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Indicação, comentários ou resenhas de livros.

Nem tudo era italiano…

Este brilhante trabalho foi apresentado originalmente em 1995 como dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP com o título : “A população pobre nacional na cidade de São Paulo – virada do século (1890-1915). Foi publicado pela Annablume/FAPESP apenas três anos depois da defesa, em 1998 e, dez anos depois, já ganhava sua terceira edição, que é esta da foto ao lado.

Carlos José Ferreira dos Santos é historiador e professor universitário da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus-BA, tendo se graduado em história pela Unesp-Franca, mestrado pelo Programa em Estudos Pós-Graduados em História pela PUC-SP e doutorado pela FAU-USP.

Nem tudo era italiano é uma pesquisa bastante original sobre as populações pobres nacionais que viviam na cidade de São Paulo na virada do século XIX para o XX.

Intrigado pela imagem da São Paulo que emergia tanto de documentos oficiais da época quanto da historiografia produzida no período posterior, Carlos José parte da pergunta-chave “Era tudo italiano em São Paulo na virada dos séculos XIX e XX” para tentar localizar onde viviam e o que faziam os brasileiros que estavam em São Paulo na virada do século. Portanto, um dos objetivos do trabalho é demonstrar que, ao contrário do que era veiculado pela elite paulistana da época, através dos censos, anuários e demais documentos oficiais produzidos pelos governos municipais e provinciais, nem tudo era italiano nesta cidade ente os anos de 1890-1915.

No decorrer de sua pesquisa, Carlos José mostra a presença de outras cores e matizes de outras experiências étnicas e culturais, como bem disse Heloísa de Faria Cruz na apresentação do livro, e complementa:

“Questionando à contrapelo à Belle Époche paulistana, desvela a construção ‘em negativo’ de outros sujeitos, os pobres, ‘todos pretos ou quase pretos de tão pobres’, os trabalhadores pobres nacionais”.

Além das fontes oficiais, Carlos José também faz bom uso de memorialistas, cronistas, periódicos e fotografias da época como fontes importantíssimas no intuito de identificar onde estavam as camadas populares nacionais na cidade de São Paulo, propositalmente suprimida e excluída do progresso da desejada metrópole. O esforço do autor é localizar, nos silêncios destes documentos ou escondidos nos cantos das fotos, como se fossem figurantes, quem eram esses sujeitos esquecidos da história, onde eles trabalhavam, como subsistiam e, de sua maneira, como resistiam às transformações impostas por uma São Paulo que crescia cada vez mais e que, através deste crescimento, buscava a substituição de toda esta camada social composta por negros, mestiços, caboclos, mulatos, índios e caipiras, dentre outros, pelos celebrados imigrantes europeus (italianos, na maioria).

No primeiro capítulo, “Os elementos indiscutíveis de nosso progresso”, o autor busca fazer uma recuperação crítica do projeto modernizante e de branqueamento para a cidade. Nesta parte inicial do trabalho suas fontes principais são as estatísticas, nas quais analisa minuciosamente os censos e anuários, buscando os silêncios, omissões e inversões, para dar visibilidade as transformações étnicas e demográficas da população paulistana num período mais alargado do que o da pesquisa (1872-1920).

O capítulo II, intitulado“Em busca da presença dos nacionais pobres”, é o mais marcante da obra, pois nele o autor busca estabelecer os espaços e modos de viver e pensar das populações nacionais pobres, relacionando suas vivências aos processos de luta que constituíam a cidade. Ainda mencionando a apresentação de Heloísa Faria Cruz:

“Através da leitura detalhada de fotos que, em geral, destacavam o progresso e a modernindade da vida urbana, em segundo plano, nos cantos, fora do foco central, o autor identifica os homens negros descalços transportando sacos, conduzindo carroças, mulheres com tabuleiros, trouxas ou embrulhos, crianças descalças em trajes caseiros.
Busca remapear socialmente o centro e outros espaços da cidade, indo além da representação elegante e europeia do Triângulo e encontra becos, ruas alagadas, quiosques, mercados, igrejas, terreiros, batuques, congadas, caipós, na Várzea do Carmo, no Largo das Casinhas, no Largo do Rosário, no sul da Sé.”
Abaixo disponibilizamos duas fotos para exemplificar o método utilizado por Carlos José para analisar as fotos da cidade em busca da presença dos nacionais pobres.

Na foto acima, cuja intenção era mostrar o melhor do comércio da cidade, é possível flagrar um carroceiro circulando na rua bem ao fundo da imagem e, um pouco mais adiante, um negro está parado observando o movimento.

Já nesta outra foto, o autor destaca as lavadeiras negras que desciam até a Várzea do Carmo para exercerem seu ofício. Como destaca Carlos José, alguns espaços da cidade, como o Carmo, eram marcados pela presença dos nacionais pobres que, poucos anos depois, foram vítimas de processos de higienização na virada do século, sob a desculpa da modernização e do progresso da cidade, que acabou expulsando-os dali para outras regiões mais periféricas da cidade.

No Capítulo III, “Serviços de Negros: na cadência de Modas indígenas e africanas”, Carlos José faz a crítica ao discurso da desqualificação dos “serviços de negros” e aponta muito bem a natureza “subversiva e inventiva das formas de sobrevivência e práticas culturais dos nacionais pobres”. Aqui seu objetivo é apontar ofícios, biscates e ocupações casuais e temporárias que pouco foram examinadas pela historiografia do trabalho e considerado como serviços de negros.

“São carroceiros autônomos, coletores de lixo, lavadores de casa, cavoqueiros, limpadores de trilhos, empregados das cocheiras, quitandeiras e quituteiras, lavadeiras e vendedores ambulantes, como os flagrados em algumas fotos publicadas em seu livro”.

Na foto acima, o detalhe de trabalhadores negros no ofício de catadores de lixo e, abaixo, um limpador de trilhos é flagrado no exercício de sua atividade por volta de 1917.

PALAVRAS FINAIS

Embora o livro tenha como tema a São Paulo da virada do século XIX para o XX, ele é bastante atual, pois mostra como se deu os processos de exclusão dos brasileiros pobres, em sua maioria negros, que viviam no centro da cidade no período pesquisado. Hoje, uma vez mais, estamos em pleno processo de higienização do centro onde as camadas mais pobres da população estão sendo retiradas com extrema violência para liberarem o espaço para os grandes especuladores imobiliários. Além disso, ainda tem a questão da posição do negro em uma sociedade pós-abolição, apontando claramente a condição em que viviam e os ofícios aos quais foram relegados, determinando sua condição de extrema pobreza e a imensa dificuldade de romperem com esse quadro por não terem acesso à educação. Tema este que viemos tratando nos últimos meses ao falarmos da necessidade da implementação do sistema de cotas raciais.

Para concluir essa breve e despretensiosa resenha, nada melhor do que as palavras da orientadora da pesquisa, a já citada Heloísa de Faria Cruz, que diz:

“Com seu trabalho, Carlos José nos propõe uma São Paulo onde nem tudo era italiano e contribui para uma compreensão dos processos de exclusão, ontem e hoje, pois joga luz nos silêncios da historiografia que tratou sobre o tema das cidades e do trabalho no período”.

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Elisée Reclus e a Anarquia Pela educação

Este post foi criado para falar de um livro de Élisée Reclus (Anarquia pela educação), lido nesta última semana e cujas ideias gostaria de divulgar no meu blog. Portanto, não é meu objetivo aqui falar da obra de Reclus enquanto geógrafo e de sua importância para esta área do conhecimento humano. Quero apenas falar de alguns dos textos políticos que li deste autor, isto é, sobre seus textos anarquistas e desta ideologia política que ainda engatinhava na segunda metade do século XIX, quanto os textos foram publicados nos periódicos europeus (1879-1901).

BREVÍSSIMO HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO DO ANARQUISMO ANTES DE ÉLISÉE RECLUS

Me baseando em um texto (Anarquismo e sua polissemia) escrito pelo colega blogueiro Munhoz, dono do excelente Tempos Safados, vou traçar um breve histórico da evolução do anarquismo até os textos anarquistas escritos por Reclus agora em questão.

Começando pelos filósofos gregos pré-socráticos, Munhoz lembra que a palavra grega arkhé significa princípio, origem, relativa a uma determinada “entidade” sempre presente na existência de todos os seres. Contudo, arkhé não apresenta apenas este significado de princípio, como sinônimo de começo, mas também quer dizer comando, como aquilo que governa. Desta maneira, conclui Munhoz, podemos dizer então que a an-arkhé é a recusa do princípio natural presente em todos os seres (ou seja, a desigualdade entre todos os seres), correlativa por isso a impossibilidade de governo fundado sob a arkhé. Acontece que, como acontece com todos os conceitos com o passar do tempo, os anarquistas que apareceram no século 19 deram outros significados para o termo an-arkhé.

O próprio Reclus recorda que o termo anarquia já era empregado antes do século XIX e de Proudhon, considerado o precursor. Antes dele haviam os ácratas e, mais do que isso, lembra que em todos os tempos houve homens livres, contendores da lei, homens vivendo sem senhor em decorrência do direito primordial de sua existência e de seu pensamento. Nas palavras de Reclus, “homens gerindo a seu bel-prazer, sem lei imposta não tendo outra regra de conduta senão seu ‘querer e franco arbítrio'”.

Mas a partir do século XIX, Proudhon (1809-1865), o primeiro dos anarquistas, confessa em seu livro que existe um princípio natural de organização da sociedade, sem necessidade de haver autoridade sobre a sociedade. A anarquia apresentada por Proudhon é, portanto, a negação da an-arkhé. Antes deste filósofo, o significado de anarquia nos círculos políticos era relativo à desordem, ao caos, à falta de princípio e ao desgoverno. Com ele, a anarquia deixa de ter esse sentido pejorativo e passa a significar a ordem natural das coisas, o princípio que elas obedecem espontaneamente sem necessidade de autoridade (humana); a partir daí a “anarquia é a ordem”. Vejam a definição que Munhoz destacou do livro “O que é a propriedade?” de autoria do próprio Proudhon:

Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar com o cúmulo da desordem e a expressão do caos. […] como o homem procura a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia (PROUDHON, 1975, p. 239).

Ainda segundo Munhoz, na cronologia tradicional, Bakunin (1814-1876) deu o segundo passo. Através da inspiração das ideias e dos seguidores  de Proudhon e em contraposição às teses socialistas de Marx, Bakunin reuniu pela primeira vez um grupo que não tinha medo de se assumir anarquista. Contudo, algumas importantes ideias de Bakunin eram bem diferentes das defendidas por Proudhon. Se entendermos o anarquismo como sinônimo de tudo o que é revolucionário no sentido clássico, que prega a coletivização dos instrumentos de produção (as máquinas, as ferramentas, a terra, etc.), que defende a conspiração para abolir o Estado e a violência como prática política caso necessária, então esse anarquismo é o de Bakunin. Proudhon era contra todos estes postulados, ele acreditava na revolução como um progresso evolutivo sem necessidade de violência e do uso de força, pois era preciso que as pessoas quisessem abolir o Estado e transformar a sociedade. Antes de fazer era preciso querer. Pois, para ele, tomar tudo a força representava um autoritarismo contra-revolucionário, um contrassenso, um retrocesso.

Por fim, depois de Proudhon e Bakunin vieram outros pensadores que reformaram (ou modificaram) suas ideias. Como os anarquistas comunistas Kropotkin (1842-1921), Reclus (1830-1905) e Malatesta (1853-1932). Destes três anarquistas nascidos no século XIX, passaremos a falar um pouco mais detalhadamente de Élisée Reclus.

BREVE PERFIL BIOGRÁFICO DE ÉLISÉE RECLUS

Os breves traços do perfil biográfico abaixo foi baseado na resenha escrita por Beatriz Scigliano Carneiro ao livro de Jean Didier Vincent: Élisée Reclus, géographe, anarchiste, écologiste. Paris: Robert Laffont, 2010, 426 páginas.

Jean-Jacques Élisée Reclus foi um geógrafo e anarquista francês, nascido em Sainte-Foy la Grande, na região da Aquitânia, aos 15 de março de 1830. Foi o segundo filho de um pastor protestante que construiu uma família composta por doze filhos.

Sua educação se iniciou na Prússia e continuou num colégio protestante da região francesa de Montauban, de onde foi afastado por motivos políticos. Completou seus estudos na Universidade de Berlin, onde foi aluno e discípulo do grande geógrafo alemão Carl Ritter.

Entre 1851 e 1857, vive exilado da França, fugindo de perseguições políticas em decorrência do golpe promovido por Luís Bonaparte em dezembro de 1851 para acabar com a República e se tornar o monarca. Foge inicialmente para a Londres e depois para Irlanda, onde permanece por pouco tempo. Dali viaja para os Estados Unidos, onde ficaria até 1857. Morou na Louisiana, visitou Chicago, Panamá, Cuba e tentou implantar sem sucesso uma colônia agrícola na Colômbia. Durante sua estadia no continente americano, empenhou-se em descrever paisagens e tipos humanos, posteriormente usados em suas obras. Observou com interesse a mestiçagem e a convivência em um mesmo espaço entre pessoas de procedências diversas: negros, índios, europeus. Entretanto, na Lousiana, encontrou os mercados de escravos, alimentando a prática que ele considerava um horror absoluto.

Retorna à França em 1857, onde permaneceria até ser novamente exilado, em 1872, por sua participação na Comuna de Paris, um ano antes de seu banimento. Foi morar na Suíça com a família, país que havia se transformado em refúgio de militantes de esquerda procedentes de várias nações, alguns muito conhecidos pela atuação anarquista, como Bakunin e Kropotkin.

Em 1894, mudou-se para a Bélgica, convidado a dar aulas na Universidade Livre que mantinha uma orientação liberal diversa da tendência católica predominante no país. No entanto, um atentado a bomba na França, feito pelo anarquista Vaillant, recolocou Reclus na lista dos suspeitos de cumplicidade com ações violentas. Seu curso foi então recusado. No entanto, outros intelectuais, de tendência socialista libertária, formaram uma Universidade Nova, em Bruxelas, e depois o Instituto de Altos Estudos, onde se tornou professor de Geografia. Os cursos não foram reconhecidos oficialmente pelo Estado belga, mas isso não impediu a afluência de estudantes, especialmente estrangeiros.

No período final de sua vida, foi professor de geografia comparativa na Universidade de Bruxelas (1895-1905) e morreu na cidade de Thourout, nas proximidades de Bruges, Bélgica.

Filho de pastor, Reclus fora educado para ser um pastor como o pai, mas tornou-se ateu convicto; enquanto militante libertário, foi preso, exilado e vigiado constantemente pelo Estado francês e sua geografia não pode ser dissociada das práticas anarquistas de liberdade.

Se a obra de Reclus ainda não é suficientemente conhecida em seu país natal, no Brasil, afora em circuitos anarquistas e em alguns nichos acadêmicos, ele hoje praticamente parece esquecido na poeira de seus volumes depositados nas seções de livros raros das bibliotecas. Entretanto, a Geografia Universal em francês fora item imprescindível de muitas bibliotecas da elite brasileira no século XIX. O próprio Reclus, esteve no Brasil em 1893, e foi homenageado na Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro.

SOBRE O LIVRO

Agora que já falamos, ainda que brevemente, sobre o anarquismo e sobre o autor do livro que queremos comentar, vamos partir para falar do livro em si: Anarquia pela educação.

Trata-se de uma coletânea de artigos políticos escritos por Élisée Reclus (1830-1905) e publicados em periódicos entre os anos de 1879 e 1901. Estes artigos foram compilados e traduzidos por Plínio Augusto Coêlho, que se dedicou a publicação de obras libertárias, e publicado em 2011 pela editora Hedra.

Como diz a resenha da primeira página do livro, todos os artigos tratam de suas concepções sobre o Anarquismo utilizado como base para suas posições nos mais diferentes assuntos, todos tendo a educação como pano de fundo.

São sete artigos que foram compilados nesta edição. São eles:

  • A anarquia (1894)
  • Por que somos anarquistas? (1886)
  • A revolução (1893)
  • A anarquia e a igreja (1901)
  • Algumas palavras de história (1894)
  • A meu irmão camponês (1899)
  • A pena de morte (1879)

Em A anarquia (1894), Reclus define em linhas gerais o que é, quais os objetivos e o que defendem os anarquistas. Lembra que embora tenha algumas semelhanças com os socialistas, o que difere ambos é que os anarquistas lutam contra todo o poder oficial, cada individualidade parece aos anarquistas o centro do universo, e cada uma tem os mesmos direitos ao desenvolvimento integral, sem a intervenção de um poder que a dirige, repreende ou castiga.

Neste artigo, Reclus lembra que, até mesmo nos dias em que escrevia seu texto [e ouso a dizer que até hoje], o princípio que rege o Estado é a hierarquia, cujo significado do termo a “autoridade sagrada” e que a supressão deste Estado está naturalmente implicada na extinção do respeito, tema que vai tratar mas detalhadamente em outro artigo.

Já em Por que somos anarquistas (1886), como o próprio título do artigo deixa claro, Reclus expõe as razões pelas quais os anarquistas escolheram este caminho de luta e a justificativa principal está no fato de eles desejarem a justiça social em um mundo onde reina a injustiça por todos os lados. É o fato de terem se dado conta de que os frutos do trabalho serem distribuídos no sentido inverso do trabalho e de que, nesta sociedade, o senhor é aquele que possui a “carteira abarrotada” e, neste caso, acaba tendo em seu poder o destino de outros homens. Explica que ao anarquista tudo isso parece infame e que estes desejam mudar este estado de coisas através da revolução.

“Das duas coisas, uma: ou a justiça é o ideal humano, e neste caso, nós a reivindicamos para todos; ou só a força governa a sociedade e, neste caso, usaremos a força contra nossos inimigos. Ou a liberdade dos iguais, ou a lei do Talião”. (p. 44).

Explica que o anarquista quer se livrar da opressão do Estado, não ter superiores que possa comandar-lhes, lembrando que ao suprimir o Estado, junto com ele suprime-se também a moral oficial, recordando que para o anarquista só há moral na liberdade. É neste momento que explica que o anarquista, por compreender que a vida é impossível sem um agrupamento social, é também um comunista-internacional. Que eles associam-se, uns com os outros, como homens livres e iguais, trabalhando numa obra comum e regulando as relações mútuas pela justiça e pela benevolência recíproca.

Por fim, explica que no anarquismo é impossível a existência de ódios religiosos ou nacionais, pois não possuem religião e o mundo é a pátria do anarquista. A terra será expropriada de seus proprietários e se tornará coletiva, sem cercas e ordenada para a satisfação de todos. E conclui dizendo-se consciente de que toda a injustiça e todo ciúme de lesa-majestade humana, se levantarão para combater o anarquista-comunista-internacional e é justamente por isso que, enquanto durar a iniquidade, que os anarquistas devem estar em estado de revolução permanente.

Em A Revolução (1893), Reclus explica que a anarquia jamais poderá emanar da República e que, por este motivo, tal mudança so poderá se realizar através da revolução: “Nada de bom para nós pode advir da República e dos republicanos”. E o responsável por realizar a revolução é o povo, isto é, o trabalhador, como fica bem claro neste trecho:

“O veículo do pensamento moderno da evolução intelectual e moral é a parte da sociedade que sofre, que trabalha e é oprimida. É ela que elabora a ideia, que a realiza, que de tremor em tremor, recoloca constantemente em marcha este carro social que os conservadores tentam incessantemente imobilizar na estrada, entravar seu caminho ou afundá-lo nos pântanos de direita ou de esquerda”.

Em A Anarquia e a Igreja (1901), Reclus expõe o posicionamento dos anarquistas perante esta instituição: “Enquanto os padres, monges e todos os detentores de um poder pseudodivino estiverem constituídos como liga de dominação, é preciso combatê-los sem trégua, com toda a energia de sua vontade e com todos os recursos de sua inteligência e sua força”. Explica como os anarquistas rejeitam absolutamente a doutrina católica e todas as religiões conexas, amigas ou inimigas; e de como devem combater suas instituições e obras, além de trabalharem para destruírem os efeitos de todos seus atos. Apesar disso, explica que os anarquistas não pretendem entrar nas consciências dos fiéis para delas expulsar suas perturbações e devaneios, mas que devem trabalhar com todas as energias para afastar do funcionamento social tudo o que não se coaduna com as verdades científicas estabelecidas:

“podemos combater incessantemente o erro de todos aqueles que sustentam ter encontrado fora da humanidade e do mundo um ponto de apoio divino, permitindo que castas parasitas se disfarcem de intermediários fervorosos entre o criador fictício e suas criaturas (…) E não esqueçamos de bloquear o vil pagamento dos impostos direto que o clero nos extorque (…) Sequemos a fonte desses milhões que, de todas as partes, afluem para o grande mendigo de Roma e para os submendigos inumeráveis de suas congregações (…) Descristianizemos o povo!”. (p. 55-56).

No artigo Algumas palavras de História (1894), Reclus fala sobre como os anarquistas, através da revolução, pretendem atingir o seu triplo ideal de garantir a conquista do pão, da instrução e da moralidade (entendida como liberdade e fraternidade).

Em primeiro lugar, os anarquistas devem garantir a conquista do pão, isto é, que cada homem tenha o que comer, não o mínimo para sobreviver, mas a possibilidade de viver em condições perfeitas  de bem-estar material. O segundo ponto do ideal anarquista é, uma vez suprida as necessidades de alimento e bem-estar, a falta de necessidade de empregar crianças nas fábricas e utilizar todo o período de preparação ao estudo da vida pela educação completa, integral do indivíduo. Por fim, o terceiro ideal anarquista, que também está ligado aos outros dois. Segundo Reclus, “o homem que sacia sua fome e que se instrui a seu bel-prazer é um homem livre e para todos um igual, mas faltaria outro ideal a satisfazer: a fraternidade”.

“Tendo em vista uma humanidade composta de seres livres, iguais, instruídos, é impossível imaginá-la com milhões de soldados sem vontade pessoal, aguardando o gesto ou o grito que lhes dirá para matarem-se mutuamente, com outros milhões de escravos obedientes, passando sua vida a escrevinhar, com a turba daqueles: sacerdotes, magistrados, policiais, denunciadores e carrascos, que tem a atribuição de ensinar pelo terror e assegurar pelo gládio a moral das nações”.

Em A Meu Irmão Camponês (1899), Reclus alerta os trabalhadores, em especial aos agricultores, da necessidade de se unirem para combater aqueles que os exploram. É através da união dos trabalhadores que se conseguirá a revolução e a reversão do atual estado de miséria dos trabalhadores. Aqui destaco um trecho desta carta aberta aos trabalhadores onde Reclus chega a ser profético ao prever, em 1899, o que ocorreria aos trabalhadores se estes não se unissem para combater seus opressores, os donos do Capital:

“Se não sabei unir-vos, não apenas de indivíduo a indivíduo e de comuna a comuna, mas também de país a país em uma grande internacional de trabalhadores, logo partilhareis o destino de milhões e milhões de  homens que já estão despojados de todos os direitos à semeadura e à colheita e que vivem na escravidão do salariato, encontrando trabalho quando patrões tem interesse em dar-lhes. (…) Uni-vos todos em vossa desgraça ou vosso perigo. Defendei o que vos resta e reconquistai o que perdeste. Caso contrário, vosso destino futuro será horrível, pois estamos em uma época de ciência e método e nossos governantes, servidos pelo exército dos químicos e dos professores, preparam-vos uma ordenação social na qual tudo será regulado como numa fábrica, onde a máquina dirigirá tudo, inclusive os homens, onde estes serão simples engrenagens que serão substituídos como ferro-velho quando se puserem a raciocinar e querer”. (pp. 86-87).

Por fim, em A Pena de Morte (1879), Reclus tece suas considerações à respeito das razões pelas quais os anarquistas devem ser contrários à pena de morte. Para ele, a pena capital sempre esteve à serviço da tirania, ao lado dos reis e das classes dominantes e contra os homens que reivindicavam a liberdade de pensar e de agir.

“Nossos tribunais são escolas de crime. Quais seres são mais vis do que todos aqueles dos quais a vindita pública se serve para a repressão: alcaguetes e carcereiros, carrascos e policiais?”

Em seguida, passa a argumentar como, além de tudo, a pena de morte é injusta, uma vez que a sociedade, tomada em seu conjunto, deve compreender o laço de solidariedade que a une com todos os seus membros, virtuosos e criminosos, e reconhecer que em cada crime ela também tem sua parte. Para reforçar sua argumentação, passa a fazer uso de perguntas retóricas que explicitam sua tese, tais como:

“a sociedade tomou conta da infância do criminoso? Deu-lhe uma educação completa? Facilitou-lhe os caminhos da vida? Deu-lhe sempre bons exemplos? Zelou para que ele tivesse todas as oportunidades de permanecer honesto ou de fazer com que torna-se a sê-lo após um primeiro escorregão? E se ela não o fez, o criminoso não pode taxá-la de injusta?”

Enfim, este é um breve resumo dos artigos de Élisée Reclus que foram compilados e publicados no livro Anarquia Pela Educação. Reler suas ideias e discuti-la, em um momento de intensa transformação cultural e social, é mais do que recomendado, é necessário. Philippe Pelletier, responsável pela introdução do livro, recorda que há aproximadamente dez anos está ocorrendo em todo o mundo uma retomada dos textos libertários, dentre eles, os de Elisée Reclus e seu companheiro de anarquismo e geografia, Kropotkin, que traziam proposições profundas em relação a questões fundamentais como as relações do homem com seu meio ambiente e a sociedade dos homens, sempre em uma perspectiva radical: anarquista. Só por essa razão, entendo estar plenamente justificada essa breve e singela resenha que publico agora no meu blog.

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[Textos Clássicos] A Ideologia Alemã

Atendendo a sugestão da amiga e também historiadora Célia Regina, estou inaugurando uma nova página no blog que é a de TEXTOS. A ideia é publicar neste espaço alguns textos clássicos da historiografia cuja leitura foi recomendada pelos professores do curso de História da FFLCH-USP.

A IDEOLOGIA ALEMÃ

Em homenagem ao 129º ano do falecimento de Karl Marx, ocorrida em 14/03/1883, o texto de estréia da página é extraído da obra A ideologia alemã, escrita em parceria com seu amigo Friedrich Engels.

Filósofo alemão, Karl Marx nasceu em Trier em 5 de Maio de 1818 e morreu em Londres a 14 de março de 1883. Estudou Direito nas universidades de Bonn e Berlim, mas dedicou-se principalmente a filosofia hegeliana, tendo se formado em 1841, com a tese Sobre as diferenças da filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro.

O livro A ideologia alemã, foi escrito nos anos de 1845-46 e, censurado, não foi publicado em uma edição completa até o ano de 1932.

Segundo o site da Boitempo Editorial, que recentemente publicou uma edição integral do livro, A ideologia alemã:

(…) é considerada por muitos estudiosos a obra de filosofia mais importante de Marx e Engels. Representa a primeira exposição estruturada da concepção materialista da história e é o texto central dos autores acerca da religião. Nela eles concluem um acerto de contas com a filosofia de seu tempo – tanto com a obra de Hegel como com os chamados “hegelianos de esquerda”, entre os quais Ludwig Feuerbach. Esse ajuste passou antes pelos Manuscritos econômico-filosóficos, por A sagrada família, por A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, para alcançar em A Ideologia Alemã sua primeira formulação articulada como método próprio de análise. 

A crítica – quase toda em tom sarcástico – dos dois filósofos ridiculariza o idealismo alemão e articula as categorias essenciais da dialética marxista (como trabalho, modo de produção, forças produtivas, alienação, consciência), constituindo assim um novo corpo teórico.  

FONTE: Boitempo Editorial

O trecho selecionado é apenas um aperitivo, já que tratam-se apenas de algumas poucas páginas do primeiro capítulo no qual Marx & Engels  fazem a crítica ao filósofo alemão Feuerbach, estabelecendo uma oposição entre as concepções materialista e idealista.

Como não poderia deixar de ser, como se pode supor pelo nome deste blog, destaco aqui um pequeno trecho, que foi riscado no manuscrito original, no qual Marx fala da história como ciência:

1. A ideologia em geral, e a filosofia alemã em especial

Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos. Pode ser dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, entretanto, são inseparáveis; enquanto existirem os homens, sua história e a da natureza se condicionaram reciprocamente. A história da natureza, que designamos como ciência da natureza, não nos interessa aqui; em compensação, teremos que nos ocupar pormenorizadamente da história dos homens; com efeito, quase toda a ideologia ou se reduz a uma concepção falsa dessa história, ou procura fazer dela total abstracção. A própria ideologia não passa de um dos aspectos dessa história.

Espero que gostem desta novidade e que os textos ali disponíveis possam ser de proveito não apenas para quem estuda História, mas para todos que se interessem por boa leitura.

DOWNLOAD DO TEXTO

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David Harvey em São Paulo

David Harvey é um geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. Foi professor de Geografia nas universidades de Bristol (Reino Unido), John Hopkins (EUA), Oxford (Reino Unido) e atualmente leciona na City University of New York (EUA).

Desde 1980, seus trabalhos vem sendo traduzidos para a língua portuguesa e são mais do que recomendáveis para quem quer entender melhor o funcionamento do capitalismo desde a década de 1970 aos dias atuais. Abaixo a lista de suas obras traduzidas e publicadas por editoras brasileiras:

  • A Justiça Social e a Cidade. Tradução: Armando Corrêa da Silva, São Paulo: Hucitec, 1980.
  • Condição Pós-moderna. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: edições Loyola, 1993.
  • “Espaços de Esperança”. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: edições Loyola, 2004.
  • “O Novo Imperialismo”. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo: edições Loyola, 2004.
  • “A produção capitalista do espaço” (Titulo original:Spaces of capital: Towards a critical geography). Tradução: Carlos Szlak, São Paulo: Annablume, 2005
  • “O enigma do capital e as crises do capitalismo” (Titulo original:The enigma of capital: and the crises of capitalism). Tradução: João Alexandre Peschanski, São Paulo: Boitempo, 2011

A boa notícia é que, a convite da Boitempo Editorial, nos dias 27 e 28 de fevereiro, David Harvey estará em São Paulo para o lançamento do seu livro mais recente, O enigma do Capital e as crises do Capitalismo. No dia 27/02 Harvey estará no Teatro TUCA, da PUC-SP e no dia 28/02 é a vez do auditório da FAU-USP recebê-lo. O evento é gratuito e sem necessidade de inscrição prévia, e acontece no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Abaixo segue imagem do convite e a programação completa.

Como aquecimento da palestra de lançamento do livro, nesta próxima terça-feira, compartilho por aqui a entrevista que ele concedeu ao programa Milênio da Globo News.

Não deixem de conferir também a página oficial da visita de David Harvey ao Brasil.

PROGRAMAÇÃO COMPLETA:

27/02 | Segunda-feira | 19h30 – São Paulo (SP)
Teatro TUCA da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Rua Monte Alegre, 1024 – CEP 05014-001, Perdizes – Tel. (11) 3670-8458
Com a presença de Leda Paulani (FEA/USP) e João Ildebrando Bocchi (FEA, PUC-SP)
Realização: APROPUC, Núcleo de Estudo de História: Trabalho, Ideologia e Poder (NEHTIPO), Departamento de História da PUC-SP, Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP e Boitempo Editorial
Apoio: PUC-SP e Teatro TUCA

28/02 | Terça-feira | 18h30 – São Paulo (SP)
Auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP)
Rua do Lago, 876 – CEP 05508-900, Cidade Universitária – Tel. (11) 3091-4801
Com a presença de Ermínia Maricato (FAU/USP) e Mariana Fix (LabHab)
Realização: FAU/USP, Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU (LabHab), Pós-Graduação FAU/USP e Boitempo Editorial

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Privataria Tucana

Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Jr.

Para muitos vai parecer notícia velha, mas não poderia deixar de começar o ano disponibilizando o link para download da versão digital de PRIVATARIA TUCANA, de Amaury Ribeiro Jr, publicado pela Geração Editorial em dezembro de 2011.

Para quem ainda não conhece e nem ouviu falar, a obra apresenta documentos inéditos de lavagem de dinheiro e pagamento de propina, todos recolhidos em fontes públicas, entre elas os arquivos da CPI do Banestado. O ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, José Serra, é o personagem central dessa história. Amigos e parentes do ex-governador paulista, como a própria filha e seu genro, operaram um complexo sistema de maracutaias financeiras que prosperou no auge do processo de privatização.

Logo após a publicação do livro no princípio de dezembro, a GRANDE MÍDIA resolveu ignorar o lançamento, mas não contava com o fenômeno da divulgação via redes sociais. Facebook e Twitter repercutiram amplamente não só o lançamento, mas uma versão digital para download, o que não impediu que o livro esgotasse sua primeira edição em apenas dois dias.

Exemplo da atitude parcial da imprensa golpista, o Correio do Brasil reportou como a revista Veja ignorou A Privataria Tucana na lista dos livros mais vendidos: “O ranking semanal de livros mais vendidos da revista semanal de ultradireita Veja desprezou a vice-liderança de A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, na categoria de não-ficção.”

Como reporta o Correio do Brasil, nas livrarias Cultura, Publifolha e Saraiva e no site especializado Publishnews, “A Privataria Tucana” aparece na segunda colocação entre as principais vendas não-ficção, atrás apenas da biografia sobre o empresário Steve Jobs, da Apple, morto em 2011, escrito por Walter Isaacson. O livro do jornalista brasileiro está em 10ª colocação no ranking anual da Fnac. Em sua operação de camuflagem do Privataria Tucana, reporta ainda o CB, Veja manteve o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, no lugar em que, segundo as livrarias, estava A Privataria Tucana. “Nas outras listas, o livro de Narloch aparece apenas na 15ª posição”, indica o site.

Amaury Ribeiro Jr.Em entrevista à revista Carta Capital, Ribeiro Jr. explica como reuniu os documentos para produzir o livro, refaz o caminho das disputas no PSDB e no PT que o colocaram no centro da campanha eleitoral de 2010 e afirma: “Serra sempre teve medo do que seria publicado no livro”.

Para ter acesso a versão digital do livro, basta clicar na capa do livro acima. Não estranhem, ele demora para baixar e até parece que o download está parado, mas não está não. Deixem baixando em outra aba enquanto continuam navegando. Quando terminar o download, o livro já aparece em formato .PDF e é só salvar em seu computador. Aproveitem para divulgar!!!

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Roda Viva entrevista Laurentino Gomes

Nesta última segunda-feira o programa Roda Viva, da TV Cultura, entrevistou Laurentino Gomes, jornalista e escritor que ficou bastante conhecido nacionalmente após a publicação dos livros 1808 e 1822, ambos regalados com o Prêmio Jabuti de melhor livro de não ficção.

Para compor a bancada de entrevistadores foram convidados: Oscar Pilagallo (jornalista e escritor), Marcos Augusto Gonçalves (editor de Opinião da Folha de S. Paulo), Mona Dorf (apresentadora do programa Letras e Leituras, da Rádio Eldorado, e colunista de cultura do IG), Ubiratan Brasil (editor do Caderno 2 de O Estado de S. Paulo) e Maria Aparecida de Aquino (professora de História da USP e do Mackenzie

Embora os livros de Laurentino Gomes tenham como objeto eventos históricos, como a vinda da Família Real ao Brasil (1808) e o processo de Independência vivido por este país (1822), vale lembrar que este jornalista não trabalha com produção de conhecimento histórico, como ele mesmo lembra logo no início da entrevista. Seu trabalho está, na verdade, mais na linha de reportagens de divulgação histórica, o que por si só, não é nada ruim.

Assim como outros jornalistas que já exploraram esse filão, para escrever suas reportagens Gomes reúne livros que foram produzidos por diversos historiadores, compila os dados encontrados naquelas pesquisas e escreve-os de maneira mais palatável a um público não habituado com a linguagem acadêmica dos historiadores. É uma pena que poucos historiadores tenham interesse em produzir obras destinadas a este público específico. Como já havia destacado em post anterior (História do Brasil Nação), recentemente a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz abordou sobre esse tema em entrevista ao programa EntreLinhas, também da TV Cultura. Ali ela informou o lançamento de uma nova coleção de História, escrita por historiadores, justamente com o objetivo de atingir um público mais amplo e avesso aos academicismos. É esperar para ver!

Quanto ao Roda Viva, para quem tiver interesse em acompanhar a entrevista, a TV Cultura disponibilizou todo o conteúdo da mesma em seu canal do YouTube. Abaixo incorporei o link aqui no blog para facilitar a vida dos leitores do Hum Historiador.

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Histórias Apócrifas

Que boa surpresa esse Histórias Apócrifas de Karel Capek. Recomendo-o fortemente para qualquer um que queira ter enorme prazer e diversão na leitura. Logo no começo, o conto “Sobre a decadência dos tempos”, já nos faz dar boas risadas ao imaginarmos um velho casal da idade das pedras lamentando a decadência das novas gerações e a falta de perspectiva da humanidade; pouco depois, vem Tersites, conto que destaca os comentários maldosos de soldados gregos durante o cerco de Troia; mais adiante ainda, tem o conto “Sobre cinco pães”, que narra a opinião de um esforçado padeiro sobre os milagres de multiplacação de pães de Jesus. Há outros bastante interessantes e que são igualmente recomendáveis. Estou me divertindo muito com essa leitura.

Abaixo, um pequeno trecho extraído das páginas 26-27 do conto Tersites, que é uma ótima sacada do Capek. Neste conto, Capek narra o descontentamento de soldados gregos, acampados em frente a Tróia, antes de nova onda de ataque. Tersites é um dos soldados que reclamam e lamentam a sorte dos gregos nos dez anos de guerra contra Tróia, dando suas explicações das possíveis razões porque ainda a guerra não foi liquidada.

Curtam o trechinho que selecionei.


(…) Dizem que Aquiles se ofendeu  terrivelmente, porque Agamêmnon devolveu aos pais aquela escrava, como é mesmo o nome dela? Briseis, Kriseis, uma coisa assim… Ele tomou isso como uma afronta, mas parece que estava mesmo apaixonado pela moça… Olha, rapaz, que isso não é nenhuma comédia.

– Para mim vens dizer isso? – Perguntou Tersites. – Sei muito bem como tudo aconteceu! Agamêmnon simplesmente tomou-lhe a escrava, entendes? Mas para ele isso não é problema, porque se apossou de tantas jóias que nem sabe o que fazer com elas, e não pode ver um rabo de saia, que… Mas chega de mulheres! Afinal, foi por causa daquela tal de Helena que a coisa toda começou, e agora essa outra… Não ouvistes? Parece que a Helena agora está arrastando a asa para o Heitor. Essa aí já foi possuída por tod mundo em Troia, até pelo Príamo, que está com um pé na cova. E nós, agora, vamos passar pela necessidade e lutar por causa de uma fulaninha dessas? Muito obrigado, mas para mim chega!

– Dizem – observou Laomedon, meio envergonhado – que Helena é muito bonita.

– Dizem, dizem – respondeu Tersites, com desprezo. – Mas já está meio passada, e além disso é uma rameira de marca. Eu não daria por ela nem um prato de feijão. Sabeis rapazes, que é que eu desejo para o tonto do Menelau? Que ganhemos esta guerra de uma vez para ele receber a mulher de volta. A beleza de Helena não passa de lenda, impostura e um pouco de pó de arroz.

– Então nós, gregos, estamos lutando por uma simples lenda? É isso, Tersites?! – perguntou Hipodamos.

– Meu caro Hipodamos – respondeu Tersites -, percebo que não enxergas a essência das coisas. Nós, gregos, lutamos, primeiro, para que a raposa velha do Agamêmnon possa encher as burras com nosso butim; segundo, para que o janotinha do Aquiles possa saciar sua imensa sede de glória; terceiro, para que o vigarista do Odisseu possa nos escorchar fornecendo o armamento; por fim, lutamos para que um bardo vulgar e corrupto, o tal de Homero, ou lá como se chame, possa glorificar, por uns trocados sujos, os maiores traidores da nação grega e, ao mesmo tempo, vilipendiar ou ignorar os verdadeiros, modestos e abnegados heróis da Acaia, heróis como vós. É isso, Hipodamos. (…)

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A Menina com a Lagartixa

A herança maldita do nazismo para a primeira geração de alemães

Mais uma boa novela de Bernard Schlink que volta a temática das consequências da Segunda Guerra Mundial na vida dos alemães durante o pós-guerra (década de 50).

Nesta novela o personagem principal é um quadro e a estranha relação que o filho de um juiz tem com esta peça de arte desde sua infância até o momento em que o recebe como herança de seu pai. No decorrer da história, acompanhamos as implicações do quadro com a decadência financeira da família, a dissolução da mesma e, até mesmo, as implicações que vem causando na vida do seu herdeiro, especialmente no que tange aos relacionamentos pessoais.

A menina com a lagartixa trata da herança maldita que ficou para a primeira geração de alemães a nascer depois da Segunda Guerra Mundial e de como eles devem lidar com os crimes de guerra perpetrados por seus pais e avós. De como essa primeira geração e as seguintes, mesmo sem serem culpadas pelo holocausto, acabaram herdando a pecha de monstros e criminosos pelo simples fato de serem alemães. Como lidar com isso? Eis uma questão que parece central no livro. O personagem principal se pergunta se a melhor forma, talvez, não seja fazer como seus próprios pais e avós, isto é, simplesmente não falar sobre o assunto. Também pensa na possibilidade de tirar proveito próprio e enriquecer às custas dos espólios da guerra que ainda é possível encontrar sob posse de algumas famílias alemãs. Mas, neste livro, a solução encontrada pelo personagem principal é a libertação da culpa através da destruição do passado e na orientação da vida para o futuro.

Embora o autor trate o tema muito bem, para quem já leu outras obras dele, como O Leitor, já começa a ficar bastante repetitivo.

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