes de tudo, se eximir das responsabilidades pelo monstro que criaram, jogando, como sempre, a culpa no colo das esquerdas, caricaturizada no livro de Applebaum como “os comunistas”, no pior estilo da finada Guerra Fria.

Abaixo seguem apenas três de minhas primeiras impressões:

  1. Surpreende negativamente o fato de o livro ser escrito por uma historiadora formada em Yale e a superficialidade ser a marca registrada da argumentação apresentada pela autora nesta obra. Talvez a estratégia tenha sido, justamente, abordar o tema de forma superficial para atingir as listas de “mais vendidos” ao redor do mundo e permanecer por mais tempo no topo dessas listas. Como no caso de Yuval Harari, há quem diga que é melhor que o público médio esteja lendo este tipo de obra do que a tradicional série de auto-ajuda ou de “Seja Foda” e “Enfodere-se” que dominou os “top ten” nos últimos anos. Tendo a concordar, ainda que seria melhor que estivessem lendo livros de melhor qualidade.
  2. A autora busca entender porque muitos de seus amigos de centro-direita, que celebraram a passagem do ano de 1999-2000 em uma festa que ela organizou em sua casa, acabaram por se revelar autoritários e, mais do que isso, por desempenhar um papel importante na disseminação/aceitação dos regimes totalitários de extrema direita do leste europeu, em especial Polônia e Hungria. No entanto, ao invés de propor uma reflexão que busque as causas do recrudescimento de práticas autoritárias no interior dos grupos de centro e centro-direita da Europa e EUA, ela prefere seguir uma fórmula antiga e preguiçosa de jogar a culpa no comunismo ou, mais especificamente, no colo de Lênin que, segundo ela, teria sido o criador de um modelo de “Estado iliberal autoritário” que, até os dias atuais, tem repercussão na organização de governos como os da Venezuela e da China. Ou seja, na dúvida, culpe os comunistas. Nesse sentido, os livros “A tirania do mérito”, de Michael Sandel, e “Engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli, são muito mais sofisticados, apresentando reflexões menos preguiçosas e panfletárias do que as de Anne Applebaum.
  3. Causa engulho o cinismo da autora na defesa da democracia liberal e das reformas neoliberais propostas a partir da década de 1980 em oposição a ascensão dos governos autoritários de extrema direita como frutos apodrecidos do comunismo. Primeiro, pois ela força uma equivalência entre os regimes Nazi-fascistas e os Socialistas. Segundo, porque argumenta que a extrema direita do leste europeu combate o comunismo seguindo uma cartilha comunista, quando sabemos que as soluções encontradas para a ascensão da extrema direita nos EUA, Europa e no mundo são originais e adaptadas às novas tecnologias de comunicação. Por fim, mesmo que ela negue a partir do terceiro capítulo da obra, por colocar a questão da ascensão do autoritarismo e do ocaso da democracia numa chave de interpretação ultrapassada, que é a do Ocidente x Oriente, já que o autoritarismo de direita que cresce na Europa e nos EUA, ressoa o autoritarismo estruturado pelo marxismo-leninismo que vigorou na URSS e nos países do leste europeu. Nesta chave interpretativa, o ocidente (EUA e Europa ocidental) é representado como guardiões dos valores da democracia liberal, representados por políticos conservadores ou centristas reformistas (entendidos aqui como neoliberais). Na contramão, a Europa oriental e a América Latina aparecem como o quintal das autocracias, onde autocratas nacionalistas inescrupulosos colocam a democracia em risco.

Em um trecho do primeiro capítulo da obra, por exemplo, Applebaum recorre ao estudo de uma “economista-comportamental”, Karen Stenner, para afirmar que um terço da humanidade possui um troço chamado “predisposição autoritária” e que seu oposto, a “predisposição libertária”, também pode estar presente nas pessoas de modo silencioso. Applebaum vai buscar o conceito de Stenner, pois a definição dada por esta última ao autoritarismo não é político, de modo que este não é compreendido como sinônimo de conservadorismo. Para Stenner, mediada por Applebaum…

O autoritarismo atrai pessoas que não conseguem tolerar a complexidade. […] Ele é anti-pluralista. Suspeita de pessoas com ideias diferentes. É alérgico a debates ferozes. Se aqueles que o possuem derivam sua política do marxismo ou do nacionalismo é irrelevante. Trata-se de um estado mental, não de um conjunto de ideias.

Anne Applebaum. O crepúsculo da democracia. São Paulo: Record, 2021, p. 20.

Ao usar Stenner para caracterizar o autoritarismo como um “estado mental”, Applebaum acaba patologizando, não o autoritarismo em si, mas o comportamento [ou melhor, a predisposição] de quem ELA ou UM GRUPO julga ser intolerante com a complexidade; ser anti-pluralista; ser desconfiado das ideias diferentes e/ou não suportar debates acalorados. Trocando em miúdos, bastaria alguém suspeitar das premissas defendidas pelo que Applebaum chama em seu livro de centro-direita ou direita moderada, isto é, dos ideais do conservadorismo ou, para usar as palavras de José Saramago, da “santa do pau-oco” que se tornou a nossa democracia representativa e, pronto, lá está um autoritário.

O problema, a meu ver, é que tal visão supõe haver a existência de um condição física, ou melhor, genética, a determinar o estado mental das pessoas, permitindo classificar as pessoas em dois grupos: aquelas com predisposições autoritárias e aquelas com predisposições libertárias. Os do primeiro grupo, diz Applebaum, estão na mesma senda dos marxistas ou nacionalistas (entendidos aqui como nazi-fascistas e seus desdobramentos atuais). A estratégia da autora com isso é reforçar negativamente qualquer afastamento do centro, no espectro político, associando esse distanciamento com uma propensão ao comunismo, por um lado, ou ao fascismo e o nazismo, por outro.

Ao fim, o que a Applebaum conseguiu fazer através da psicologia política ou economia comportamental de Stenner, foi “a incrível façanha” de reproduzir um truísmo: quanto mais afastados do centro, no espectro político, mais os indivíduos se aproximam do autoritarismo. O perigo de sua argumentação, porém, foi ter levado essa discussão para o campo das ciências biológicas ao sugerir que aqueles que se afastam do centro o fazem, não por uma questão de natureza social, mas por sofrerem de uma condição genética que os conduz a um estado mental considerado divergente ou, no mínimo, indesejável pela autora. Ora, tal argumentação, a meu ver, além de rasa, parece ser compatível com o anti-pluralismo que ela tanto crítica; com a suspeição de pessoas que defendem ideias diferentes das dela ou, ainda, com uma indisponibilidade de sua parte ao debate acalorado, considerando os autoritários pessoas neurodivergentes. Terá Applebaum a tal predisposição ao autoritarismo?

Por fim, cumpre observar que a já referida superficialidade na argumentação da autora não se dá por acaso. Se o objetivo do livro-reportagem é, como supomos, atingir o público das listas de mais vendidos ao redor do mundo, então seu conteúdo está nivelado pelo perfil desses leitores-alvo, que geralmente preferem obras que não ultrapassem muito as 150 páginas e a capacidade cognitiva apreende, no máximo, o nível da argumentação apresentado na obra. O resultado disso é que, muito provavelmente, veremos nos próximos anos a argumentação de Applebaum ser reproduzida acriticamente por preguiçosos de centro-esquerda à centro-direita nas festas de Reveillón similares àquela organizada pela autora no começo de sua obra. Cabe a nós ter um cuidado mais apurado de saber com quem estamos andando para não acabarmos surpreendidos, como a autora, que confraternizava com proto-fascistas, antissemitas e autoritários de toda extirpe. Neste caso, o conhecimento político que vamos adquirindo no decorrer de nossa vida deve contribuir, ao menos, para que nos estimule a selecionar melhor nossas amizades, pois como diz o adágio popular, que resume muito bem uma das principais questões da obra: “passarinho que como pedra, sabe o cu que tem”.


NOTA:

Para um texto da economista comportamental, Karen Stenner, citada por Anne Applebaum para argumentar em favor do truísmo de quanto mais afastado do centro do espectro político, mais favoráreis a regimes autoritários são os indivíduos, ver o ensaio publicado por Stenner na revista HOPE not hate em https://www.hopenothate.org.uk/2020/11/01/authoritarianism/

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Ray Bradbury e o retorno à oralidade em Fahrenheit 451

Capa da edição de luxo de Fahrenheit 451 lançado em 2020 pelo selo Biblioteca Azul da Globo.

Depois de mais de nove meses de quarentena por conta da pandemia da COVID-19, uma das atividades encontradas para manter a sanidade mental foi dedicar aproximadamente 60 a 90 minutos por dia à leitura de obras de literatura. Considerando minhas preferências literárias (e o próprio contexto em que estamos imersos), acabei lendo ou relendo muitas obras de ficção especulativa com distopias tenebrosas. Dentre elas quero destacar algumas bastante impactantes, todas mais do que recomendadas:

  • Nós, de Ievgeni Zamiátin (1920);
  • Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932);
  • Piano Mecânico, de Kurt Vonnegut (1952);
  • Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953);
  • Andróides sonham com ovelhas elétricas, de Philip K. Dick (1968);
  • O imitador de homens, de Walter Tevis (1980).

Quando se lê tanta distopia em um prazo tão curto de tempo (a maioria foi lida nos últimos três meses), logo vamos percebendo que os autores recorrem a algumas fórmulas, que buscam em seus antecessores, renovando-as sob formas e aspectos distintos, como os diferentes tipos de Estado totalitário; as muitas drogas empregadas como instrumento de controle social; as variadas formas de dar fim à família; os meios encontrados para controlar os corpos e, até mesmo, a atividade sexual de seus habitantes, dentre outros. Enfim, este longo preâmbulo serve para dizer que dentre todas as obras mencionadas acima aquela que mais me assustou foi a de Ray Bradbury. Talvez isso se dê porque identifico na sociedade atual muito daquilo que o autor imaginou como distópico em 1953:

  • uma sociedade em que os “bombeiros” incendiários são desnecessários, pois nós mesmos deixamos os livros de lado em troca de entretenimento fútil, em troca de likes e emoticons;
  • uma sociedade hedonista e ególatra em busca de felicidade a qualquer preço, mesmo que seja em troca da liberdade;
  • uma sociedade que ruma rapidamente a um totalitarismo no qual a indústria cultural e a sociedade de consumo são os poderosos ditadores;
  • uma sociedade composta por uma população cuja maioria se ressente de seus intelectuais e estes, por sua vez, desprezam esta população completamente por estarem engalfinhando-se uns contra os outros;
  • uma sociedade que menospreza as humanidades e vai extinguindo, um após outro, cursos de filosofia, de sociologia, de psicologia, de história, de geografia, de línguas e, até mesmo, de gramática e produção textual.
O escritor estadunidense Ray Bradbury (1920-2012), autor de Fahrenheit 451. Foto: V. Tony Hauser/Divulgação.

Cada nova leitura da obra de Bradbury provoca um novo assombro, um novo desespero e uma dúvida paralisante: o que devemos fazer?

Eu não sei! Não tenho a menor ideia! Do modo como caminhamos, parece-me que, tal como sucedeu a Guy Montag, nos restará apenas uma única solução: a de memorizarmos um ou alguns livros e convertermo-nos em obras ambulantes. O temor de Bradbury quanto ao futuro próximo não parece infundado, muito pelo contrário. Cada vez mais me convenço de que estamos caminhando a passos acelerados para um fim trágico e que, se tivermos alguma sorte, os remanescentes da hecatombe terão a oportunidade de um novo começo, qual Fêxix, renascendo das cinzas. No entanto, o conhecimento produzido pelos humanos nos últimos milênios seria transmitido de geração a geração tal como se fazia no período pré-homérico, isto é, através da tradição oral. Será? A ver o que o tempo nos diz, mas estou profundamente pessimista.

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Biografia de Milton Santos será lançada hoje na cidade de Salvador

Como belo presente de fim de ano, acabo de saber que a biografia oficial do geógrafo Milton Santos será lançada nesta segunda-feira, 28/12, na cidade de Salvador-BA. Melhor ainda, com uma tiragem inicial de 5 mil exemplares, a obra será distribuída nacionalmente de forma gratuita.

O Hum Historiador repercute informações publicadas no blog de Fernando Conceição sobre o lançamento dessa biografia.

MILTON SANTOS, UMA BIOGRAFIA É LANÇADA
Do blog de Fernando Conceição | publicado originalmente 25.dez.2015

MS Capa

COM TIRAGEM de 5.000 exemplares a ser nacionalmente distribuída de graça pela Petrobras – que patrocina esta primeira versão do texto -, Milton Santos, uma biografia, está sendo apresentada ao país a partir deste 28 de dezembro de 2015.

O lançamento ocorre em Salvador da Bahia em mesa redonda intitulada “Intelectual, Negro e Geógrafo Mundial”, às 15h do dia 28, no Espaço Cultural Raul Seixas do Sindicato dos Bancários, localizado nas Mercês.

Outdoor nas ruas de Salvador divulga o lançamento

A mesa será coordenada por Danila de Jesus, presidente do Afirme-se – Centro de Práticas e de Estudos de Diversidades Culturais. Esta, a entidade proponente junto à Petrobras, cujo representante também participa, ao lado de representantes de outras instituições parceiras da atividade, familiares e outras autoridades.

A programação será aberta com a exibição de um videodocumentário de 27 minutos, em DVD encartado no livro, que foi editado pela jornalista Sueide Kinté. O vídeo foi feito a partir de material produzido durante o processo da pesquisa iniciada em 2007 pelo Grupo de Pesquisa Permanecer Milton Santos da Universidade Federal da Bahia.

Resumindo:

  • Apresentação da Biografia Autorizada de Milton Santos.
  • Data: Segunda-Feira. 28/12/2015. Às 15h.
  • Local: Espaço Cultural Raul Seixas, no Sindicato dos Bancários.
  • Endereço: Avenida Sete de Setembro, 1001, Mercês, Salvador-Bahia.
  • Mais informações: pelo e-mail afirme.se@gmail.com, ou também pelo telefone: (71) 9 9103-4578.

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CHOMSKY: O que o Tio Sam realmente quer? [certamente não é provar a nossa batucada!]

Post publicado originalmente no portal OUTRAS PALAVRAS.

Noam Chomsky

Abaixo, um trecho do livro ‘O que Tio Sam Realmente Quer’, do escritor americano Noam Chomsky. Ele mergulha, nesta passagem, na política externa dos Estados Unidos, e dedica várias linhas ao Brasil.

Vamos focalizar a América Latina, e começar olhando para os direitos humanos. Um estudo feito por Lars Schoultz, um destacado acadêmico especialista em direitos humanos da América Latina, mostra que “a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos “latino-americanos que torturam seus cidadãos”.

Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio.

Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman, revelam uma estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana e fornecem uma explicação: ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. Em comparação com este guia de princípios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na insignificância.

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O que o Tio Sam realmente quer. Livro de Noam Chomsky de onde foi tirado o texto deste post.

E a elevação do padrão de vida? Isso foi supostamente tratado na Aliança para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para as necessidades dos investidores norte-americanos. A Aliança fortificou e ampliou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, como milho e feijão, cultivadas para o consumo local. Com o programa da Aliança, por exemplo, a produção de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.

Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz um “milagre econômico” em que o PNB – Produto Nacional Bruto – sobe, enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura.

(O uso do terror é profundamente arraigado em nosso caráter. Nos idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a “eficácia salutar” do terror em se tratando das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”. Ele escreveu isso para justificar a violência de Andrew Jackson, na Flórida, que praticamente exterminou a população nativa e deixou a província espanhola sob o controle americano, impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua sabedoria.)

O primeiro passo é o uso da polícia; ela é decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento e eliminá-lo antes da “grande cirurgia” (como é chamada nos documentos de planejamento) ser necessária. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército dos países da América Latina – particularmente a região do Caribe e da América Central – é tempo de derrubar o governo.

Os países que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob os governos capitalistas democráticos de Arévalo e Arbenz, ou a República Dominicana, sob o regime capitalista democrático de Bosch, tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos Estados Unidos.

Em 1954, os americanos derrubaram o presidente da Guatemala e puseram em seus lugar militares, para proteger os interesses de suas empresas

O segundo passo é utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relações estreitas com os militares de países estrangeiros, porque essa é uma das maneiras de derrubar um governo que saiu fora do controle. Assim foram assentadas as bases para os golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonésia, em 1965.

Antes desses golpes, éramos bastante hostis aos governos do Chile e da Indonésia, mas continuávamos enviando armas. Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. O mesmo raciocínio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irã via Israel, desde o início de 1980. De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos, esses fatos eram conhecidos já em 1982, muito antes de haver reféns.

Durante o governo Kennedy, a missão dos militares latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de “defesa hemisférica” para “segurança interna” (que basicamente significa guerra contra a própria população). Essa decisão fatídica implicou a “direta cumplicidade [dos Estados Unidos]” com “os métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himler”, no julgamento retrospectivo de Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de contra-insurgência, de 1961 a 1966.

O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando a derrubar a democracia brasileira, que se estava tornando independente demais. Enquanto os Estados Unidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituíam um estado de segurança nacional de estilo neonazista, com repressão, tortura, etc. Isso provocou uma explosão de acontecimentos semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfério, desde os meados de 1960 até 1980 – um período extremamente sangrento.

(Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)

Os militares agem de maneira típica para criar um desastre econômico, seguindo frequentemente receita de conselheiros norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os civis administrarem. Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).

Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da população, etc. Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das classes dominantes e de investidores estrangeiros (“estabilidade”), além de reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo – a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miseráveis e sofredores.

Pinochet foi fruto dos Estados Unidos

Augusto Pinochet, ditador chileno.

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas – a menos que as forças populares queiram entrar na arena política. Neste caso, os militares talvez tenham de reinstalar a “estabilidade”.

O Brasil é um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um país muito bem dotado de recursos naturais, além de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das nações mais ricas do mundo. Mas graças, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao tão aclamado “milagre econômico” que se seguiu ao golpe (sem falar nas torturas, assassinatos e outros instrumentos de “controle da população”), a situação de muitos brasileiros foi, durante muitos anos, provavelmente parecida com a da Etiópia – e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.

Em 1993, três décadas depois do golpe militar, o Brasil tinha uma taxa de mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka. Um terço da população vivia abaixo da linha da miséria e, nas palavras de uma revista dedicada aos países pobres, “sete milhões de crianças abandonadas pediam esmola, roubavam e cheiravam cola nas ruas. E para milhares delas a casa era um barraco na favela… ou cada vez mais um pedaço de terra embaixo da ponte”.

Isso é o Brasil, um dos países de natureza mais rica do planeta. A situação era semelhante em toda a América Latina. Apenas na América Central o número de pessoas assassinadas pelas forças apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970 até meados dos anos 1990, girava em torno de duzentos mil, ao mesmo tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e a reforma social, foram dizimados.

Essas façanhas qualificam os Estados Unidos como fonte de “inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, nas admiráveis palavras da revista liberal New Republic. Tom Wolfe conta-nos que a década de 1980 foi “um dos grandes momentos de ouro da  humanidade”. Como diria Stalin: “Estamos deslumbrados com tanto sucesso.”

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Baixe livros gratuitamente direto da Biblioteca Digital do Senado Federal

Livro_Senado_FederalO Senado Federal disponibilizou para download gratuito os livros das coleções “Edições do Senado Federal”, bem como os da “Biblioteca Básica Brasileira”. Ambas coleções contém títulos clássicos do pensamento brasileiro, além de contribuições recentes de pensadores contemporâneos. Na coleção é possível encontrar nomes como Raimundo de Farias Brito (1862-1917), Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951), Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), dentre outros.

Os títulos da coleção podem ser adquiridos no Portal de Publicações da Biblioteca do Senado. No entanto, alguns deles estão disponíveis para download grátis na biblioteca digital do Senado. Na lista abaixo se encontram os títulos gratuitamente disponibilizados:

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Vladimir Ilitch Lenin: um grande estadista e um grande teórico

Ao escrever sobre a obra QUE FAZER?, de Vladimir Ilitch Lenin, o professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo, Lincoln Secco, afirmou que Lenin permaneceu como o único grande estadista que também foi um grande teórico, em qualquer época. A quem interessar possa, o Hum Historiador repercute as considerações do professor Lincoln Secco sobre essa obra de um dos principais líderes da Revolução Russa.

QUE FAZER?
por Lincoln Secco | para o Blog da Boitempo | publicado originalmente em 13.dez.2012

Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924)

Faz 110 anos que o livro Que Fazer de Lenin foi publicado. O seu conteúdo foi dissecado por estudantes e estudiosos, militares e militantes, teóricos e organizadores. Mas pouco se deu atenção à sua estrutura interna. Seria preciso elencar as edições, as tiragens e traduções para termos uma ideia exata da sua influência.

A obra de Lenin foi publicada fora da Rússia em março de 1902, pela Editorial Dietz de Stuttgart. O livro surgiu no momento em que as diferenças no interior do Partido Operário Social Democrata Russo se ampliavam. Elas levariam à cisão de 1903 que geraria as duas alas do partido: bolcheviques e mencheviques. Logo, a obra tem caráter polêmico e dialógico.

Com prefácio, cinco capítulos relativamente breves, conclusão e um anexo, Lenin inicia pelo conceito de liberdade de crítica. Ele é direto e usa Marx e Engels como fontes de autoridade. Também ataca a ideia de espontaneidade das massas e mostra como a consciência revolucionária deve ser elaborada no partido pelos operários não enquanto operários, mas enquanto teóricos do socialismo. Em famoso trecho de Que Fazer Lenin disse: “Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc”.

Os capítulos seguintes se dedicam a questões práticas: política sindical, superação dos métodos artesanais na política pela organização dos revolucionários e um plano de um jornal para toda a Rússia. A organização leninista lembrava o blanquismo no conteúdo, mas não na forma: o partido era de revolucionários profissionais.

A obra foi difundida como primeiro documento contra o reformismo e o oportunismo da II Internacional, mas também questionada como fonte de um modelo autoritário de partido que estaria já ultrapassado. Se o Movimento Comunista se tornou reformista em muitos lugares, o livro continuou sendo um guia para a montagem de estruturas partidárias eficientes, independentemente do fato da ação prática ser reformista ou revolucionária, como mostra a história dos partidos comunistas ocidentais. Assim, o livro contou mais como modelo de estrutura partidária do que como programa para a revolução.

No Brasil, o livro foi reeditado em 1978 com introdução de Florestan Fernandes no momento em que a primeira grande Greve do ABC paulista sugeria uma retomada do movimento operário e, para os marxistas, a necessidade de reorganização partidária.

Independentemente do juízo ideológico que tenhamos na atualidade, Lenin permaneceu como o único grande estadista que também foi um grande teórico, em qualquer época. Mas o notável livro Que Fazer é hoje mais um documento histórico do que um guia para a ação.

É que há uma similitude desconcertante entre a fábrica, o partido e o exército. Para Lenin, o proletariado se submeteria mais facilmente à disciplina porque foi forjado na escola da fábrica. Mas Daniel Guèrin certa vez acrescentou que a fábrica é uma escola de cooperação, mas também de submissão.


Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia.

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Ataques ao Bolsa-Família resultam do preconceito e cultura de desprezo pelos mais pobres

Walquíria Leão Rego, socióloga e professora de Teoria da Cidadania na Unicamp, acaba de lançar o livro Vozes do Bolsa-Família, juntamente com o filósofo italiano Alessandro Pinzani, no qual afirmam categoricamente que “o incômodo e as manifestações contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres”.

Para a socióloga, embora o programa Bolsa-Família seja barato, incomoda profundamente a classe-média por puro preconceito. Segundo Walquíria Rego, o Bolsa-Família foi “uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos”. Sua maior conquista foi tornar “visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos”.

Abaixo, entrevista na íntegra que a socióloga concedeu a Isadora Peron e que foi veiculada no Blog do Roldão Arruda, do Estadão, em outubro deste ano.

“PRECONCEITO CONTRA BOLSA-FAMÍLIA É FRUTO DA IMENSA CULTURA DO DESPREZO”, DIZ PESQUISADORA.
do Blog do Roldão Arruda com Isadora Peron | publicado originalmente em 22.out.2013

O Programa Bolsa Família fez 10 anos no domingo, dia 20. Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74 mensais, em média. Hoje se estende a 13,8 milhões de famílias e o valor médio do benefício é de R$ 152. No conjunto, beneficia cerca de 50 milhões de brasileiros e é considerado barato por especialistas: custa menos de 0,5% do PIB.

Para avaliar os impactos desse programa a socióloga Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro Pinzani realizaram um exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a 2011. Ouviram mais de 150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em lugares remotos e frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no interior de Minas.

O resultado da pesquisa está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado há pouco. Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres.

Os pesquisadores também rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz Walquiria, que é professora de Teoria da Cidadania na Unicamp.

Na entrevista abaixo – concedida à repórter Isadora Peron – ela fala desta e de outras conclusões do trabalho.

Como surgiu a ideia da pesquisa?

Quando vimos a dimensão que o programa estava tomando, atendendo milhões de famílias, percebemos que teria impacto na sociedade. Nosso objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez que o programa determina que a titularidade do benefício cabe às mulheres, era preciso conhecê-las. Então resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que continuam muito pobres, em regiões tradicionalmente desassistidas pelo Estado, como o Vale do Jequitinhonha, o interior do Maranhão, do Piauí…

E quais foram os impactos que perceberam?

Toda a sociologia do dinheiro mostra que sempre houve muita resistência, inclusive das associações de caridade, em dar dinheiro aos pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles não sabem gastar, vão comprar bobagem.” Então é melhor que nós, os esclarecidos, façamos uma cesta básica, onde vamos colocar a quantidade certa de proteínas, de carboidratos… Essa resistência em dar dinheiro ao pobres acontecia porque as autoridades intuíam que o dinheiro proporcionaria uma experiência de maior liberdade pessoal. Nós pudemos constatar na prática, a partir das falas das mulheres. Uma ou duas delas até usaram a palavra liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais liberdade”, disseram. E isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou um vale, como gostavam de fazer as instituições de caridade do século 19, você está determinando o que as pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas experimentarem coisas. Nenhuma autonomia.

Está dizendo que essas pessoas ganharam liberdade?

Estamos tratando de pessoas muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado. Quando falamos em mais autonomia, liberdade, independência, estamos nos referindo à situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa dizer de uma pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre ganhou mais liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao receber o benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência financeira. Independência financeira temos nós – e olhe lá.

O que essa liberdade significou na prática, no cotidiano das pessoas?

Proporcionou a possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas fazem? Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão. No Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão. Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo, gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de uma vez.

A que atribui a resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do benefício?

O Bolsa Família é um programa barato, mas como incomoda a classe média (ela ri). Esse incômodo vem do preconceito.

Fala-se que acomoda os pobres.

Como acomoda? O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer pessoa. Quem diz isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os maridos dessas mulheres normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um deles quando tinha sido a última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz uns dois meses, eu colhi feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão. Disse que dependia, que às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e vimos que ganhava menos num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem que se sujeitar a isso, praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos tem que ser desfeitos no Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária, mais democrática. É preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo.

No livro a senhora diz que essas mulheres veem o benefício como um favor do governo.

Sim, de 70% a 80% ainda veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo… Os desafios a partir de agora são muito grandes.

Qual é a sua avaliação geral do programa?

Acho que o Bolsa Família foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos. Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa talvez seja a maior conquista.

Entre as mulheres que ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora?

Uma das mais marcantes foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrida”.

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