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[Blog da Boitempo] A ideologia vermelha do ENEM

O Hum Historiador abre espaço para repercutir o excelente texto do professor Christian Ingo Lenz Dunker, publicado no Blog da Boitempo ontem (28).

A IDEOLOGIA VERMELHA DO ENEM

por Christian Ingo Lenz Dunker

Nos anos 1990 a Folha de São Paulo era considerada um jornal de esquerda. Diferente do Estadão, ela ocupava um lugar ativo na redemocratização do país, incluindo-se no movimento das Diretas Já e, posteriormente, dos Caras-pintadas que redundou na derrubada de Collor. Nesta época tornou-se um íconea propaganda que começava com uma imagem ambígua, qual pontos ou pixels negros dispostas na tela. Enquanto a câmera se afasta ouvimos que: “este homem pegou uma nação destruída, recuperou a economia e devolveu orgulho a seu povo”, reduziu a inflação, dobrou o produto interno bruto, aumentou o lucro das empresas, tudo isso subsidiado em números e dados. Subitamente forma-se a imagem e descobrimos que a figura em questão é Adolf Hitler. Mensagem final: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso é muito importante tomar muito cuidado com a informação no jornal que você recebe.”

Vinte e sete anos depois leio a coluna de Hélio Schwartsman comentando o Enem de 2015, e percebo como o anúncio que ganhou o Leão de Ouro em Cannes permanece atual. Porta voz do movimento que quer a política fora da Educação e sóbrio representante da tendência avaliativa como instrumento para modificação da educação no país, Hélio aponta neste Enem um “generoso espaço para tópicos e autores caros à esquerda”, uma vez que 31% dos autores da prova de humanas jogam no time da esquerda (7.8% da prova total). Foi precisamente aqui que me lembrei da peça de propaganda, mas agora em versão mais estatística. Ou seja, se 31% são de esquerda, 69% são de direita? É possível contar mentiras dizendo a verdade, ainda que os números eles mesmos não mintam jamais. Por este raciocínio a neutralidade matemática impunha que faltavam ainda 19% para que a esquerda tivesse 50% do Enem.

Nosso bacharel em Filosofia pela USP, argumenta que o Inep devia buscar “ativamente uma certa neutralidade ideológica no conjunto das questões”. Aqui o problema não é a matemática, mas o conceito. Desde muito tempo não se considera mais que podemos distinguir conteúdos ideológicos, politicamente tendenciosos, de sua contrapartida científica, neutra e factual. A ideologia está nas articulações, nas relações, no recorte dos fatos, na escolha dos temas, nunca apenas nos autores brutos e suas escolas de pensamento. Eu diria que há pelo menos 27 anos a própria Folha de São Paulo sabe muito bem disso. O beabá no assunto reza que toda definição de ideologia é ela mesma ideológica. As ciências humanas caracterizam-se por assumir isso como traço imanente de seu objeto. Não estudamos apenas fenômenos, mas interpretações que os homens criam para os fenômenos. Nesta época de crescente disponibilização e barateamento de informação torna-se cada vez mais crucial desenvolver, em nossos alunos, a capacidade para operar criticamente com interpretações. Aqui o truque básico, contra o qual eles devem estar advertidos, quando se trata de ciências humanas, é a crença na existência de discursos neutros, imparciais e científicos, no sentido de se destacarem angelicalmente de todos os interesses humanos. Ora, sabemos que este é o sonho de toda ideologia: infiltrar interesses políticos como se estes fossem fatos. Portanto, desenvolver ativamente uma neutralidade ideológicano Enem, requer um conceito melhor de ideologia.

Há uma diferença crucial entre esquerda e direita. A esquerda tende a politizar os fatos, enquanto a direita tende a despolitizá-los. Por isso a esquerda dirá que a direita faz política por baixo dos panos (é o conceito clássico de ideologia), enquanto a direita dirá que a esquerda torna políticos assuntos que são técnicos (é o conceito ofensivo de ideologia como algo que corrompe, seduz e manipula a alma). Quando nosso colunista afirma que “vale a pena procurar um ‘pedigree’ dos autores citados” seria preciso perguntar qual o conceito de raça aqui empregado? Quantas classes devemos contar neste conjunto?

Surge então uma dificuldade. A esquerda joga com seu time a céu aberto, nomes impressos nas camisas, patrocinadores e números claros às costas, como no filme do Monty Python: Marx com a 10, Žižek na ponta esquerda, Judith Butler com a sete, Paulo Freire no meio; na zaga Sartre e Simone de Beauvoir (claro, foram filiados ao Partido Comunista Francês), nas laterais Karl Manheim e a Escola de Frankfurt. Agamben está no banco de reservas, sendo observado pelo técnico Lenin, junto com todo surrealismo francês. Darwin também, mas contundido – afinal, Marx dedicou O capital, ao autor de A origem das espécies. Foucault foi reprovado no teste de vestiário quando descobriu-se um inchaço neoliberal em seu tendão de Aquiles.

O problema subsequente será discernir o pedigree das outras raças: Jesus Cristo, por exemplo, joga na direita da Renovação Carismática ou na esquerda da Teologia da Libertação? E os que trajam a camisa da religião por cima, mas por baixo vestem o colete apertado do dinheiro, das armas e da exploração econômica da fé. Outro vira lata: Keynes, que advogava a participação do Estado na Economia, é um vermelhinho enrustido ou um liberal confesso? Consideremos que um time assim escalado poderia equilibrar o campeonato da verdade: Heidegger (que foi nomeado reitor de uma universidade nazista) no gol, Ezra Pound (que falou na rádio italiana em favor do fascismo) na lateral direita, Joyce (que batia na mulher) na zaga, Adam Smith e Saint Simon no meio campo (ambos considerados revolucionários em suas épocas, mas depois viraram casaca). No ataque está a geração inteira de 1968, libertários na juventude, que se tornaram conservadores quando entraram para o time titular. Desafio qualquer um a escalar um time que não possa ser qualificado como tendencioso pelo time adversário. Contudo é esta ingenuidade abissal que move os que querem a política fora dos conteúdos educativos.

E quanto ao time da Folha seria o caso de perguntar se ele fez a lição de casa que quer aplicar aos outros. Está com mais ou menos do que 31% de esquerdistas entre seus articulistas?

Exagero nos exemplos apenas para mostrar que nunca deveríamos pensar a ideologia como inclusão das ideias aos seus autores, da pessoa ao grupo ao qual ela pertence, mas a partir da articulação precisa de suas ideias em contexto. Neste caso todas as questões do Enem exigiam interpretação de textos, ou domínio de conceitos, critérios de rigor em ciências humanas. Bizarro que a direita pregue a retórica da suspensão da oposição entre direita e esquerda, para, na primeira ocasião, recorrer a ela quando está perdendo. Pior ainda: desconhecer a diferença entre militância, conversão e manipulação com a crítica de conceitos e o estudo de textos é inaceitável para quem quer especular sobre educação. Aliás, não há nada de essencialmente novo em sua pequena nota sobre o assunto. Escolhi este texto justamente porque ele representa bem certo pensamento médio sobre a matéria.

O tema da redação do Enem foi a violência contra a mulher no Brasil. Aqui o encaminhamento dado por nosso articulista é menos condenatório. Se oequívoco anterior era considerar que autores de esquerda, antes de serem pensadores, cientistas, literatos ou educadores são pessoas de esquerda o erro subsequente é deslocar este raciocínio para temas. Passamos agora ao registro dos temas sociais, que seriam propriedade privada da esquerda, enquanto a direita defende, vamos dizer assim, a economia e o desenvolvimento.

Neste ponto, nosso egresso uspiano deixou passar um “frango” clamoroso para todos aqueles que se interessam por educação. Situações de avaliação não são apenas competição entre os melhores para hierarquizar vencedores e perdedores. Seu propósito não é aumentar o ressentimento social ou gerar métricas de desempenho. A avaliação é um momento de aprendizagem e a prova tem um sentido pedagógico. Ela instrui o aluno e o convida a pensar, dirigidamente, sobre um problema. Por isso a escolha do tema não é a determinação anódina de um tópico a discorrer, como se a cultura fosse um menu de trivialidades inconsequentes.

A violência contra a mulher é justamente um destes problemas urgentes que carecem de visibilidade pública, que vivem e sobrevivem de segredos internos, mentiras privadas e amores mal geridos. É justamente um tema que incomoda porque não sabemos bem como falar sobre ele, ou seja, uma escolha exata e acertada para provocar alunos aderidos à servidão curricular e desacomodar colunistas que tirariam nota vermelha no Enem deste ano.

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Empresário canadense aplaude notícia de que 3,5 bilhões de pessoas vivem na pobreza

Dono de uma fortuna estimada em US$ 300 milhões, o empresário canadense Kevin O’Leary afirmou que a notícia de que 3,5 bilhões de pessoas vivem na pobreza trata-se de uma notícia fantástica que deve ser aplaudida, pois tal realidade serve de inspiração aos mais pobres para que se esforcem e queiram prosperar para fazer parte da turma do 1%.

Publicada originalmente no Blog do Nassif na última quinta-feira (23), a notícia reforça um dos corolários da classe média e dos ricos em todo o mundo, o discurso ideológico da meritocracia. Os pobres, só são miseráveis, porque não se esforçaram para prosperarem e serem ricos. Se atualmente existem 3,5 bilhões de pobres sem condições, praticamente, de se alimentar no mundo, a culpa é única e exclusivamente deles, que devem se inspirar no exemplo dos mais ricos para ingressarem no clube dos bilionários.

Notícia hedionda e nauseante, só me faz lamentar pela humanidade e aumentar meu pessimismo no futuro de nossa espécie. Como se questionou Leonardo Boff ao analisar as mensagens enviadas pelos “rolezinhos”: “Esse tipo de sociedade pode ser chamada ainda de humana e civilizada? Ou é uma forma travestida de barbárie?” E ele mesmo responde: “esta última lhe convém mais”. Em outras palavras, essas tiradas de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad: “The horror, the horror”.

Abaixo, a íntegra da notícia tal como publicada no Blog do Nassif, com o vídeo disponibilizado no YouTube do programa onde o empresário celebrou a notícia.

EMPRESÁRIO CANADENSE COMEMORA NOTÍCIA DE QUE 3,5 BI DE PESSOAS VIVEM NA POBREZA
por Stanilaw Calandreli para o blog do Nassif

No programa “The Lang and O’Leary Exchange“ da TV CBC canadense, de 20 de janeiro, ao ser discutido o relatório da ONG britânica Oxfam onde diz que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial (Ver aqui na BBC Brasil), o coapresentador, Kevin O’Leary, um globalista declarado e empresário bem sucedido, respondeu à apresentadora Amanda Lang: “É uma grande coisa, porque isso inspira todo mundo. Faz com que as pessoas olhem para o 1% e diga – quero fazer parte dessa turma – e passe a trabalhar duro para chegar ao topo. É uma notícia fantástica, é claro que eu aplaudo… o que poderia estar errado com isso?”

A apresentadora respondeu com um momento de silêncio e perguntou: “Verdade?”. E continuou: “Então, uma pessoa que vive na África com 1 dolar por dia, ao acordar de manhã, deva ela pensar “eu serei Bill Gates”?

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A Palestina nos livros escolares israelenses: ideologia e propaganda na educação

Nurit Peled-Elhanan é professora de língua e educação na Universidade Hebraica de Jerusalém e, após a morte de sua filha em um atentado suicida em 1997, se transformou em uma crítica ferrenha da ocupação israelense nos territórios palestinos. Em novembro de 2011 lançou um livro intitulado “Palestine in israeli schoolbooks” (A Palestina nos livros escolares israelenses: a ideologia e a propaganda na educação), no qual argumenta que os livros didáticos utilizados no sistema educacional de Israel marginalizam os palestinos e são idealizados para preparar as crianças israelenses para o serviço militar.

Em seu livro, Peled-Elhanan analisa os livros didáticos israelenses, estudando seu uso de imagens, mapas e linguagem, especialmente nos assuntos voltado a história, geografia e estudos cívicos e o vídeo abaixo é o fruto de uma entrevista que a Alternate Focus fez com a professora Elhanan sobre sua pesquisa.

Durante a entrevista, Nurit Peled-Elhanan expõe em detalhes como os livros didáticos israelenses são elaborados com o objetivo de desumanizar o povo palestino e fomentar nos jovens estudantes israelenses a base de preconceitos que lhes permitirá atuar de forma cruel e insensível com o mesmo durante o serviço militar. Esta, aliás, foi um dos problemas que motivou a pesquisadora e realizar seu trabalho, isto é, entender como as crianças israelenses que são supostamente educados com base em valores muito ilustrados e humanistas, acabam se tornando “monstros horrorosos” no exército.

Segundo a pesquisadora, as construções de mundo feitas a partir dos livros didáticos, por serem as primeiras a se sedimentarem na mente das crianças, são muito difíceis de serem erradicadas. Daí a importância que o establishment israelense dedica à ideologia a ser transmitida nos livros didáticos. Neles, os palestinos nunca são apresentados como seres humanos comuns. Nunca aparecem em condições que possam ser consideradas normais. Para Nurit Peled-Elhanan, não há nesses livros nem sequer uma fotografia de um palestino que mostre seu rosto. Eles são sempre apresentados como constituindo uma ameaça para os judeus.

Há uma parte da entrevista onde a pesquisadora explora a representação da Palestina em mapas sobre o Estado de Israel presentes nos livros escolares israelenses.

Nesta parte da entrevista Nurit Peled-Elhanan deixa claro que a maioria dos livros didáticos israelenses, quando mostram o mapa de Israel, não mostram as fronteiras reais daquele Estado, mas sim o que é chamado de “Grande Terra de Israel”, o que inclui a Palestina dentro dessa concepção de território. Tal concepção confunde os estudantes que, como diz a pesquisadora, a três gerações não sabem direito quais são as fronteiras reais de Israel, uma vez que conhecem apenas a Grande Terra de Israel. Por fim, fala da outra estratégia adotada pelos livros didáticos que é não representar os palestinos de modo algum nos mapas de Israel, deixando um espaço em branco onde deveria aparecer a Palestina, trabalhando com a ideia de que se aquela região está em branco, ela não foi ocupada, isto é, uma região que não possui habitantes e está a espera de ser habitada.

De fato uma pesquisa bastante reveladora das estratégias de Israel para aniquilar qualquer possibilidade de existência de um Estado Palestino. Vale a pena conferir a entrevista inteira e saber mais sobre o assunto a partir de um ponto de vista que normalmente não chega até nós. Deixo aqui minha recomendação.

MAIS VIDEOS DE NURIT PELED-ELHANAN

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O uso da Igualdade como instrumento de dominação

Foto: Antonio MilenaLendo uma entrevista de Maria Sylvia de Carvalho Franco, encontrei um trecho bastante interessante que gostaria de compartilhar por aqui. Neste trecho a  autora fala, no contexto do Brasil do século XIX, de como o conceito de igualdade acabou emergindo no processo de dominação sócio-econômica vinculado ao conceito e ao direito de propriedade, cumprindo a função de encobrir e inverter as coisas, isto é, de como o ideário liberal-burguês apareceu no processo de constituição das relações de mercado e foi utilizado como instrumento de dominação para “encobrir e inverter” a realidade.

“As representações igualitárias eram necessárias para sustentar o sistema de dominação e encobrir as disparidades. (…) É necessária a premissa de uma sociedade onde todos são potencialmente iguais, mas desigualmente capacitados para empreender sua conquista, a fim de legitimar os desequilíbrios de condição social e a exploração”. 

Ao ler este trecho, não pude deixar de achar bastante curioso como este mesmo uso do ideário liberal-burguês, que já era bem operado pelos fazendeiros de café no século XIX, ainda hoje continua sendo empregado de modo semelhante em diversas situações. Como publiquei por aqui recentemente, posso utilizar como exemplo a marcha do auto-denominado Exército Anti-Cotas que clamava justamente por igualdade para justificar sua não concordância com a adoção do sistema de cotas nas universidades públicas.

Neste caso específico, é bastante paradigmático ver como um certo grupo social (ou deveria usar classe?) ao ver ameaçado aquilo que os permite dominar outros grupos, apela justamente para o argumento da igualdade para classificar a lei que sanciona as cotas sociais e raciais nas universidades de injustas. Quer dizer, quando a classe média percebe que essa lei coloca em risco justamente aquilo que os torna “desigualmente capacitados” em relação a outros grupos e, justamente por isso, mais aptos para ocuparem as melhores posições na sociedade, começam a gritar e espernear, alegando que tal lei é injusta, pois os trata com desigualdade. Curioso, não???

Impossível não recordar de parte do depoimento de Washington Novaes no filme O Povo Brasileiro, baseado na obra de Darcy Ribeiro, ao falar sobre a matriz Tupi na formação de nosso povo. No video abaixo, que já utilizei em outro post, separei trechos que nos permitem comparar a igualdade do ideário liberal-burguês e a igualdade vivida pelos índios em suas sociedades. Para ver a parte mais diretamente relacionada ao que estamos tratando aqui, basta ver um trecho de 1min15 desse vídeo, AVANÇANDO até os 6:00 minutos e assistindo até os 07:15.

Quando publiquei o trecho do texto da professora Maria Sylvia no meu perfil do facebook, logo em seguida o amigo Arthur Voltolini deixou um comentário bastante pertinente:

“é essa “igualidade” que fundamenta o discurso que afirma que no limite o pobre é culpado pela própria pobreza. E os “causos” de superação pessoal servem pra sedimentar essa idéia.”

Achei bastante importante essa lembrança dos casos de superação pessoal, pois estes servem de propaganda para que se use a exceção como regra e convença as pessoas de que o tal ideário liberal-burguês de igualdade é justo e não falacioso. Quantas vezes não vemos nos telejornais globais (e similares), propaganda dos poucos estudantes de escola pública que às custas de um esforço quase sobrehumano, conseguiram passar em um vestibular de universidade pública à despeito de sua condição social e da consequente oportunidade educacional nas escolas de ensino fundamental e médio de baixa qualidade. Tais programas retiram parte do mérito exclusivamente pessoal desses estudantes e o transferem para o sistema de ensino público, alegando que se aquele indivíduo foi capaz, os demais que não conseguem tal proeza e fracassam miseravelmente simplesmente porque não se esforçaram o suficiente. Como disse Voltolini, “o pobre é o culpado pela sua pobreza”, ou neste caso, o estudante de escola pública é o culpado por não ingressar na universidade pública não pela desigualdade de oportunidade na educação, mas por sua falta de esforço (a velha alcunha de indolente, preguiçoso).

A amiga Juliana Reis lembrou de um post recente do Blog do Sakamoto sobre este assunto, intitulado Tenho medo das histórias de superação individual. Como a do Joãozinho. Abaixo apenas um trecho do primeiro parágrafo:

“Em um post sobre que educação queremos e como chegaremos lá, escrevi que estava farto daquele papinho do self-made man de que professores e alunos podem conseguir vencer, com esforço individual, apesar de toda adversidade, “ser alguém na vida”. Nessas horas, para embasar o argumento, surge sempre histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de lama com insetos, tomava banho em rios fétidos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”. Rola até lágrima ao ouvir uma história assim.”

Recomendo a leitura do post na íntegra e que, ao fim da leitura desse post, procurem refletir nesse ideário falacioso de que somos realmente tratados com igualdade e, talvez, ir mais além e pensar na “santa de pau-oco”, a tal da democracia. Sei que é desanimador e, até mesmo, paralizante pensar em tais ideários como instrumentos para garantir a dominação de classe sobre classe, mas é só tomando consciência dessa utilização que podemos nos posicionar criticamente numa sociedade que, o tempo todo, nos oprime e explora.


TEXTO FONTE: As Ideias Estão no Lugar
AUTORA: Maria Sylvia de Carvalho Franco


PS: Como lembrou a colega Tereza nos comentários desse post, a professora Maria Sylvia de Carvalho Franco foi signatária de um manifesto antirracialista e contrário as cotas enviado ao STF em abril de 2008. A relação entre as representações igualitárias para sustentar o sistema de dominação, presentes no texto da professora, com o clamor de igualdade dos grupos anti-cotas ao criticar a decisão do STF em considerar constitucional a adoção do sistema de cotas, é de minha responsabilidade.

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[Textos Clássicos] A Ideologia Alemã

Atendendo a sugestão da amiga e também historiadora Célia Regina, estou inaugurando uma nova página no blog que é a de TEXTOS. A ideia é publicar neste espaço alguns textos clássicos da historiografia cuja leitura foi recomendada pelos professores do curso de História da FFLCH-USP.

A IDEOLOGIA ALEMÃ

Em homenagem ao 129º ano do falecimento de Karl Marx, ocorrida em 14/03/1883, o texto de estréia da página é extraído da obra A ideologia alemã, escrita em parceria com seu amigo Friedrich Engels.

Filósofo alemão, Karl Marx nasceu em Trier em 5 de Maio de 1818 e morreu em Londres a 14 de março de 1883. Estudou Direito nas universidades de Bonn e Berlim, mas dedicou-se principalmente a filosofia hegeliana, tendo se formado em 1841, com a tese Sobre as diferenças da filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro.

O livro A ideologia alemã, foi escrito nos anos de 1845-46 e, censurado, não foi publicado em uma edição completa até o ano de 1932.

Segundo o site da Boitempo Editorial, que recentemente publicou uma edição integral do livro, A ideologia alemã:

(…) é considerada por muitos estudiosos a obra de filosofia mais importante de Marx e Engels. Representa a primeira exposição estruturada da concepção materialista da história e é o texto central dos autores acerca da religião. Nela eles concluem um acerto de contas com a filosofia de seu tempo – tanto com a obra de Hegel como com os chamados “hegelianos de esquerda”, entre os quais Ludwig Feuerbach. Esse ajuste passou antes pelos Manuscritos econômico-filosóficos, por A sagrada família, por A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, para alcançar em A Ideologia Alemã sua primeira formulação articulada como método próprio de análise. 

A crítica – quase toda em tom sarcástico – dos dois filósofos ridiculariza o idealismo alemão e articula as categorias essenciais da dialética marxista (como trabalho, modo de produção, forças produtivas, alienação, consciência), constituindo assim um novo corpo teórico.  

FONTE: Boitempo Editorial

O trecho selecionado é apenas um aperitivo, já que tratam-se apenas de algumas poucas páginas do primeiro capítulo no qual Marx & Engels  fazem a crítica ao filósofo alemão Feuerbach, estabelecendo uma oposição entre as concepções materialista e idealista.

Como não poderia deixar de ser, como se pode supor pelo nome deste blog, destaco aqui um pequeno trecho, que foi riscado no manuscrito original, no qual Marx fala da história como ciência:

1. A ideologia em geral, e a filosofia alemã em especial

Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos. Pode ser dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, entretanto, são inseparáveis; enquanto existirem os homens, sua história e a da natureza se condicionaram reciprocamente. A história da natureza, que designamos como ciência da natureza, não nos interessa aqui; em compensação, teremos que nos ocupar pormenorizadamente da história dos homens; com efeito, quase toda a ideologia ou se reduz a uma concepção falsa dessa história, ou procura fazer dela total abstracção. A própria ideologia não passa de um dos aspectos dessa história.

Espero que gostem desta novidade e que os textos ali disponíveis possam ser de proveito não apenas para quem estuda História, mas para todos que se interessem por boa leitura.

DOWNLOAD DO TEXTO

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