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Timothy Snyder: sobre a tirania. Um panfleto em favor do neoliberalismo.

Foto: Capa de Sobre a tirania, de Timothy Snyder.

Lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2017, Sobre a tirania veio à público como resultado de um angustiante desabafo feito nas redes sociais, pelo historiador Timothy Snyder, tão logo foi confirmada a vitória de Donald Trump à presidência dos EUA em novembro de 2016. Seu lançamento em versão impressa (com traduções para diversas línguas) seria, a princípio, uma iniciativa que busca explicar a um público muito mais amplo como até mesmo democracias mais estáveis, como os EUA, podem acabar descambando para aventuras autoritárias.

Com graduação em História pela Universidade de Brrown (EUA), Snyder doutorou-se em História Moderna na Universidade de Oxford (Reino Unido) e rapidamente se tornou acadêmico no Centro de Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior nos EUA. Atualmente é professor de história em Yale, onde se dedica, sobretudo, ao estudo da história contemporânea, com destaque para os países do leste europeu.

De início, pelo subtítulo da obra, nota-se que a iniciativa do autor remete à necessidade de buscarmos na história recente da humanidade, mais especificamente, aquela vivida durante o século XX, lições para um presente no qual a tirania se apresenta como uma ameaça real. O autor, portanto, adota como guia norteador de seu trabalho uma antiga ideia de história, tornada famosa pelo orador e político romano Cícero, segundo a qual a História é mestra da vida (historia est magistra vitae), ou seja, a História deve nos servir como guia para evitarmos os erros do passado. Tanto é assim que as primeiras palavras de seu livro são: “A história não se repete, mas ensina” (p. 11).

Ainda que há muitas décadas os historiadores já venham criticando amplamente esta concepção de história, já bastante arraigada ao senso comum, como bem apontou o historiador Leandro Karnal, o principal problema da obra de Snyder não é este. O que realmente coloca todo seu trabalho a perder é o modo alarmista como ele recorre ao passado a fim de aterrorizar seus leitores para, logo em seguida, apresentar uma solução: o mundo é um lugar muito melhor quando controlado por democracias liberais. Por democracias liberais, entendam: liberalismo de cunho conservador estadunidense (na linha do partido Republicano – não Trump, mas John McCain).

De modo geral, Timothy Snyder busca evidenciar que tudo aquilo que se afasta do centro vai se tornando pernicioso, autoritário e tirânico quanto mais vai se aproximando dos extremos, seja pela ala esquerda ou pela direita. Ao fim da leitura do prólogo, de quatro páginas, já é possível traçar um esquema nada animador do livro, representado na imagem abaixo:

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 15.

Segundo Snyder, a história política do século XX foi marcada, sobretudo, pelas ameaças totalitárias do comunismo, de um lado, e do nazifascismo, de outro. O autor não vê problema algum em correlacionar comunismo (um genérico empregado para se referir ao stalinismo) e nazifascismo. Ao contrário, a leitura de sua obra deixa claro como estes regimes compartilham a mesma natureza perniciosa e anti-democrática, estando separados, apenas, por sua posição no espectro político: um na extrema esquerda, outro na extrema direita. A ideia parece ser justamente reforçar que tudo vai ficando mais autoritário conforme se distancia do centro.

O professor de Yale faz questão de ressaltar, a cada capítulo de sua obra, como comunistas, nazistas e fascistas representaram uma grande ameaça à democracia liberal durante o século XX e, até mesmo, mantém a narrativa para o período que sucedeu o desmantelamento da URSS (1989-1992). Dessa forma, reforça o argumento de que as ideias autoritárias legadas ao século XXI, tanto pelo nazifascismo quanto pelo comunismo, seguem influenciando as pessoas, sobretudo a partir da virada do século, com o desenvolvimento tecnológico verificado desde então.

Para reforçar sua argumentação, vai lembrando no correr dos capítulos a ascensão de partidos, movimentos e, até mesmo, a chegada legítima ao poder de governos autoritários ao redor do mundo (Itália, Áustria, Ucrânia, Hungria, Polônia, Brexit, EUA, Brasil, etc.). Tais exemplos são poderosos aliados na busca de persuadir os leitores de que a a atual onda de autoritarismo vem, de fato, de partidos políticos da extrema direita europeia, mas que esta é decorrente da continuidade de práticas cujas origens remontam os regimes comunistas da URSS e de suas aliadas no leste europeu. Casos marcantes dos atuais governos de Hungria e Polônia, para não falar da própria Rússia.

A conclusão dessa ideia leva-o a propor que, se nem mesmo os EUA, a quem muitos têm como o “farol da liberdade”, estão livres da influência perniciosa de sucumbir ao autoritarismo que estamos vivenciando, da qual a eleição de Trump é mero reflexo, devemos, então, estar sempre atentos aos “exemplos da história”, como fizeram os “Pais Fundadores da democracia estadunidense”, para interromper o império da tirania. E o que a história do século XX tem a nos dizer, segundo Snyder, é que a democracia liberal está em risco e que devemos nos manter atentos o tempo todo para protegê-la.

Nesse sentido, a melhor forma de defender a democracia é retrocedermos uns passos para manter as coisas como eram antes do surgimento dessa onda autoritária, isto é, logo após o fim da Guerra Fria ou, se preferir, o desmantelamento da URSS. Proteger a democracia significa se afastar dos extremos no espectro político e manter o foco nas reformas que democratizaram o mundo ocidental, isto é, nas políticas liberais reformistas (entenda-se neoliberais) tocadas durante as últimas quatro décadas.

Portanto, as vinte lições oferecidas por Timothy Snyder em seu livrinho são, na verdade, um guia ao leitor para medir o autoritarismo no cotidiano, isto é, um manual que nos ajuda a identificar atitudes ou ações de grupos autoritários em nosso dia-a-dia e de como esses autoritarismo vai se infiltrando, pouco a pouco, e envenenando a vida política das sociedades no sentido de promover o ódio e a desconfiança mútua, polarizando as opiniões. A estrutura de cada capítulo é praticamente a mesma:

  1. Indicação de crueldades e vilanias realizadas por pessoas e/ou grupos ligados aos regimes nazifascistas ou com o stalinismo;
  2. Busca de similaridades desses comportamentos com contextos atuais nos EUA e na Europa;
  3. Exemplo ou pensamento de um intelectual ou político liberal-conservador (social-democrata, democrata cristão) como alternativa razoável para a manutenção da democracia.

Václav Havel, dissidente comunista e ex-presidente da antiga Tchecoslováquia, irá aparecer como a maior referência do livro, sendo citado em diversos capítulos. Hannah Arendt também aparece com alguma frequência, mas sempre deslocada dos bons exemplos. Referências importantes são outros dissidentes, intelectuais ou jornalistas nascidos na União Soviética, ou em ex-repúblicas socialistas do leste europeu, tais como Leônidas Donskis (Lituânia), Leszek Kolakowski (Polônia), Peter Pomerantsev (URSS).

Por fim, cumpre destacar o panfletarismo do autor, que chega a pontos realmente embaraçosos, como na lição do capítulo onze (investigue). Aqui o autor busca apontar a importância de que as pessoas sempre busquem investigar a informação que estão recebendo. Seria, de fato, de grande ajuda relembrar a importância da “investigação” e da veracidade dos fatos, entretanto Snyder o faz avalizando apenas a informação produzida e divulgada por jornalistas e seus meios de comunicações impressos (quanto maiores, melhores). Defende uma posição de que todo jornalismo de qualidade deve ser muito bem pago e de que não existe esse negócio de “informação gratuita”. Quem quiser informação de qualidade, deve estar disposto a financiá-la. Além disso, Snyder não trata da produção e disseminação do conhecimento científico e, pior, deixa evidente que a democratização dos meios de comunicação é, para ele, sinônimo de autoritarismo e perda de qualidade.

Outro exemplo que empobrece a obra se encontra na vigésima e última lição do livro, onde o Snyder se agarra a um clichê macabro para afirmar que alguns de nós devem estar dispostos a morrer pela liberdade para que todos não pereçam sob a tirania. Para além da miopia do autor de não conseguir enxergar outra forma de organização social não tirânica que não a democracia liberal, faltou também explicar a qual liberdade devemos estar dispostos a dar nossa vida: seria a liberdade de mercado? Se for, não contem comigo!

Foto: Timothy Snyder. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 111.

Fica a triste sensação de um livro que poderia ter sido um melhor instrumento de reflexão sobre a ascensão do autoritarismo ao redor do mundo, mas que fracassou grandemente ao assumir a forma de um vergonhoso panfleto em favor do neoliberalismo. Talvez tenha sido esperar demais de um livro que nasceu de um mero desabafo nas redes sociais, fruto do ressentimento e da frustração de quem via, atônito, Donald Trump subir ao poder nos EUA. Realmente, dói muito quando acontece em nosso próprio quintal. Entretanto, é natural que tenhamos expectativas altas, mesmo em casos como estes, de desabafo e frustração, quando o autor é um intelectual tão bem formado e titular em uma universidade tão prestigiosa como Yale. Mas nem sempre, como no jornalismo, o tamanho e o prestígio das instituições conseguem dar garantias certas da qualidade de tudo aquilo que irá sair de suas prensas. Uma lástima!

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