É célebre a frase do filósofo alemão Karl Marx na sua crítica feita a Hegel acerca da essência da história. Segundo Hegel, os grandes eventos históricos tendem a repetir-se duas vezes, ideia que Marx completa de forma irônica logo no primeiro parágrafo de sua obra O Dezoito Brumário. Marx acrescenta que seu colega esqueceu-se de assinalar que estes tais eventos ocorrem a princípio como tragédia, para depois ocorrerem como farsa.
No contexto em que Marx escreve, os eventos históricos que ele tem em mente são bem específicos: O Golpe Napoleônico em 1799 e o Golpe de Luis Bonaparte em 1851. Para ilustrar bem a diferença existente entre estes dois eventos históricos e principalmente entre os sujeitos que os protagonizaram, basta lembrar que a França atribuía a Napoleão a tarefa de levar os ventos da liberdade por toda a Europa através de suas conquistas, mesmo que, sob muitos aspectos, contrariasse os ideais da Revolução Francesa. No caso do Bonaparte do meio do século XIX, este tinha sobre si o desdém da maioria dos franceses, expresso na alcunha que o genial Victor Hugo então lhe atribuiu: Napoleão, o pequeno.
A ironia de Marx, busca mostrar justamente a inexorabilidade do específico no devir histórico. Não há repetição dos feitos históricos engendrados pela humanidade, o que pode haver de mais próximo a isto é apenas uma caricatura do evento original, mas que tem em si sua própria especificidade, sendo, portanto, outro evento, fruto das necessidades imperiosas do século que o permite nascer e não daquele que o inspirou no passado. Desta forma, independente do juízo de valor que possa se atribuir ao evento (categorias como bom ou ruim para o desenvolvimento da humanidade de algum modo), ele não vai se repetir novamente, uma vez que os homens ao fazerem a história não a fazem como querem.
Posto isto, cabe fazer uma análise etimológica dos termos utilizados por Marx para ironizar a percepção de historia hegeliana. Neste sentido, a busca pela carga semântica que cada palavra carrega consigo, nos ajudará a compreender a crítica feita por Marx.
De acordo com alguns dicionários etimológicos em língua portuguesa, a palavra tragédia, do grego tragikós, nos remete ao que seria uma peça de teatro em versos, e que termina, em regra, por acontecimentos fatais. Nos mesmos dicionários consultados a palavra farsa, de origem latina, farsus se refere também a uma peça teatral, sendo, porém, esta de caráter cômico, vivaz, irreverente e burlesca, que ao invés de terminar com fatalidades, termina sob o signo da mentira ridícula. Uma peça que ao invés de levar à dor devido à inexorabilidade dos fatos, leva ao riso devido a sua carga marcadamente leviana e superficial. Eis, portanto, a definição de cada uma das coisas das quais se falará aqui. Pois assim como queria Cícero, “que tudo aquilo sobre o que vai se falar seja antes definido na sua essência”.
* * * * *
A justificativa para uma definição apurada de conceitos seja no que concerne a etimologia, seja no que tange a definição de conceitos históricos, é que vamos falar sobre um exemplo típico do que Marx chamaria de farsa histórica. Tentaremos entender aqui do que se trata realmente o desejo de “refundação” de um partido político, fruto do AI-2, portanto do limiar do episódio mais antidemocrático de que se teve notícia nesta república, a Ditadura Militar oriunda do Golpe de 1964.
Trata-se da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que naquela ocasião reunia os partidários do golpe. Não senhores. Não estamos falando da reconstrução histórica de um produto do engenho humano, o que seria perfeitamente salutar e necessário para um entendimento mais apurado daquele momento e das necessidades que o fizeram nascer. Estamos falando da utilização da história como ressuscitadora de um cadáver que jaz há muito em estado de putrefação avançado, e que mesmo assim se pretende que se levante exalando o odor insuportável de matéria morta em um mundo de vivos. Uma imagem horripilante de um monstro desfigurado pela ação do tempo que já não age mais por si, mas como uma marionete dantesca que molesta o passado, entristece o presente e faz perder a fé no futuro. Estamos diante de uma mutilação da história.
A alegoria dicotômica feita por Marx imediatamente nos vem a mente. Em um primeiro plano, a fundação do ARENA por homens que acreditavam em ameaças vindas do leste, que tinham pesadelos com as ideias comunistas e que viviam em um mundo bipolar, cuja ameaça de guerra era algo permanente. Um mundo onde não se permitia ser neutro e no qual as possibilidades de escolha eram extremamente limitadas. Estes homens, diante das necessidades imperiosas daquele tempo se reúnem e fundam este partido.
O ARENA, em 1964, é filho de seu tempo, assim como as mentes que o engendraram. Eis, portanto, na alegoria de Marx, o evento em si, dotado da sua especificidade, forjado pelas circunstâncias e contingências de um mundo que precisa dele tal como é. Independente do juízo de valor que venhamos a atribuir a ele, nunca poderemos dizer que o nascimento deste partido, naquelas circunstâncias, não se justificava historicamente. Assim como Napoleão levava consigo o corolário contra o Antigo Regime enquanto marchava pela Europa mudando o curso da história, o ARENA reunia guerreiros em torno de si para resistir ao demônio do comunismo, garantido a ordem através da força: A democracia não sobreviveria naquele mundo inóspito da Guerra Fria. O povo sempre precisa de líderes em momentos cruciais como este para salvaguardar os valores da nação e, em momentos mais brandos, devolvê-los ao povo novamente. Há que se perder fatalmente as liberdades, há que se perder muita coisa em nome do bem comum. O ARENA foi uma necessidade histórica que traz consigo algumas fatalidades como o fim da democracia, da liberdade partidária, ele é, de fato, a tragédia de Marx.
E o ARENA de 2012, o que é? Nada. É algo esvaziado do seu significado original. Não há comunismo logo, qual é o inimigo? O povo não corre perigo, logo qual sua função? Qual a necessidade de um partido nos moldes do ARENA em uma republica democrática com incontáveis partidos e possibilidades infinitas de se criar outros tantos de uma hora para a outra? Porque ressuscitar um partido oriundo de uma conjuntura política totalmente diferente da atual, sendo que é possível criar um novo de acordo com as mais variadas premissas ideológicas? Qual o lugar de um partido como este, depois da constituição de 1988? Nenhum. Eis a farsa de Marx: o ridículo, o sem propósito, a caricatura que faz rir expressando não uma volta do passado, mas sim um momento lamentável do presente no qual a juventude quando não é apática em termos de práticas políticas é absurdamente burra no que concerne às ideias políticas.
Os garotos do sul não entendem para que serve a história, não entendem como se faz a história: Não se planeja fazer a história, simplesmente se faz. Toda tentativa de calculo histórico é ridícula, porque a história, sendo a ciência do homem, não está sujeita as mesmas regras das demais ciências, dado que seu objeto é, mutatis mutandis, pautado pela contingência. Neste caso, resta apenas informar-lhes que é impossível ressuscitar o ARENA, e que ao tentá-lo estarão construindo algo novo, pois não está no humano viver no passado. Resta informar-lhes que o tempo da humanidade é o presente. Resta convidar-lhes a atuar na história como tragédia e esquecer o ridículo desta farsa.